Transição propõe departamento e rede de saúde mental para novo governo Lula

Proposta pela equipe de transição do governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva, o departamento de saúde mental, a ser criado na estrutura do Ministério da Saúde, deve ter como foco o fortalecimento de Centros de Atenção Psicossocial (Caps), além de coordenar e articular políticas de combate ao consumo abusivo de álcool e drogas. Caso a sugestão do grupo seja aceita por Lula, será a primeira vez que a pasta terá um departamento exclusivo para o tema.

Atualmente, não há nenhuma área dentro do Ministério da Saúde que cuide especificamente de saúde mental. Iniciativas que tratam do tema estão espalhadas em diferentes pastas. Nas outras gestões petistas, o tema era tratado em coordenação vinculada à Secretaria de Atenção à Saúde. Agora, a ideia é criar uma estrutura maior, com mais capacidade para desenvolver políticas públicas que ajudem a população que sofre com transtornos psiquiátricos.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil já liderava o ranking global de casos de ansiedade antes da pandemia de Covid-19 — e também ganhava nos números de incidência de depressão entre os países da América Latina. Após mais de dois anos marcados por perdas, isolamento, medo e insegurança, a avaliação de especialistas é que o novo governo enfrentará índices ainda mais preocupantes de transtornos mentais.

— Nosso entendimento hoje é que houve um gigantesco retrocesso nessa área. Isso precisa ser recuperado. É preciso reforçar a rede de atenção psicossocial. É preciso ter uma atenção especial às pessoas que direta ou indiretamente começaram a apresentar transtornos por causa da pandemia. É preciso pensar uma estratégia específica para isso — afirmou ao GLOBO o senador Humberto Costa (PT), que é médico e integra a coordenação do grupo de trabalho em Saúde na transição.

Cortes de recursos

O aumento na procura por ajuda profissional no país — de até 25% nas consultas psiquiátricas em 2021, segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) — vai na contramão da instabilidade de políticas de saúde mental e dos sucessivos cortes de recursos da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que abrange os Caps. No governo de Jair Bolsonaro, houve uma prioridade para as chamadas comunidades terapêuticas, geralmente ligadas a igrejas, que têm como foco principal o tratamento de dependentes químicos. Os Caps, por sua vez, contam com uma equipe multiprofissional — psiquiatras, psicólogos e outros profissionais de saúde.

— Vamos retomar essa política, e os Caps têm papel fundamental, principalmente aqueles que funcionam 24 horas. Se você não tem uma rede de Caps, não consegue tratar as pessoas na própria comunidade, acompanhar suas famílias. Com isso acaba restando como alternativa o isolamento, internação em uma outra cidade, permanência em hospital. A proposta agora é retomar o papel dos Caps com centralidade e o cuidado da saúde mental na atenção primária — afirmou o ex-ministro da Saúde Arthur Chioro, que também integra a equipe da transição para a área.

O grupo se reuniu nos últimos dias com setores ligados à saúde mental, como funcionários do SUS e de clínicas especializadas, para tratar da criação do departamento. A proposta de criar a estrutura no novo governo constará no relatório final que será entregue ao vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, ainda neste mês, junto com o alerta da necessidade de fortalecimento das políticas do SUS, incluindo os Caps. Entre as sugestões estruturais estará a de levar de volta para o Ministério da Saúde áreas e ações que hoje estão pulverizadas pela Esplanada e que são diretamente ligadas às questões de saúde.

Em paralelo, o departamento também trabalhará com outras secretarias e ministérios que esbarram no tema pela sua transversalidade. O objetivo é ter uma alternativa que seja capaz de conduzir a rede de atenção e que volte a ter centralidade na produção e armazenamento de estudos, pesquisas, análises e monitoramento.

Segundo Chioro, a demanda represada no tratamento e acompanhamento na área da saúde mental é hoje um dos principais problemas dentro do SUS, superando até mesmo as filas de atendimento para acompanhamento de doenças crônicas e cirurgias eletivas. Atualmente, boa parte dessa demanda represada teve origem nos impactos deixados pela pandemia.

— Há, por exemplo, um grave problema de fila envolvendo hipertensos, diabéticos, pessoas que precisam de cirurgia eletivas, aquelas que tem câncer. Mas todo mundo diz que uma das áreas que está mais grave é a saúde mental. É onde há mais filas. As pessoas não vão a uma consulta e resolvem o problema. É um tratamento contínuo. Então o acúmulo é muito grande e será uma das áreas que o governo vai priorizar — afirmou o ex-ministro.

O oncologista Drauzio Varella, que integra o time de médicos escalado por Lula para colaborar com sugestões para a transição, ressaltou em entrevista ao GLOBO a importância do fortalecimento dos Caps para lidar com o nível de complexidade da saúde mental atualmente.

— O SUS tem os Caps, que fazem esse atendimento. Mas são insuficientes para lidar com o nível de complexidade que é a saúde mental hoje, especialmente depois da pandemia. O número de casos de ansiedade, depressão, aumentou, mas já vinham de antes. Em 2015, A OMS já tinha estimado que a partir da década de 20 teríamos a depressão como a principal causa da falta do trabalho. Aí veio a pandemia, com as pessoas trancadas em casa, medo, insegurança, insegurança financeira, que agravou isso. Agora, a pequena estrutura que o SUS estava começando a montar ficou insignificante frente às necessidades da população.

Alta de suicídios

Médico psiquiatra da rede de hospitais Santa Lúcia, em Brasília, Fábio Aurélio Leite alerta para os indicadores de suicídio no Brasil, que crescem ano a ano e destoam da queda na taxa mundial — enquanto os outros países registraram diminuição de 36% nos casos de suicídio em 2019, dados do DataSUS de 2020 apontaram para aumento de 35% em um período de nove anos no país.

— A escalada de números de suicídio no Brasil já é motivo suficiente para que a saúde mental seja vista como prioridade pelo governo. Há, agora, sequelas da pandemia, que ampliou ainda mais os casos de transtornos mentais no mundo, em especial no Brasil, segundo país com mais mortes por Covid — aponta Leite.

Segundo o psiquiatra, após anos de negligência, o país está atrasado em estruturas e medidas para saúde mental:

— A pandemia trouxe à tona uma urgência l. É papel do próximo governo tratar a pauta com seriedade e implementar ações efetivas para frear os atuais indicadores. A criação de setores e departamentos especializados é vista com bons olhos pelos profissionais da área.

Para a médica psiquiatra Carolina Hanna de Aquino, do Sírio Libanês de São Paulo, a criação de um departamento ajudaria a centralizar e atualizar os indicadores do país.

— Temos, atualmente, dificuldade para medir a efetividade de políticas públicas de saúde mental. É diferente, por exemplo, de medidas para a saúde física. Um departamento seria extremamente útil para controlar e avaliar o impacto das ações realizadas, além de sistematizar as falhas — diz.

Fonte: O Globo


Intervenção Psiquiátrica Já?

Desde o segundo dia das manifestações antidemocráticas que procuram contestar o resultado das eleições presidenciais alguns apoiadores do presidente Bolsonaro protagonizaram cenas patéticas e esdrúxulas que subiram a hashtag "Intervenção Psiquiátrica Já!" nas mídias sociais, ironizando o clamor dos manifestantes por intervenção militar. Cenas como adultos vestidos com a camisa do Brasil e portando a bandeira nacional marchando em frente a quartéis do Exército, pessoas cantando o hino nacional em torno de um pneu, mulheres aos prantos ajoelhadas rezando no meio da rua, pessoas agredindo jornalistas que exerciam seu ofício, um manifestante que se agarrou na frente de um caminhão que percorria as estradas e até cenas horrorizantes, como um grupo de pessoas cantando o hino nacional e fazendo o gesto nazista e crianças marchando como soldados e bradando aos gritos "tem que matar, tem que sofrer, eu quero essa onça, como eu quero, como eu quero", percorreram as diferentes mídias sociais e foram motivo de chacotas e tratadas como "casos psiquiátricos". Mas o que há por trás dessas cenas e desses manifestantes que não souberam aceitar o resultado das eleições que elegeram Lula para um novo mandato no Planalto? Estamos falando mesmo de casos psiquiátricos que necessitam de uma intervenção médica?

Para Theodor Adorno, filósofo alemão e um dos expoentes da Escola de Frankfurt, o nacionalismo ressurgente é o clima mais favorável ao fascismo, principalmente num mundo globalizado e com blocos supranacionais. Ele pode ressurgir de maneira exagerada para convencer as pessoas do propósito e da substância de seus ideais, alimentando movimentos de "renovação nacional" contra o "sistema" e as práticas políticas consideradas por eles ultrapassadas. Ele sempre se contrapõe e vitimiza um grupo, que pode ser de intelectuais, apoiadores políticos, estudantes universitários, minorias ou mesmo um grupo com ideias divergentes, que passa a se sujeitar às suas práticas sádicas.

O sadismo é uma marca desses movimentos fascistas. Segundo Adorno, as pessoas mais engajadas nesses movimentos possuem traços sádicos reprimidos que têm origem muitas vezes na severidade da educação tradicional ou em coletivos que possuem na autoridade seu elemento central, ou seja, um processo de identificação cega com o coletivo e a manipulação das massas iniciando-se pela virilidade, a brutalidade e a resistência à dor. As pessoas são impelidas a ser fortes e premiadas pela dor e pela capacidade de suportá-la, uma fachada masoquista que se identifica facilmente com o sadismo, pois quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo com o outro. Portanto, é um processo que se fecha em um ciclo de retroalimentação e que provoca o que Adorno chamou de "caráter manipulador" e "consciência coisificada" nas pessoas, estruturas da personalidade próprias do fascismo.

Adorno e Horkheimer, outro filósofo da Escola de Frankfurt, descreveram a relação patogênica que as pessoas sádicas têm com seu corpo nas situações em que são confrontadas ou criticadas: sua linguagem verbal e corporal assumem uma violência quase incontrolável.

Elas passam a formar uma "massa solitária" acrítica que adquire um impulso grupal, um enturmar-se de pessoas sádicas (frias) que não suportam a própria frieza, mas nada podem fazer para alterá-la. E causa a estranheza a incapacidade da identificação deste estado de consciência em meio a pessoas mais ou menos civilizadas, que passam a obedecer e reproduzir o que as forças estabelecidas lhes determinam, ainda que em razão de ideias de pouca ou nenhuma credibilidade.

Cria-se um "véu ideológico" fetichizado que considera os meios para a autoconservação da espécie humana (uma vida humana digna) desconectados da consciência das pessoas, incapazes de amar e carentes de uma relação libidinal com outras pessoas. É a ausência da consciência moral e sua substituição por compromissos por autoridades exteriores que as tornam dependentes de mandamentos e normas que não são próprias da razão do indivíduo.

Apesar das características psicológicas, Adorno considera o fascismo mais uma questão social, portanto, mais do campo da sociologia. O fascismo nunca desapareceu, mesmo após o nazismo, e de certa forma suas tendências encontram raízes na própria civilização. Como os pressupostos sociais e políticos que geraram os genocídios naquela época não são mais possíveis hoje em dia, as forças para se contrapor ao fascismo foram repelidas para o campo subjetivo, sendo imprescindível buscar as raízes psicológicas nos perseguidores para identificar os mecanismos que levam as pessoas golpearem as outras sem refletirem sobre si próprias.

Segundo Freud, a civilização produz uma rede cada vez mais densamente socializada que enreda o sujeito de uma maneira que torna difícil ele escapar, ainda que ele assim deseje, aumentando sua raiva contra a civilização e produzindo muitas vezes uma rebelião violenta e irracional. Ao mesmo tempo em que ela integra, produz também tendências desagregadoras. Essa pressão tende a destruir o particular e o individual, bem como o potencial de resistência da pessoa, dificultando que ela se oponha ao que a seduz ao crime.

O único poder efetivo contra o fascismo é, para Adorno, a autonomia, o poder de reflexão, a auto-crítica, a auto-determinação e a não-participação. É necessário tornar esse mecanismo explícito e impor uma educação consciente que não premia a dor e a capacidade de suportá-la e não reprima o medo. Quando o medo é permitido, provavelmente os efeitos deletérios do medo insconsciente e reprimido desaparecem juntamente com o sadismo. Por isso a preocupação com a educação das crianças, justamente o mais espantoso desse movimento antidemocrático foi a utilização delas como escudos humanos ou soldados marchando.

Ainda que os mecanismos subjetivos não se dissolvam completamente, a educação pode despertar na pré-consciência elementos de resistência que podem criar um clima desfavorável ao extremismo, permitindo às pessoas alguma chance de evitá-lo. O mais difícil da educação contra o fascismo é justamente ir contra o "espírito do mundo" já que a sociedade repousa na persecução dos próprios interesses frente aos interesses dos demais e isso se sedimenta no caráter das pessoas, tornando a frieza um traço básico da antropologia.

Adorno chamava de "participação oportunista" a atitude de alemães durante o nazismo perceber antes de qualquer coisa sua própria vantagem e não dar com a língua nos dentes para não se prejudicarem, sendo o silêncio e o terror apenas consequência dessa atitude. A frieza como indiferença ao destino do outro faz com que poucas pessoas se mobilizem e os algozes possuem plena consciência disso. O centro da educação contra o fascismo deve ser, portanto, revelar os jogos de força e poder por trás das formas políticas, tratando de forma crítica o Estado que coloca os seus interesses acima do povo do qual deveria cuidar. Assassinos de gabinete e ideólogos continuarão existindo, mas as pessoas subordinadas devem combater tudo aquilo que perpetua sua própria servidão através do conhecimento e da educação e não se tornarem assassinas à medida em que assassinam os outros.

O filme "A Fita Branca" (foto), de Michael Haneke, 2010, ilustra bem todos esses aspectos do fascismo presentes em uma pequena aldeia no interior da Alemanha antes da Primeira Guerra e como o clima foi se formando para que anos mais tarde o nazismo se instalasse no país. Algumas cenas que presenciamos nessas manifestações golpistas são de extrema gravidade e preocupação, pois mostram como o fascismo está crescendo em nosso tecido social. Caso o Estado não se ocupe da educação, da cultura, da assistência social e da segurança/inteligência especializada para desmobilizar esses grupos e suas fontes de financiamento, teremos problemas muito mais sérios no futuro.

É mesmo muito preocupante e não é caso de intervenção psiquiátrica!

Fontes: Theodor Adorno, "A Educação após Auschwitz".
Freud, "O mal estar na cultura" e "Psicologia de massas e análise do eu".
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MPF interpela CFM sobre vedação à prescrição da cannabis medicinal

O Ministério Público Federal (MPF) instaurou procedimento preparatório (PP), nesta segunda-feira (17/10), para apurar a compatibilidade da Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 2.324/2022, de 11 de outubro de 2022, o qual restringe a prescrição de cannabis medicinal apenas para alguns casos de convulsões. O MPF baseia-se no direito social fundamental à saúde, nos termos da Constituição Federal. O documento autoriza uso do canabidiol apenas para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa.

De acordo com o procurador da República Ailton Benedito de Souza, responsável pelo procedimento, a efetivação do direito fundamental à saúde é fator indutor da cidadania e da dignidade humana. Ele destaca que resoluções da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) também dispõem sobre o canabidiol (Resoluções RDC nº 327/2019 e RDC nº 335/2020), em especial sobre fabricação, importação, comercialização e prescrição de produtos de Cannabis para fins medicinais, autorizando os médicos a prescreverem a substância. Além disso, destaca que tais atos normativos podem ocasionar repercussões administrativas, financeiras e técnicas no Sistema Único de Saúde (SUS).

Providências

Como primeiras providências, o MPF requisitou à Anvisa documentos que consubstanciem as evidências científicas que sustentam a RDC nº 327, de 9 de dezembro de 2019, e a RDC nº 335, de 24 de janeiro de 2020. Igualmente, requisitou ao CFM documentos que traduzem as evidências científicas que sustentam a Resolução CFM nº 2.324/2022, de 14 de outubro de 2022. Por fim, requisitou ao Ministério da Saúde informações sobre as repercussões administrativas, financeiras e técnicas no SUS das resoluções da Anvisa e do CFM. O prazo para as respostas é de 15 dias.

Íntegra da Portaria nº 202/2022 que instaura o Procedimento Preparatório.

Protesto de médicos e pacientes no CREMERJ

Hoje aconteceu uma manifestação de médicos e pacientes contrários à Resolução nº 2.324 do CFM no Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, CREMERJ.

Carlos Minc, deputado estadual, anunciou que a entidade não irá punir os médicos que prescrevem cannabis medicinal. A conselheira do CREMERJ Margareth Martins Portella garantiu que não haverá perseguição aos médicos e médicas que decidirem seguir prescrevendo a planta ou ministrar aulas sobre cannabis.

“Esta não deverá ser uma preocupação do Conselho hoje. Não faremos força-tarefa para procurar médicos que estão prescrevendo canabidiol ou dando aula. Não será esta a conduta do conselho. Não vamos sair caçando quem estiver infringindo a Resolução do CFM”, afirmou Margareth Martins Portella, médica e conselheira do CREMERJ.

O Conselho Federal de Medicina abrirá Consulta Pública à população para receber contribuições sobre a polêmica Resolução nº 2.324, que restringe prescrição de cannabis medicinal no Brasil.

Resolução do CFM vai na contra-mão de outras resoluções semelhantes

A Resolução nº 2.324 vai na contra-mão de outras resoluções do conselho, como a que permitiu que médicos prescrevessem medicamentos sem eficácia científica comprovada contra a COVID-19 durante a pandemia, como hidroxicloroquina e a ivermectina. Na época (2021) o CFM afirmou "o CFM delibera que é decisão do médico assistente realizar o tratamento que julgar adequado, desde que com a concordância do paciente infectado — elucidando que não existe benefício comprovado no tratamento farmacológico dessa doença e obtendo o consentimento livre e esclarecido. O ponto fundamental que embasa o posicionamento do CFM é o respeito absoluto à autonomia do médico na ponta de tratar, como julgar mais conveniente, seu paciente; assim como a autonomia do paciente de querer ou não ser tratado pela forma proposta pelo médico assistente".

Fonte: MPF, Porta Cannabis e Saúde e CFM


Cinco meses depois policiais são presos pela morte de Genivaldo

Na última quinta-feira (13/10) a 7a Vara da Justiça Federal de Sergipe determinou a prisão dos policiais da PRF responsáveis por torturar e matar asfixiado no porta-malas de uma viatura policial utilizando uma granada de gás lacrimogêneo Genivaldo Santos, de 38 anos, pessoa com esquizofrenia que foi abordada por eles por estar numa motocicleta sem capacete. O caso ganhou repercussão internacional e foi noticiado aqui num artigo que tratou do estado de exceção que vivemos nos tempos atuais. A demora da prisão e todas as tentativas em vão de abafar a morte de Genivaldo são exemplo de como autoridades lidam com a morte violenta de pessoas pobres em nosso país. Não fossem as filmagens e a repercussão do caso, possivelmente haveria mais um caso de impunidade, como tantos outros que ocorrem cotidianamente em comunidades pobres do Brasil por agentes do Estado que se acham no direito de decidir entre a vida e a morte de cidadãos comuns.

Os policiais rodoviários William de Barros Noia, Kleber Nascimento Freitas e Paulo Rodolpho Lima Nascimento foram presos e enviados ao Presídio Militar de Sergipe, em Aracaju. Eles foram denunciados por crime de tortura, homicídio qualificado e abuso de autoridade.

A viúva de Genivaldo, Fabiana Santos, disse ao G1 que “a justiça está sendo feita pela morte do meu marido. Eles começaram a pagar pelo crime que cometeram”.

Genivaldo ficou 11 minutos e 27 segundos exposto a gases no porta-malas transformado em câmara de gás de regime nazista. Os peritos encontraram no sangue de Genivaldo altas concentrações de ácido sulfídrico que pode ter causado convulsões e parada respiratória. Segundo eles o esforço físico intenso e o estresse causado pelos policiais provocaram um colapso no pulmão sob efeito dos gases tóxicos.

Em condições normais esses policiais deveriam ter sido presos em flagrante, mas foram afastados administrativamente e ficaram aguardando o julgamento em liberdade. Enfim, a justiça foi corrigida na quinta pela Justiça Federal.


Setembro Amarelo: Suicídio cresce mais entre adolescentes no Brasil.

No mês da conscientização sobre o suicídio, um alerta: o suicídio cresce no Brasil, principalmente em adolescentes. É urgente a necessidade de uma política pública voltada ao suicídio.

Suicídio no mundo

O número global de mortes por suicídio aumentou quase 20.000 nos últimos 30 anos, mostra uma pesquisa publicada em 2021.

O aumento ocorreu apesar de uma diminuição significativa nas taxas de suicídio específicas por idade de 1990 a 2019, de acordo com dados do Global Burden of Disease Study 2019.

O crescimento populacional, o envelhecimento da população e as mudanças na estrutura etária da população podem explicar o aumento no número de mortes por suicídio.

O Global Burden of Disease Study 2019 inclui informações de 204 países sobre 369 doenças e lesões por idade e sexo. O conjunto de dados também inclui estimativas populacionais para cada ano por localização, faixa etária e sexo.

O maior aumento de mortes ocorreu na região de renda média baixa, onde o número de mortes por suicídio aumentou em 72.550 (de 232.340 para 304.890).

O crescimento populacional (300.942; 1.512,5%) foi o principal contribuinte para o aumento geral do número total de mortes por suicídio. O segundo maior contribuinte foi a estrutura etária da população (189.512; 952,4%). A taxa de suicídio por habitantes, contudo, sofreu tendência global de queda.

Suicídio no Brasil

No Brasil a situação se inverte, com tendência de alta nas taxas de suicídio por habitante.

Um estudo de 2018 que analisou as taxas de suicídio em seis capitais entre 2006 e 2015, Porto Alegre, Recife, Salvador, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro, concluiu que houve um aumento de 4% da taxa de suicídio ajustado para a idade.

Já o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde de 2021 mostra que entre 2010 e 2019 houve um aumento anual de 43% no número de suicídios no Brasil, bem acima da taxa de crescimento populacional no mesmo período (10,17%), com uma taxa de suicídio por 100 mil habitantes de 6,6. As maiores taxas foram encontradas nas regiões Sul e Centro-Oeste.

Homens apresentam um risco 3,8 vezes maior de suicídio do que mulheres (10,7 por 100 mil vs 2,9). Contudo, o aumento verificado no período foi similar entre homens e mulheres (29% e 26%).

Em relação à faixa etária, o maior aumento foi em adolescentes (81%), principalmente em menores de 14 anos (aumento de 113%).

Na América Latina, o Brasil aparece em sétimo lugar no ranking de suicídios em 2019 de acordo com o levantamento do Global Economy, em que Guiana, Suriname e Uruguai aparecem nos primeiros lugares com taxas bem superiores e Colombia, Peru e Venezuela com taxas bem inferiores ao Brasil (veja a figura).

Baixe o Manual Guia de Prevenção do Suicídio em Crianças e Adolescentes

Fontes: Ministério da Saúde, Medscape.com, Global Economy, Current Opinion in Psychiatry (https://doi.org/10.1097/YCO.0000000000000412)


Obrigado Jô!

Em 2009 tive a honra e o privilégio de ser entrevistado por você no Programa do Jô. Era um jovem psiquiatra e acabara de lançar o livro "Entendendo a Esquizofrenia", resultado de 8 anos de trabalho com pacientes com esquizofrenia e seus familiares. Na época não acreditei quando um de seus produtores me telefonou, convidando-me para participar do programa. Foi uma alegria e uma oportunidade incrível! Ter sido entrevistado por você Jô, além de uma experiência única, foi decisivo para que o meu trabalho e de minha equipe ganhasse visibilidade. Eu já era um grande fã seu desde a infância, assistindo ao "Viva o Gordo" e a um espetáculo seu numa grande casa de show do Rio de Janeiro. Também segurava o sono para conseguir assistir ao menos aos primeiros blocos do Programa do Jô, que cada vez começava mais tarde. A minha entrevista havia sido gravada e, acredite, foi ao ar no dia 22/06/2009, dia do meu aniversário, a 1:30h da madrugada. Logo após a exibição, comecei a receber milhares de e-mails de seus telespectadores e o website Entendendo a Esquizofrenia, recém-lançado à época e que hoje continua no ar, foi alçado à primeira página do Google logo no dia seguinte, tamanho o prestígio e o alcance de seu programa. Hoje, 13 anos depois, nosso trabalho amadureceu, estamos preparando a terceira edição do livro, formamos 9 grupos comunitários de ajuda-mútua para pessoas com esquizofrenia e outros transtornos mentais em diferentes bairros do Rio de Janeiro, concorremos a prêmios internacionais, sendo finalistas em um deles, e novos projetos se abrem na busca de uma saúde mental mais inclusiva e no combate ao preconceito e ao estigma na sociedade. Hoje acordei e a primeira notícia que li com muito pesar foi da sua partida. Gostaria que você soubesse dos desdobramentos desta entrevista e do quanto nos ajudou e que me orgulho muito de ter sido entrevistado por você, a quem só tenho a agradecer e admirar. Por sua sensibilidade com as pessoas com deficiência e pelas oportunidades que deu a tantas pessoas anônimas e humildes em seu programa, tenho certeza que ficaria feliz em ter conhecimento dos desdobramentos do nosso trabalho. Mais uma vez a minha gratidão! Descanse em paz, sua luz jamais se apagará entre nós!

https://vimeo.com/32211689


Entenda porque falta Venvanse nas farmácias de todo país.

Matéria de primeira capa do jornal O Globo de hoje alerta para o uso indiscriminado e sem receita do Venvanse, o que tem provocado a falta do medicamento em todo país. Estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais já estão com os estoques esgotados e quem precisa para tratamento médico não está conseguindo acesso ao medicamento. Veja a matéria na íntegra!

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Um novo fenômeno de comportamento em São Paulo e no Rio vem assustando os médicos: o consumo de um remédio tarja preta por pessoas absolutamente saudáveis, com o objetivo de aumentar o foco nas tarefas do dia a dia. Trata-se do Venvanse, nome comercial do dimesilato de lisdexanfetamina, fabricado pelo laboratório Takeda, sem genérico. Seu uso foi liberado pela Anvisa para apenas duas situações: tratar pessoas com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), e pacientes diagnosticados com o transtorno da compulsão alimentar periódica (TCAP), distúrbio psiquiátrico que leva o paciente a comer de forma descontrolada, mesmo sem ter fome.

O perfil dos usuários, no entanto, tem sido outro. Vestibulandos, estudantes de concursos públicos, jovens empresários e profissionais da área da tecnologia que querem aumentar a capacidade de concentração. Em São Paulo já é praticamente impossível encontrar a medicação. No Rio a onda está crescendo e ela já começa a rarear no mercado. E olhe que seu preço não é barato: o medicamento sai em média entre R$ 450,00 e R$600,00.

O risco do mau uso do Venvance é brutal. Ele faz com que o sistema nervoso entre em um estado que os médicos chamam de “situação luta e fuga”, ou seja, faz com que o corpo fique permanentemente voltado e preparado para fugir de uma ameaça. O mecanismo por trás disso é um pico de produção de noradrenalina e cortisol, aumento da frequência cardíaca, crescimento da circulação do sangue para os músculos e contração das pupilas. O resultado, na prática, é que a pessoa fica mais atenta e focada no que acontece a sua volta, o raciocínio fica mais ágil, além do pico enérgico, que os usuários chamam de “ficar ligado”, ou “performar”.

— Eu me sinto a mulher maravilha. Depois de uns trinta minutos me dá uma euforia, alegria, vontade de fazer tudo. Minha autoconfiança melhora, consigo me concentrar nas atividades, tenho disposição e energia para os estudos. Meu rendimento e produtividade aumentam. Posso fazer várias coisas ao mesmo tempo e tenho o foco e a concentração como se estivesse fazendo apenas uma. Sou uma pessoa mais legal quando eu tomo também — explica a estudante Thaina Alves, de 25 anos.

Thaina passou dois anos tomando o remédio diariamente, sem pausas. Começou com uma dosagem menor de 30 miligramas e evoluiu para doses maiores de 50 e 70 miligramas. Recentemente, percebeu os efeitos colaterais do uso incorreto da droga – insônia, forte dor de cabeça e o vício.

Para os pacientes com TDAH, o uso faz sentido. Eles sofrem de uma disfunção em uma área do cérebro chamada de córtex pré-frontal, responsável pelo foco e pragmatismo. A noradrenalina é fundamental para o funcionamento adequado dessa região.

Entre os médicos é unanimidade: todos alertam que o uso sem indicação traz graves riscos.

— Este é um fármaco estimulador de noradrenalina, bem como cocaína. As pessoas estão tomando o medicamento para ter energia, ficar acordado a noite estudando, melhorar atenção, em alguns casos, como recreação e misturando com o álcool para potencializar o efeito, e sem um acompanhamento médico. Isso é sério e gravíssimo. A pessoa quer passar a noite em claro para estudar, seria muito melhor tomar um café ou algo do tipo, porque não traria tanto risco a saúde — afirma Cristiana Góes, médica de neurologia do Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A neurologista garante que a lista de malefícios de quem compra e usa o Venvanse sem indicação médica são muito maiores do que o lado positivo dos efeitos que o remédio garante por algumas horas.

— O medicamento pode causar hipertensão, arritmia e até mesmo ataque cardíaco. Um paciente com tendência de esquizofrenia ou transtorno bipolar, por exemplo, pode ter um surto maníaco e psicótico. O Venvanse não é um medicamento que se pode “brincar”. O uso prolongado pode levar ainda à depressão, pois você está estimulando um neurotransmissor a te dar energia, e quando há essa interrupção abrupta dá um reboot — explica Góes.

O remédio só é vendido com prescrição médica. Mas cresce o número de grupos ilegais de venda do produto nas redes sociais. A psiquiatra Camila Magalhães, fundadora do centro Caliandra Saúde Mental, em São Paulo, diz que já percebe o aumento de casos entre jovens e empresários há um tempo e de forma ilegal.

— É preocupante a forma como essas pessoas estão adquirindo o remédio pela internet, sem receita. Há famílias que me procuram dizendo que o filho está “imprestável”, porque não quer sair da cama, não tem energia, motivação para nada — reitera a psiquiatra.

A venda ilegal do remédio causou uma falta generalizada do medicamento nas prateleiras das principais redes de farmácia de São Paulo. Também não há previsão de quando o medicamento será reabastecido nas drogarias. A carência começa a ser sentida em outros estados do país também, como no Rio, onde já há algumas lojas de fármacos sem estoque para o Venvanse.

O Venvanse também começou a ser usado erroneamente para o emagrecimento. Isso porque ao estimular a noradrenalina, e o corpo entrar em estado de atenção pleno, o cérebro também emite uma resposta para a inibição do apetite. Ao tomar o comprimido pela manhã, por exemplo, a fome só irá surgir no final do dia, perto do horário do jantar. Há o depoimento de pessoas na internet que chegaram a perder mais de dez quilos usando o medicamento em poucos meses.

Como é o caso da gerente comercial Bruna Rodrigues, 40 anos, ela começou a usar o medicamento para perder os quilos que tanto a incomodavam. Foram três meses de uso e cinco quilos eliminados. Segundo Rodrigues, foi o único auxilio para conseguir manter a dieta em dia.

— Eu não conseguia fazer dieta intermitente, porque eu sentia muita fome pela manhã. Depois que passei a usá-lo, realmente tira o apetite. Eu me forçava a comer para não ficar fraca, porque eu não tinha fome nenhuma — diz.

Há estudos que comprovem o uso do venvanse para controlar a compulsão alimentar sendo seguro e com pouca rejeição no organismo dos usuários, porém não há pesquisas cientificas e nem indicações médicas para o uso do fármaco quando o assunto é emagrecimento. A gerente comercial afirma que sabia dos riscos, mas que ao ver os primeiros sinais dos resultados, o receio foi deixado de lado.

— Ao tomar o comprimido eu me sentia bastante produtiva também. Fazia várias coisas ao mesmo tempo como curso de inglês, academia, trabalhava mais de oito horas por dia e não me sentia cansada. É milagroso. Eu voltaria a tomar ele com certeza — afirma Rodrigues.

Fonte: O Globo (15/07/2022)


O Suicídio, por Emile Durkheim

Emile Durkheim (1858-1917) é considerados um dos pais da Sociologia e um dos mais destacados fundadores da escola francesa de Sociologia. Seu estudo sociológico sobre o suicídio foi publicado no ano de 1897 e é considerado uma obra que almeja a viabilidade da Sociologia enquanto uma ciência social numa época em que ela ainda não havia alcançado um status acadêmico. Seu propósito é demonstrar cientificamente que o suicídio pode ter uma determinação social externa ao indivíduo.

Durkheim destaca em sua obra três tipos de suicídio segundo suas causas:

1) suicídio egoísta: motivado por um isolamento exagerado do indivíduo da sociedade, o que o transforma num solitário, um marginalizado, que não possui laços suficientemente sólidos de solidariedade com o grupo social;

2) suicídio altruísta: é o outro extremo, em que o indivíduo está demasiadamente ligado à sociedade e acredita que seu suicídio o tornará herói ou mártir;

3) suicídio anômico: o mais significativo para os fins de sua obra. Anomia traz a noção de ausência de normas, uma pessoa que não soube aceitar os limites morais que a sociedade impõe, que aspira mais do que pode, que possui demandas acima de suas possibilidades reais e cai, portanto, no desespero. A anomia é atualmente, para Durkheim, um estado crônico do mundo econômico, ligado tanto a crises recessivas, mas principalmente a crises de prosperidade.

"A anomia é aceita como algo normal, sendo vista de fato como uma 'marca de distinção moral' e é permanentemente repetido que faz parte da natureza humana encontrar-se eternamente insatisfeita, de estar sempre avançando, sem descanso ou parada, em direção a uma indefinida meta".

A seguir destacamos alguns trechos de seu capítulo sobre o Suicídio Anômico que julgamos essenciais à reflexão sobre o tema do suicídio de uma forma que é pouco abordado nos tempos atuais.


"O poder governamental em vez de ser regulador da vida econômica, tornou-se instrumento e servidor - o guardião dos contratos individuais - cujo único e principal objetivo é prosperar, o dogma do materialismo econômico.

O mercado tornou-se o fim supremo dos indivíduos e da sociedade. Os apetites que ele põe em jogo viram-se livres de toda a autoridade que os limitasse. Essa apoteose do bem-estar colocou os apetites acima de toda a lei humana e retê-los transformou-se numa espécie de sacrilégio.

As cobiças se levantam sem saber onde pousar definitivamente. Nada é capaz de acalmá-las, uma vez que o objetivo para o qual se voltam está infinitamente além de tudo o que possam atingir. A realidade parece não ter valor em comparação com o que as imaginações febris vislumbram como possível; desligamo-nos dela, portanto, mas para nos desligar do possível quando, por sua vez, ele se torna realidade. Temos sede de coisas novas, de prazeres ignorados, de sensações inominadas, mas que perdem todo sabor assim que se tornam conhecidas. Então, ao sobrevir o menor revés, não temos força para suportá-lo.

A febre despenca e percebemos que o tumulto era estéril e que todas aquelas sensações novas, indefinidamente acumuladas, não conseguiram constituir um sólido capital de felicidade. O sábio, que sabe desfrutar os resultados obtidos sem sentir eternamente a necessidade de os substituir por outros, encontra razões para se apegar à vida quando soa a hora das contrariedades. Mas o homem que sempre esperou tudo do futuro, que viveu com os olhos fixos no futuro, nada tem no passado que o console dos amargores do presente, pois o passado foi para ele apenas uma série de etapas atravessadas com impaciência. O que lhe permitia não enxergar a si mesmo era o fato de sempre contar com encontrar mais adiante a felicidade que ainda não encontrara até então.

Mas eis que foi detido em sua caminhada; não tem mais nada, nem atrás nem à frente, em que repousar o olhar. O cansaço, aliás, é suficiente por si só para produzir o desencanto, pois é difícil não sentir, com o tempo, a inutilidade de uma perseguição interminável.

A impaciência febril em que se vive não inclina à resignação. Quando se tem como único objetivo ultrapassar constantemente o ponto a que se chegou, como é doloroso ser empurrado para trás!

Em suas características essenciais, a natureza humana é sensivelmente a mesma em todos os cidadãos. Não é ela, portanto, que pode atribuir às necessidades o limite variável que lhes seria obrigatório. Por conseguinte, na medida em que dependem apenas dos indivíduos, elas são ilimitadas. Em si mesma, abstraindo-se todo poder exterior que a regula, nossa sensibilidade é um abismo sem fundo que nada é capaz de preencher.

Desejos ilimitados são insaciáveis por definição e não é sem razão que se considera a insaciabilidade como sinal de morbidez. Perseguir um fim inacessível por hipótese é, portanto, condenar-se a um perpétuo estado de descontentamento. Sem dúvida, às vezes o homem tem esperança sem qualquer razão, e, mesmo sem razão, a esperança tem suas alegrias. Pode ser, portanto, que ela o sustente por algum tempo; mas não poderia sobreviver indefinidamente às decepções reiteradas da experiência. Ora, o que o futuro pode dar a mais do que o passado, uma vez que nunca é possível chegar a um estado em que possamos permanecer e que não podemos sequer nos aproximar do ideal vislumbrado? Assim, quanto mais tivermos, mas iremos querer ter, sendo que as satisfações recebidas só farão estimular as necessidades, em vez de as aplacar.

Para que o prazer seja sentido e venha atenuar e meio que encobrir a inquietude dolorosa que os acompanha, é preciso pelo menos que esse movimento sem fim se desenvolva sempre à vontade e sem que nada o tolha. Ora, seria um milagre nunca surgir algum obstáculo intransponível.

Quando esse prazer é entravado, a inquietação permanece só com o mal-estar que traz consigo. Nessas condições, estamos presos à vida apenas por um fio muito tênue e que a cada momento pode ser rompido.

É o despertar da consciência a força reguladora para que as necessidades morais do homem desempenhem o mesmo papel que o organismo para as necessidades físicas. Isso significa que essa força só pode ser moral. É o despertar da consciência que veio romper o estado de equilíbrio no qual o animal dormitava. A coerção material nesse caso não teria efeito; não é com forças físico-químicas que se pode modificar os corações. Na medida em que os apetites não são automaticamente contidos por mecanismos fisiológicos, eles só podem se deter diante de um limite que reconheçam como justo.

Só a sociedade, seja diretamente e em seu conjunto, seja por intermédio de um de seus órgãos, está em condições de desempenhar esse papel moderador, pois ela é o único poder moral superior ao indivíduo, e cuja superioridade este último aceita."

E como agir em uma sociedade que se tornou instrumento e servidor do individualismo e de um poder regulador que se curvou à obsessão pela prosperidade e o materialismo?

Fonte: trechos retirados do capítulo V p.303-354 do livro O Suicídio - Estudo de sociologia, de Emile Durkheim. Editora Martins Fontes. 3a ed. 2019.


Programa Entrelaços é citado em ampla revisão sobre iniciativas da família na saúde mental em países de baixa e média renda

Gostaria de dividir com vocês a alegria de termos sido citados por uma revisão internacional sobre iniciativas de família nos países de baixa e média renda. Foi a primeira revisão deste tipo e inclui todos os artigos publicados até 2021 de acordo com os critérios deles. É um reconhecimento por todo o trabalho que juntos estamos realizando e serve de estímulo para seguirmos adiante.

O artigo de revisão foi realizado por pesquisadores do King’s College, em Londres, considerado uma das 15 maiores faculdades de medicina do mundo, e publicado na Revista de Psiquiatria Social e Epidemiologia Psiquiátrica (veja a íntegra do artiqo aqui).

As autoras Hannah Morillo, Sophie Lowry e Claire Henderson, do Departamento de Higiene e Medicina Tropical do King’s College, selecionaram 27 de um total de 2815 artigos encontrados na literatura científica até 2021 que atenderam aos seguintes critérios da revisão: (1) intervenções precisavam ser baseadas na família; (2) direcionadas a pessoas com psicose; (3) ocorrer em países de renda baixa ou média. Foram incluídos os estudos que trataram de um amplo espectro de intervenções, como terapia de família, psicoeducação de família, workshops com famílias, intervenções de suporte à família em situações de crise, intervenções focadas na família, dentre outras modalidades. A situação econômica dos países seguiu a definição do Banco Mundial e da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), incluindo 109 países. As pesquisadoras fizeram uma busca sistemática em diferentes bases de dados, como Medline, Embase, Global Health, PsycInfo, Social Policy and Practice, CINAHL, Scopus, Google Scholar, além de bases de dados chinesas.

Os estudos variaram quanto à sua duração entre 1,5 e 24 meses e todos os desfechos foram considerados, categorizados em quatro domínios: (1) condição do paciente (sintomas, recaídas, adesão, hospitalização, recovery); (2) autogestão (autocuidado, conhecimento sobre psicose, funcionamento psicossocial, habilidade para buscar ajuda); (3) desfecho social (ambiente familiar, emoção-expressada, funcionamento social e ocupacional); (4) resultados de entrega (satisfação dos usuários, comparecimento e administração da intervenção).

Os estudos selecionados foram de países como China (11 estudos), India (4), Iran (2), Vietnam (2), Egito (2), África do Sul (1), Brazil (1), Indonesia (1), Tailândia (1), Nicarágua (1) e Paquistão (1). 69% das intervenções ocorreram em zonas rurais e 74% foram baseadas na comunidade. Vinte estudos incluíram pacientes com esquizofrenia, três com transtorno bipolar e esquizofrenia (inclusive o do Entrelaços), um com transtorno esquizoafetivo e esquizofrenia e outro somente com pessoas com transtorno bipolar.

Todos os estudos têm como objetivo fundamental implementar intervenções baseadas na família e são apoiados em dois pilares: componentes psicoterapêuticos e compartilhamento de experiências e aprendizados.

Entre os componentes psicoterapêuticos estão a abordagem dos sintomas da psicose através de conversas sobre sofrimento mental e emocional, sejam por meio de técnicas de psicoeducação (22 dos 27 estudos, incluindo o do Entrelaços), terapia de família ou abordagem sistêmica. O formato das sessões de psicoeducação variou de workshops a discussões interativas em um número de 3 a 14 sessões, de 15 minutos a 2 horas de duração cada. Os conteúdos foram de uma série de seminários sobre esquizofrenia a diferentes tratamentos e reabilitação, cuidados à família e aos pacientes, estratégias de enfrentamento, emoção expressada e padrões de comunicação e interação entre os membros da família.

Quando a psicoeducação é oferecida, aspectos negativos da emoção expressada, ou mais especificamente, o superenvolvimento crítico, hostil e emocional do ambiente familiar, são efetivamente reduzidos e o cuidado da pessoa com psicose é melhorado.

O compartilhamento de experiências e aprendizado visa criar uma rede de suporte social que contribua para o cuidado e suporte contínuos das famílias e para um networking comunitário.

Os estudos reportaram múltiplos desfechos, como impactos positivos na saúde dos pacientes (26 estudos, incluindo o do Entrelaços), maiores taxas de recovery, menores taxas de recaída, menor gravidade de sintomas (como os sintomas negativos), melhora da autogestão, maior conhecimento sobre a esquizofrenia e melhora das habilidades de autocuidado (esses dois últimos enfatizados pelo estudo do Entrelaços). Desfechos sociais, como melhora do funcionamento social e ocupacional, foram destacados por todos os estudos, exceto três que não reportaram nenhuma mudança social.

Entre as estratégias de administração das intervenções, 68% são conduzidos por profissionais de saúde, dentre eles psiquiatras, psicólogos e enfermeiros, enquanto os demais por assistentes sociais, pesquisadores e trabalhadores de ONG. Entre os fatores que ajudaram na implementação são citados pesquisas preliminares com o tema e a população alvo, a robustez do método, a importância do engajamento das famílias e a adaptação cultural. Entre as dificuldades estão o estigma por parte das famílias e da comunidade e o abatimento do envolvimento das famílias com o passar do tempo.

As autoras ressaltam que esta é a primeira revisão que sintetiza os achados sobre as intervenções familiares em países com baixa e média renda e que foi encorajador perceber o aumento do número de estudos – 60% deles entre 2011 e 2020. Elas argumentam que uma estratégia de intervenção culturalmente bem fundamentada na comunidade pode servir de base para a reabilitação das pessoas com transtorno mental nesses países e que esses estudos podem informar os formuladores de políticas públicas de saúde e os profissionais e acadêmicos do campo para criação de novas intervenções custo-efetivas que possam partilhar as tarefas de cuidado com a família. A ideia é aproveitar o capital social das famílias para compartilhar com elas o cuidado, seja através da psicoeducação, do aconselhamento/terapia familiar ou de um programa combinado com tratamento de reabilitação psicossocial.

Evidências na última década têm registrado resultados favoráveis à intervenção familiar, particularmente desfechos clínicos, funcionamento social, resultados positivos aos familiares e melhora da qualidade de vida. Além disso, análises econômicas apontam para resultados positivos na poupança das famílias e melhor relação custo-benefício.


A morte de Genivaldo escancara o ‘estado de exceção’ em que vivemos

Genivaldo talvez não soubesse os riscos que corria ao parar sua moto por ordem dos policiais rodoviários federais numa estrada de Sergipe. Certamente o fez por ser um homem de bem e que nada tinha a temer. Provavelmente não passou por sua cabeça furar o bloqueio policial, não por medo de ser alvejado ou perseguido. Simplesmente porque isso não passava mesmo por sua cabeça. Ele seria parado, revistado, teria seus documentos averiguados e então liberado. Talvez pudesse ser multado ou ter sua moto apreendida por estar sem capacete, mas esta seria, na sua concepção, a pior das consequências.

O que Genivaldo não sabia mesmo é que por ser preto, pobre e esquizofrênico (detesto utilizar esse adjetivo para designar alguém com um sofrimento mental, mas aqui se faz necessário), ele estava naquela condição numa posição de extrema vulnerabilidade e de extremo risco diante daqueles agentes do Estado.

Um Estado que pratica cotidianamente, um dia sim outro também, o extermínio de pessoas pobres e, na sua maioria, pretas, em nome da ordem e da lei através de suas polícias que se encarregam de uma limpeza étnica e que, na maioria das vezes, permanece impune. Impune, pois no ‘estado de exceção’ o extermínio não está ao alcance das leis e não depende de uma ameaça bélica, ele se desloca para situações sociais e econômicas para se converter em práticas habituais, do nosso cotidiano. Isso pode ser testemunhado nas operações policiais em comunidades das grandes cidades com mortes de pessoas inocentes, como ocorreu dias antes da morte de Genivaldo em uma favela do Rio de Janeiro.

Mas nunca isso esteve tão escancarado como neste trágico episódio de Genivaldo, que coincidentemente trazia Jesus ao seu lado no nome. Genivaldo de Jesus foi covardemente amarrado, com cordas nas mãos e nos pés, carregado até o porta-malas de um carro da PRF, onde foi torturado e morto asfixiado numa cena que revela a crueldade e a similitude com as câmaras de gás dos campos de concentração nazistas. Ele até tentou sua última cartada: mesmo com as mãos amarradas, tentou puxar de seu bolso uma receita de remédios psiquiátricos para provar sua inocência. Para afirmar que ainda lhe restava sua dignidade, que ali estava um cidadão, seu último fio de esperança antes de sucumbir diante do gás lacrimogêneo que um policial deflagrava no interior do veículo enquanto os outros seguravam fechada a porta da mala, ainda esmagando as pernas de Genivaldo.

Giorgio Agamben, filósofo italiano, é um dos que melhor define o ‘estado de exceção’, a zona de indistinção em que uma vida pode ser excluída pelo Estado e o campo (de concentração). No ‘estado de exceção’ o poder soberano, como por exemplo exercido por sua polícia, decide pôr fim a uma vida ainda que ela seja sagrada, revelando essa ambiguidade que, se por um lado não seja lícito sacrificá-la, por outro é um direito dispor dela sem cometer homicídio. A vida que se tira torna-se o objeto da relação política com o Estado, uma vida abandonada. O campo, definido por ele a partir dos seus estudos dos campos nazistas, é o lugar em que o ‘estado de exceção’ se materializa, ou seja, o lugar no qual a vida e a lei entram em um limiar de indistinção e aonde o Estado se sente “autorizado” a matar. É o dispositivo através do qual o poder soberano captura a vida, mas não qualquer uma. Para Agamben, o ‘estado de exceção’ é o paradigma da política contemporânea, um projeto biopolítico de produzir um povo sem fratura na obsessão pelo desenvolvimento. É um conceito polar, em que de um lado estão os sujeitos políticos e do outro a multiplicidade de corpos necessitados, os quais devem ser eliminados a favor dos primeiros.

O caso de Genivaldo não poderia ser mais emblemático. E tudo que ocorreu, da maneira como ocorreu e com as alegações posteriores da PRF, inclusive, só veem reafirmar a teoria de Agamben. Os policiais estavam imbuídos do propósito que lhes é transmitido pelos seus superiores e pelo Estado, que consideram natural essa política de extermínio e o ‘estado de exceção’. Agiram como num campo de concentração nazista, ignoraram uma vida humana e submeteram o corpo de Genivaldo, àquela altura um mero conjunto de carne e osso, a uma execução em câmara de gás improvisada. Depois tentaram forjar um atendimento em um pronto-socorro para dar ares de normalidade. A PRF se pronunciou através de uma nota, da qual destaco os seguintes trechos: “o homem de 38 anos resistiu ativamente a uma abordagem de uma equipe da PRF. Em razão da agressividade os agentes empregaram técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo para sua contenção e o indivíduo foi conduzido à delegacia da polícia civil da cidade. Diante dos delitos de desobediência e resistência, após ter sido empregado com legitimidade o uso diferenciado da força, tem-se por ocorrida uma fatalidade, desvinculada da ação policial legítima.” Os policiais foram afastados depois da repercussão do caso na mídia. Repito, foram afastados do serviço.

Não fossem as testemunhas oculares no local e o vídeo feito a partir de um smartphone, Genivaldo de Jesus seria mais uma vítima oculta da barbárie. Hoje ele escancarou para o Brasil e o mundo o ‘estado de exceção’ em que vivemos. A sociedade precisa reagir ou assistiremos atônitos a tudo isso acontecendo diante dos nosso olhos e às custas de milhares de vidas inocentes.


Apresentação para obtenção de grau de Mestre em Psiquiatria pelo IPUB-UFRJ

Bom dia a todas e todos. Inicialmente gostaria de agradecer à minha orientadora, Professora Maria Tavares Cavalcanti, ao meu coorientador, Professor Alexandre Keusen, e aos professores da banca, Pedro Gabriel Delgado e Eduardo Vasconcelos. Esta dissertação de mestrado é motivo de muito orgulho e emoção para mim, pois representa um marco de um trabalho que desenvolvo com uma equipe muito comprometida e unida, da qual aqui presentes estão os meus amigos Elias Carim e Olga Leão, além das famílias e dos usuários que nos dão a honra de sua confiança e convivência. A eles eu dedico esta dissertação e esta defesa.

O objetivo da minha dissertação é analisar o processo de constituição do Programa Entrelaços enquanto uma rede comunitária de apoio e inclusão de pessoas com transtorno mental e de suas famílias na cidade do Rio de Janeiro, que, ao longo dos últimos dez anos, foi se desenvolvendo como resultado deste trabalho.

Apesar de eu mencionar 10 anos, não poderia ignorar todo o trabalho anterior que representa o começo e também o processo que desaguou no que hoje é conhecido como Entrelaços. A importância dos encontros que ocorreram – e que continuarão ocorrendo – é notável. Eles foram e são imprescindíveis para a coconstrução deste projeto, que, como veremos, é resultado da interação entre profissionais, familiares, usuários e outros colaboradores, inclusive os membros desta banca, que nos honraram com suas valiosas contribuições para o amadurecimento da experiência. Como costumo afirmar em outras apresentações sobre este projeto, é sempre um desafio discorrer sobre os componentes e mecanismos que tornaram essa experiência possível, pois nada no Entrelaços é desconectado. Como sugere o próprio nome do programa, tudo está entrelaçado. São como forças vetoriais que afetam suas partes, num constante devir, e que produzem um novo conjunto que jamais volta a ser o que era antes. Portanto, quem pôde vivenciar o programa Entrelaços, e fez parte dele, sabe bem o tamanho deste desafio que hoje eu enfrento. Saibam que eu dei o meu melhor para que este trabalho e esta apresentação pudessem ser apreciados pelos senhores.

Existem momentos que marcam nossas vidas. Eu poderia aqui citar vários: a minha formatura na UFRJ, a residência, meu casamento, o nascimento dos meus filhos. São marcos que funcionam como divisores de água, você sai diferente do que entrou, aquilo lhe ensinou algo diferente que tocou seu coração, mostrou um novo caminho e modificou profundamente, transformando sua prática. Por isso, eu reafirmo que escrever esta dissertação me emocionou em diversos momentos, porque ela foi um presente e uma oportunidade de reflexão sobre toda uma trajetória profissional até aqui, uma vez que o Programa Entrelaços e minha vida estão definitivamente entrelaçados.

Como aluno da UFRJ, fiz o meu internato eletivo aqui no IPUB e tive a Professora Maria como coordenadora. Durante o mestrado, eu fiquei refletindo como isso pôde ter me influenciado a escolher a residência do Pinel ao invés do IPUB, e confesso: não encontrei uma resposta. Mas acredito que a Professora Maria possa ter plantado, sem saber, uma semente da psiquiatria comunitária em mim com seus ensinamentos. O fato foi que fiz minha residência no Pinel, e que este foi um outro marco na minha vida.

Um período difícil, mas riquíssimo, de muitas reflexões e resistências. Sim, resisti ao questionamento de um modelo biomédico que, para um aluno recém-formado em Medicina, soava como um acinte. Tive contato com professores e verdadeiras autoridades na reforma psiquiátrica brasileira, de modo que aquela semente que havia sido plantada pela professora Maria começava a germinar e a incomodar.

Meu primeiro emprego como psiquiatra foi no Hospital-dia do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro, na época dirigido pelo meu coorientador Alexandre Keusen. E, lá no Hospital-dia, então coordenado pelo meu amigo Elias Carim, comecei um grupo de medicação com os usuários. Este grupo logo se desdobrou em um pequeno grupo de psicoeducação com os familiares dos usuários, em que, juntamente com a psicopedagoga Ana Beatriz Bezerra, começamos a desenvolver algumas dinâmicas educativas sobre sintomas, problemas e tratamentos, utilizando cartolinas e pilot.

O professor Alexandre, ao tomar conhecimento do projeto, nos convidou a ampliar a psicoeducação para todos os setores do CPRJ, falando de sua experiência, de seu mestrado e doutorado, e me apresentando a experiência da escola de Pittsburgh, de Carol Anderson, e a de Manchester, de Nicholas Tarrier e Christine Barrowclough, em que eles realizavam seminários (workshops) com as famílias, seguidos de encontros em grupo. Resolvemos então adotar este modelo e a realizar anualmente os seminários no auditório do CPRJ e também grupos mistos, de familiares e pacientes, entre os ciclos de seminários de forma ininterrupta de 2002 a 2008.

Com a saída do professor Alexandre da direção do CPRJ para o Setor de Família do IPUB, fomos convidados por ele a desenvolver um programa de pesquisa e assistência às famílias de pessoas com transtorno mental severo no IPUB. Neste mesmo ano, 2009, lançamos o livro Entendendo a Esquizofrenia e inauguramos o portal de mesmo nome na internet com finalidade psicoeducacional. Ambos eram reivindicações antigas das famílias que atendíamos e traziam os conteúdos que eram ministrados nos seminários.

A vinda para uma instituição universitária representou uma guinada no projeto, com um mergulho mais profundo na literatura sobre os dois pilares que àquela altura já faziam parte, os conceitos de emoção-expressada e de vulnerabilidade ao estresse, e o aprofundamento nos estudos sobre recovery, que na época chegava com força ao Brasil, e o desenvolvimento de metodologias como a terapia de solução de problemas e a entrevista motivacional, através do método LEAP. Esses tornaram-se referenciais teóricos-chaves e também constituíram um conjunto de práticas que na nossa análise contribuíram para o desenvolvimento do Programa Entrelaços.

Uma questão causava-nos certa inquietação. Por que as famílias atendidas no CPRJ não deram continuidade aos encontros depois que deixamos a instituição? Onde falhamos ou o que deixamos de oferecer para que depois de todo o trabalho eles não dessem sequência aos encontros de forma espontânea ou autônoma? Quais as características mais importantes e quais técnicas poderiam ser desenvolvidas para que os grupos se tornassem autossustentáveis? Assim, fomos aos livros e artigos científicos buscar respostas.

Tínhamos clareza que nossa iniciativa, para ser bem-sucedida, precisava estar ancorada na reabilitação psiquiátrica/psicossocial e nas práticas da reforma psiquiátrica brasileira e do recovery. Era preciso desenvolver um método que fosse capaz de compreender a pessoa em sua integralidade, no seu contexto de vida e em seu ambiente, concentrando-se em seus pontos fortes e objetivos pessoais, tratando-a como a verdadeira especialista se nosso objetivo final fosse ampliar as conquistas sociais dessa população, possibilitando a ela uma maior participação da vida comunitária e, com isso, alcançando mudanças culturais na sociedade em relação ao transtorno mental.

Como afirma Benedetto Saraceno, a finalidade da reabilitação é aumentar o poder de contratualidade da pessoa com sua comunidade, com sua casa, com seu trabalho e com sua rede social. Esse é o objetivo maior da reforma psiquiátrica brasileira, a verdadeira transformação social, que os serviços não se tornem local central ou exclusivo das pessoas com transtorno mental.

Esse objetivo representa um enfrentamento da ideologia dominante da psiquiatria, da “terapêutica orientadora”, como nomeia Basaglia, que violenta e oprime a pessoa com transtorno mental por estabelecer a tutela em uma relação hierarquizada do cuidado, centralizada em uma visão biologicista que prioriza o diagnóstico, o sintoma e a medicação em detrimento do sujeito, muitas vezes tratado como cidadão de segunda classe, ao qual é negado o direito de tomar decisões sobre sua vida e de correr riscos. Ora, o que prega a reabilitação psiquiátrica – e é reforçado pelo movimento dos usuários da saúde mental que deu origem ao paradigma do recovery – é justamente a liberdade para tomar decisões, correr riscos e assumir o controle de sua vida, devendo os serviços criar ambientes que permitam à pessoa reconhecer seu próprio domínio e não ensinar modos prescritivos de viver a vida e formar pessoas especialistas em doenças. É crucial, portanto, que um programa de reabilitação seja capaz de desenvolver a prontidão do usuário para encarar o desafio de sua própria recuperação, o que não pode ser alcançado numa relação hierarquizada de poder e tutela.

Isso traz definitivamente para primeiro plano a relação que se estabelece entre os usuários e os serviços e os profissionais de saúde, com implicações profundas e transformadoras para a atitude desses últimos. Como enfatiza Basaglia, antes de qualquer ato terapêutico, precisamos nos conscientizar do nosso papel objetificado de excludentes, no qual somos o tempo todo investidos pela sociedade. A importância do vínculo entre profissional e usuário é central para que as transformações terapêuticas aconteçam, estabelecendo-se uma relação tautológica, ou seja, quanto mais um profissional utiliza estratégias de recovery com o usuário, mais ele desenvolve a prontidão e o senso de recovery em sua jornada de reabilitação.

Para que esta relação se torne possível, precisamos, enquanto profissionais, vivenciar os valores da reabilitação e do recovery, o que implica acreditar no potencial para aprendizado e crescimento de todos os usuários, cultivando a esperança e o otimismo. Não é possível criar uma atmosfera verdadeiramente terapêutica onde reina o “ferimento iatrogênico da desesperança”, na fala de Patricia Deegan, uma das maiores violências que a psiquiatria pode praticar a um ser humano. Para ela, essa atitude provoca “endurecimento de corações” e torna as pessoas desencorajadas a lutar por suas vidas. Portanto, se não é possível a reabilitação sem prontidão, não é possível prontidão sem o desmantelamento da hierarquia e a revolução do cuidado que parte da transformação da relação terapêutica. Como disseca Basaglia, a objetificação do paciente localiza-se no interior dessa relação, que, em última análise, é a relação do usuário com a sociedade que delega ao terapeuta a relação de cura e tutela.

Então, nosso método de trabalho precisava criar uma atmosfera que permitisse desenvolver a prontidão, sem a qual os demais objetivos deste trabalho não poderiam ser alcançados. Mas com o cuidado de não reproduzirmos um otimismo Pollyanna e afastarmos aqueles mais céticos ou mais dominados pela ideologia psiquiátrica vigente. O enquadramento teórico deveria ser capaz de deslocar a concepção organicista, centrada no modelo biomédico, que transmite uma visão fatalista do transtorno mental, para um modelo que priorizasse os aspectos ambientais e sociais, mostrando que a recuperação não é somente possível, mas provável, com a criação de ambientes mais tolerantes, participativos e com maior interação social. O modelo de vulnerabilidade ao estresse de Zubin e Spring já vinha sendo utilizado por nós no CPRJ, mas merecia nosso aprofundamento até mesmo para que a equipe compreendesse melhor e passasse a adotar o modelo como um substituto do modelo clínico kraepeliniano. O modelo de vulnerabilidade é um fio condutor para as demais discussões sobre a emoção-expressada e ambiente familiar, sobre a reabilitação psiquiátrica, sobre o recovery e sobre a reforma psiquiátrica.

Mais recentemente, pesquisadores renomados, como Laurence Kirmayer, professor de psiquiatria social e transcultural da Universidade de McGill, Quebec, Arthur Kleinman, professor de antropologia médica de Harvard, e Rose Birk, professor de sociologia do Kings College em Londres, publicaram livros e artigos que defendem um reengajamento teórico e científico capaz de desconstruir a distinção binária entre biologia e ambiente que possa compreender melhor os processos neurológicos, ecológicos e sociais que constituem a vida humana e as preocupações políticas centrais do nosso campo, como a iniquidade e a injustiça. Um sintoma psiquiátrico não pode ser compreendido como simples resultado de processo fisiopatológico porque ele não pode ser extirpado do ser vivente, que dá sentido ao seu sofrimento e se adapta a ele, e que, na maioria das vezes, é seu conhecimento experiencial e sua resposta pessoal a parte mais importante e a que ele mais valoriza. As intervenções de reabilitação devem contribuir para uma construção social da personalidade, ajudando a reformular as noções do self e as formas de existir a partir de suas próprias práticas e teorias institucionalizadas que formam o sujeito a priori.

A própria Patrícia Deegan, ao dar seu testemunho em primeira pessoa, enfatiza que o sintoma negativo, como o retraimento social e emocional, é reflexo de um sujeito traumatizado pelas consequências ambientais do adoecer e muitas vezes de suas experiências negativas com os serviços de saúde, amedrontado e desencorajado a se expor socialmente de novo. Brown e Wing, responsáveis pelo modelo socioambiental da esquizofrenia, consideravam que não era possível distinguir as “deficiências secundárias” provenientes das consequências sociais e médicas de estar doente, como a perda da autoconfiança, da autoestima, o estigma e o institucionalismo dos sintomas primários.

Esse é o nosso propósito com os referenciais que deslocam para o ambiente as perspectivas terapêuticas, quando reafirmamos que um ambiente mais tolerante, menos opressivo, crítico ou superestimulante, uma família menos intrusiva e mais flexível, capaz de compreender melhor o transtorno, enfrentar melhor os problemas e se comunicar de maneira mais efetiva, um sujeito mais empoderado e consciente de sua situação social e política e uma rede social e comunitária mais inclusiva são capazes de transformar a clínica, promover a recuperação e transformar a realidade social e cultural dominante.

A psiquiatria tornou-se um objeto de poder sobre as necessidades materiais e espirituais das pessoas, afastando-se do seu propósito primário para submeter as pessoas ao controle, à manipulação e à vontade da própria psiquiatria, negando sua essência. Se por um lado isso pode gerar um desconforto e uma insegurança aos que nos procuram – não oferecemos soluções prontas e nem verdades absolutas –, por outro lado, propomos substituir a certeza pela relatividade, o controle pelo empoderamento, a explicação generalizada pela compreensão local, a arrogância pela humildade, compreendendo que somente  a coconstrução coletiva de significados e definições a partir da experiência e a corresponsabilização por todas as etapas deste processo são capazes de levantar as pontes de entendimento as quais tanto precisamos, para estabelecer as correlações entre os mecanismos biossociais e as narrativas culturais e históricas para a construção de um movimento de base que consiga de fato as transformações sociais e culturais propostas.

Três técnicas foram desenvolvidas no programa para esse percurso: a entrevista motivacional; a construção de conhecimento; e a terapia de solução de problemas. Elas são utilizadas de forma imbricada, de maneira que todos as vivenciam, aprendem e utilizam com o objetivo de criar e garantir um espaço de fala igual para todos. Um espaço de geração de conhecimento, um espaço para solução de problemas e, finalmente, uma consciência social.

A entrevista motivacional parte de uma atitude inicial por parte da equipe de respeito, empatia, prioridade para a escuta e compreensão. Como uma dança em que você conduz o seu parceiro ou sua parceira pelo salão, sem dirigi-lo, porém amparando-o e guiando-o. Compreende ter uma atitude e um diálogo colaborativo, estabelecendo parcerias em um mesmo nível e tomando decisões conjuntas. Ter uma atitude evocativa, extraindo dos participantes as habilidades e recursos que eles já possuem, acreditando no potencial de realização de cada um, e honrando a autonomia do outro, reconhecendo que todos são capazes de tomar decisões e assumir responsabilidades. Essa forma de comunicação é utilizada desde o acolhimento e ao longo de todo o programa, e é uma adaptação da técnica desenvolvida pelo psicólogo americano Xavier Amador na convivência com seu irmão que foi diagnosticado com esquizofrenia. Também é apresentada aos usuários e seus familiares ao longo dos seminários.

Essa técnica e o exercício constante da escuta, em que todos têm o direito à palavra, permitem um lugar de fala para todos. O lugar de fala possui uma função estratégica primordial na constituição do programa. Como enfatiza Pierre Clastres, a fala demarca uma linha divisória entre as pessoas e o poder. Em sociedades com Estado, a fala aparece atrelada a relações de poder. Quem fala detém antes de tudo o poder de falar. Ela está associada ao direito – o governante tem o direito de falar e seus súditos a obrigação de ouvir. Em sociedades sem Estado, como as tribos ameríndias estudadas por Clastres, em que o poder encontra-se diluído na população, o pajé, considerado o chefe da tribo, tem a fala enquanto dever, pois dele se espera a palavra, porém ela não está atrelada ao direito, as pessoas não são obrigadas a parar para ouvir. E ele sabe que pode ser abandonado por sua tribo se passar ao extremo oposto, visto que a violência é a essência do poder e na tribo o eixo do poder recai sobre o corpo da sociedade, que, por sua vez, não permite o deslocamento de forças que perturbem a ordem social.

Além da igualdade de fala permitir a distribuição de poder entre os participantes e a equipe técnica, é através da fala que ocorre o processo de autoexpressão e autodescoberta, intensificando as relações dentro do grupo. Também é através das relações no grupo que o sujeito pode formar a sua subjetividade. Segundo Merleau-Ponty, a fala é o elemento existencial para a autoexpressão e é através dela que se pode explorar o pensamento dos outros e a habilidade de pensar com os outros, possibilitando uma linguagem nova a ser compartilhada, um senso de coletividade por meio do diálogo. Maturana, na mesma linha, defende que a comunicação através da linguagem produz um conhecimento que é sempre relacional, como se o mundo que enxergamos não fosse um mundo objetivo e estático, mas um mundo num constante devir pela interação e coconstrução com os outros. O nosso ponto de vista torna-se, portanto, resultado de um acoplamento com a experiência do outro, ampliando nossa perspectiva para que o outro tenha lugar, e, juntos, possamos construir um mundo.

Os seminários abordam os conceitos-chaves do programa, procurando desconstruir a lógica psiquiátrica centralizada no modelo médico para uma visão mais socioambiental e política, explorando caminhos de recuperação através da construção coletiva. O conhecimento não é produzido exclusivamente nesta etapa, mas ao longo de todo o percurso, inclusive na etapa de solução de problemas, em que se produz conhecimento experiencial. Como afirma Paulo Freire, “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”, e de fato cada ciclo de seminários do Entrelaços sofre transformações a partir das contribuições de seus participantes. O objetivo desta etapa é cultivar uma curiosidade crítica e uma disponibilidade para reconstruir, reformar o saber existente, ou, como afirma Paulo Freire, “superar a ingenuidade da experiência”, produzindo uma inquietação indagadora que possa provocar um comportamento voltado ao desvelamento, à descoberta de algo novo, que possa abrir portas antes nunca abertas, o que Freire denomina como o “fenômeno vital do aprendizado”. A intenção é que esta etapa produza uma abertura para o desenvolvimento de novas habilidades e de uma nova expertise nos usuários e familiares, convidando-os à etapa seguinte, de solução de problemas.

A terapia de solução de problemas utilizada na etapa de grupos foca na situação social da pessoa mais do que nela própria ou em seus sintomas e busca por soluções de vida real e que ocorram no ambiente natural. Essa compreensão dos problemas ou dos sintomas dentro de sua unidade social requer uma visão sistêmica e um olhar ampliado tanto a nível micro como macrossocial para unidades sociais mais amplas, incluindo o sujeito, sua família, os serviços, os profissionais e sua comunidade. Nesta etapa são debatidos os problemas do dia a dia das famílias, mas também as questões relacionadas aos serviços de saúde, à comunidade e sociedade como um todo, à cultura e à política. De acordo com Silvia Lane, psicóloga responsável pelo desenvolvimento da perspectiva sócio-histórica da psicologia social no Brasil, as transformações sociais requerem um deslocamento do sujeito alinhado, justaposto à sociedade, para que ele passe a se movimentar e a se conscientizar sobre as contradições do processo histórico e possa, portanto, combater e se contrapor às determinações sociais da ideologia dominante.

Segundo a filósofa Judith Butler, o sujeito vive uma ambivalência entre domínio e submissão com a lei e o Estado, que constitui a priori sua subjetividade, como se estivesse apaixonadamente apegado a eles, o que, em última análise, é o apego à sua própria existência. Como afirmou Michel Foucault, o biopoder exercido pelo Estado atua através da disciplina e da regulação criando normas que são internalizadas pelos sujeitos e servem de formas de poder sobre a vida e o corpo tanto na esfera individual como em grupos sociais, sendo um poder que opera a nível de nossas práticas cotidianas e estabelece uma rede de vigilância, não somente de cima para baixo, mas também de baixo para cima e lateralmente, enredando o sujeito como um ente complacente. Mas, como sugere o próprio Foucault, o mesmo sistema que oprime também oferece condições para subvertê-lo, sendo possível desenvolver um discurso reverso em que a normalidade possa ser questionada e reformulada. Da mesma forma que somos constringidos, também somos capacitados, sendo necessário desenvolver um pensamento crítico capaz de distinguir entre as situações de constrição e de capacitação para que seja possível reformar o sujeito e emancipá-lo.

A “arte de não ser governado” está no movimento do sujeito em “questionar a verdade quanto aos seus efeitos de poder e de questionar o poder quanto aos seus discursos de verdade”, cultivando uma atitude criticamente autorreflexiva. Como Butler define, citando Giorgio Agamben, o sujeito deve ter sua existência como potência que não se esgota por nenhuma interpelação particular, inaugurando a possibilidade de um ser mais aberto e mais ético no futuro.

É esse processo dialético, através das reflexões produzidas pelos encontros do Programa Entrelaços, que permitiu que os grupos se constituíssem como grupos autônomos na comunidade. A estrutura dos grupos pode ser compreendida pela microssociologia de Erving Goffman, pela análise do processo grupal proposto por Silvia Lane e pela teoria de habitus e campos de Pierre Bordieu. A estrutura de um grupo é a de um sistema frágil e que tende à dissolução pelas diferentes tensões entre seus integrantes, que possuem diferenças sociais, culturais, ideológicas e que podem formar distintas parcerias dentro do grupo. Contudo, existem elementos estruturais que trabalham a favor de sua manutenção: as personalidades que se formam pelos papéis sociais e pelo processo de identificação, a interação entre os diferentes atores, que se esforçam moralmente para sustentar as relações e seus papéis, e as propriedades do grupo em si, como seus objetivos e propósitos políticos. Quanto mais fortes os elementos estruturais se consolidarem, maiores as chances de sobrevivência do grupo. Os sujeitos interiorizam a experiência do outro e constituem suas identidades a partir desta interação, e, em um processo de “mediação ideológica”, de acordo com Lane, o grupo supera suas individualidades e se conscientiza das suas condições históricas comuns, levando-o a um processo crescente de identificação e atividades conjuntas. Lane chama esse processo de espiral, em que o grupo deixa de ser um grupo objeto, circular, para um grupo-sujeito, um movimento social, em que o próprio grupo se produz e adquire sua autonomia.

Portanto, o grupo perpassa as questões das identidades para questões sociais e políticas que dão corpo a uma ideologia. Neste sentido que Pierre Bordieu afirma existir uma relação dialética de mão dupla entre sujeito e sociedade, em que o habitus individual, representado por um sistema de esquemas estruturantes dos indivíduos pelas pressões e conjunturas sociais, e o campo social se constituem mutuamente. Para Butler, o habitus de Bordieu é o equivalente à ideologia, como ela mesmo afirma: “a reprodução das relações sociais, a reprodução das habilidades é a reprodução da sujeição”. É o que testemunhamos no Entrelaços: à medida em que os grupos evoluem enquanto movimento social, adquirem independência e autonomia institucional e passam a liderar iniciativas sociais, políticas e culturais, como no Trilhando Caminhos e na Locomotiva de Saúde Mental, além de intercâmbios com outros movimentos sociais da cidade, como o Loucura Suburbana.

Gostaria de finalizar esta apresentação com um texto de Ana Pitta que eu pincei de um capítulo de seu livro Reabilitação Psicossocial no Brasil, e que, para mim, merece destaque por sua leveza, sensibilidade poética e profundidade, e por isso quis destacar na abertura da discussão de minha dissertação.

Estou ciente de que esta é mais uma etapa deste caminhar e que ainda temos muito a conquistar. Ter desenvolvido esse conjunto de técnicas e conseguido formar grupos autônomos que hoje se constituem política e socialmente nos coloca um imperativo ético de ampliar essa experiência para um número maior de usuários e familiares, com a possibilidade de entrada no sistema de saúde através dos pares especialistas enquanto integrantes das equipes de saúde mental, podendo levar essa discussão para dentro dos serviços e alcançar um maior número de profissionais, o que verdadeiramente pode transformar a cultura psiquiátrica neste país. Isso implica em muitas conquistas, como redução de medidas coercitivas na psiquiatria e ampliação das garantias de direitos humanos dos usuários, difusão do recovery e maior participação dos usuários e familiares nos serviços e nas políticas públicas e maior participação social e inclusão dos usuários em suas comunidades.

Vou terminar citando o sociólogo Anthony Giddens. Em um mundo cada vez mais globalizado e impessoal, em que a esfera pública é excessivamente institucionalizada e a privada cada vez mais enfraquecida e amorfa, as localidades de relativa pequenez e informalidade que possibilitam novos laços pessoais através da autorrevelação mútua e da busca por reciprocidade e apoio oferecem pontos de acesso para o engajamento contestatório e para oportunidades para o ativismo. A recriação de espaços e a vida comunitária são importantes mecanismos para a subjetividade humana, capazes de formar sujeitos ressurgentes contra a institucionalização excessiva do Estado.

Muito obrigado!


Maior estudo mundial identifica genes específicos na esquizofrenia

O maior estudo genético internacional já realizado até hoje sobre esquizofrenia identificou grande número de genes específicos que poderiam desempenhar papéis importantes nesse transtorno psiquiátrico. Um grupo de centenas de pesquisadores de 45 países analisou o DNA de 76.755 pessoas com esquizofrenia e 243.649 sem ela para entender melhor os genes e os processos biológicos que sustentam a condição.

Esse estudo realizado pelo Consórcio de Genômica Psiquiátrica (do inglês Psychiatric Genomics Consortium, o PGC) foi liderado por cientistas da Universidade de Cardiff – País de Gales (Michael O’Donovan e James Walters) e teve a participação de pesquisadores(as) da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp (Sintia Belangero, Ary Gadelha, Rodrigo Bressan, Cristiano Noto, Marcos Santoro e Vanessa Ota) e Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (Quirino Cordeiro).

Os(as) pesquisadores(as) encontraram um número muito maior de associações genéticas com a esquizofrenia como nunca antes reportado, e essas associações estão presentes em 287 regiões diferentes do DNA, ‘o código do corpo humano” e, usando métodos avançados, identificaram que dentro dessas regiões 120 genes são capazes de contribuir fortemente para o distúrbio, explica a pesquisadora-líder Sintia Belangero, coautora do artigo Mapping genomic loci implicates genes and synaptic biology in schizophrenia, publicado sobre o tema na última quarta-feira (6/4) na revista Nature, uma das mais importantes e prestigiadas publicações científicas do mundo.

Além disso, os cientistas mostraram que o risco genético da esquizofrenia é visto em genes concentrados em células cerebrais chamadas neurônios, mas não em qualquer outro tipo de tecido ou célula, sugerindo que é o papel biológico dessas células crucial para a esquizofrenia e que esses genes específicos do cérebro podem auxiliar a desenvolver novas terapias para esta grave doença mental.

Os pesquisadores também relatam que este estudo mundial lança a luz mais forte até agora sobre as bases genéticas da esquizofrenia. “Grande parte dos pacientes não respondem bem aos tratamentos atuais, e é fundamental que estudos desse nível sejam realizados para avançarmos na compreensão do transtorno e auxiliar no desenvolvimento de novos alvos terapêuticos”, diz outro coautor do artigo, Ary Gadelha.

“Os resultados revelaram que 24% da origem da doença pode ser atribuída a um tipo de variante genética chamada SNVs (do inglês Single Nucleotide Variants), mas lembrando que outros fatores genéticos podem estar envolvidos como as mutações, além de fatores ambientais também, esclarece a professora Sintia Belangero.

“Pesquisas anteriores já haviam mostrado associações entre a esquizofrenia e sequências anônimas de DNA, mas raramente foi possível vincular as descobertas a genes específicos”, disse o co-líder da pesquisa professor Michael O’Donovan.

“O presente estudo não só aumentou enormemente o número dessas associações genéticas, mas agora também conseguiu associar muitas delas a genes específicos, um passo necessário no que continua sendo uma jornada difícil para entender as causas deste distúrbio e identificar novos tratamentos”, complementa o pesquisador da universidade galesa.

Sobre a esquizofrenia

A esquizofrenia é um distúrbio psiquiátrico grave que afeta aproximadamente 24 milhões de pessoas no mundo e mais de 2 milhões de brasileiros. Isso representa que 1 em 300 pessoas em todo o mundo tem a doença e essa taxa é ainda maior entre adultos (1 em cada 222 pessoas). Ela se inicia mais comumente no final da adolescência ou no início da vida adulta e está frequentemente associada a uma deficiência significativa nas áreas pessoais, familiares, sociais, educacionais e ocupacionais da vida do portador de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Além de ser o maior estudo desse tipo já realizado, dessa vez os pesquisadores incluíram no levantamento mais de 7.000 pessoas com ancestralidade afro-americana e latina, pessoas normalmente não incluídas em estudos mundiais. Eles dizem que esse é um pequeno passo para garantir que os avanços que vêm dos estudos genéticos possam beneficiar pessoas além daquelas de ancestralidade europeia.

Algumas iniciativas já estão acontecendo para modificar esse cenário e incluir uma maior representatividade de populações africanas e latino-americanas. A principal delas é o projeto Populations Underrepresented in Mental Illnesses Association Studies (PUMAS), que inclui quatro países na África e três na América Latina, incluindo o Brasil. No país, o projeto começou recentemente sua coleta de dados e é liderado pelo professor Ary Gadelha e pela professora Sintia Belangero (Escola Paulista de Medicina – EPM/Unifesp), com a colaboração do mesmo grupo de pesquisadores(as) já citados.

Embora haja grande número de variantes genéticas envolvidas na esquizofrenia, o estudo mostrou que elas estão concentradas em genes expressos em neurônios, apontando estas células como o local mais importante da doença. As descobertas também sugerem que a função anormal dos neurônios na esquizofrenia afeta muitas áreas do cérebro, o que poderia explicar seus diversos sintomas, que podem incluir alucinações, delírios e distorções de pensamento.

Um estudo complementar envolvendo muitos dos mesmos cientistas e liderado pelo Broad Institute of Harvard (EUA), também publicado em paralelo nesta mesma edição da Nature, examinou mutações que, embora muito raras, têm grandes efeitos sobre uma pequena proporção de pessoas que as carregam, revelando que alguns genes e aspectos que se sobrepõe a outras doenças como autismo e doenças de neurodesenvolvimento.

O Consórcio de Genômica Psiquiátrica é financiado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) dos EUA e, no Brasil, o estudo foi apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

O professor Rodrigo Bressan, também coautor do artigo, menciona que “estudos mundiais como este, que são frutos de uma grande colaboração global, são marcos para a compreensão da origem da esquizofrenia”. Sintia Belangero ressalta que ainda há uma longa jornada pela frente após essas descobertas, mas esses resultados vão facilitar os caminhos a serem percorridos.

“Este estudo demonstra a importância e o poder de grandes amostras em estudos genéticos, a fim de construir conjuntos de dados maiores e mais diversificados”, concordam Marcos Santoro e Vanessa Ota, pesquisadores da Unifesp igualmente integrantes das pesquisas.

Fonte: Alexandre Milanetti - Unifesp


Invega Hafyera é aprovado pelo FDA: tratamento para esquizofrenia com duas injeções anuais.

A Janssen Pharmaceutical, braço farmacêutico da Johnson & Johnson, anunciou que o FDA, órgão norte-americano equivalente a ANVISA, aprovou o antipsicótico atípico de longa duração INVEGA HAFYERA ™ (palmitato de paliperidona de 6 meses), o primeiro e único injetável semestral para o tratamento de esquizofrenia em adultos. Antes da transição para INVEGA HAFYERA ™, os pacientes devem ser tratados adequadamente com INVEGA SUSTENNA® (palmitato de paliperidona de 1 mês) por pelo menos quatro meses, ou INVEGA TRINZA® (palmitato de paliperidona de 3 meses) por pelo menos um ciclo de injeção de 3 meses.

A aprovação do FDA de INVEGA HAFYERA ™ é baseada nos resultados de um estudo global de Fase 3, de 12 meses de duração, randomizado, duplo-cego e de não inferioridade que envolveu 702 adultos (idades 18-70) vivendo com esquizofrenia de 20 países diferentes. Os resultados mostraram não inferioridade de INVEGA HAFYERA ™ em comparação com INVEGA TRINZA® no desfecho primário de tempo para a primeira recaída ao final do período de 12 meses. Os resultados descobriram que 92,5 por cento dos pacientes tratados com INVEGA HAFYERA ™ e 95 por cento tratados com INVEGA TRINZA® estavam livres de recidiva em 12 meses. Recaída foi definida como hospitalização psiquiátrica, aumento na pontuação total da Escala de Síndrome Positiva e Negativa (PANSS), aumento em pontuações de itens individuais da PANSS, autolesão, comportamento violento ou ideação suicida / homicida.

O perfil de segurança observado no ensaio foi consistente com estudos anteriores de INVEGA SUSTENNA® e INVEGA TRINZA®, sem o surgimento de novos efeitos colaterais. As reações adversas mais comuns (≥5%) no ensaio clínico INVEGA HAFYERA ™ foram infecção do trato respiratório superior (12%), reação no local da injeção (11%), aumento de peso (9%), dor de cabeça (7%) e parkinsonismo (5%).

Recentemente, o National Council for Mental Wellbeing e a American Psychiatric Association atualizaram suas orientações e diretrizes para o tratamento da esquizofrenia para expandir o uso recomendado de injetáveis ​​de ação prolongada para pacientes adultos que vivem com esquizofrenia.

INVEGA HAFYERA ™ é um tratamento injetável de ação prolongada administrado por um profissional de saúde na região superior das nádegas a cada seis meses. INVEGA HAFYERA ™ dissolve-se lentamente na corrente sanguínea após a injeção, resultando em tratamento contínuo e controle dos sintomas ao longo de seis meses.

“Os tratamentos injetáveis ​​de ação prolongada oferecem uma série de vantagens em comparação com a medicação oral para a esquizofrenia, incluindo o alívio da necessidade de se lembrar de tomar a medicação diariamente, taxas de descontinuação mais baixas e tratamento sustentado por períodos mais longos”, disse Bill Martin, Ph.D., Chefe da área terapêutica global, Neurociência, Janssen Research & Development, LLC. “A aprovação de hoje nos permite repensar como administramos esta doença crônica, oferecendo aos pacientes e cuidadores o potencial para uma vida menos definida pela medicação para esquizofrenia.”

INVEGA HAFYERA ™ começa a ser comercializado nos EUA este ano e tem previsão de chegar ao Brasil em 2023.

Fonte:Janssen Pharmaceutical


Setembro Amarelo - Mês de prevenção do suicídio

Desde 2014, a Associação Brasileira de Psiquiatria – ABP, em parceria com o Conselho Federal de Medicina – CFM, organiza nacionalmente o Setembro Amarelo®. O dia 10 deste mês é, oficialmente, o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio, mas a campanha acontece durante todo o ano.

São registrados mais de 13 mil suicídios todos os anos no Brasil e mais de 01 milhão no mundo. Trata-se de uma triste realidade, que registra cada vez mais casos, principalmente entre os jovens. Cerca de 96,8% dos casos de suicídio estavam relacionados a transtornos mentais. Em primeiro lugar está a depressão, seguida do transtorno bipolar e abuso de substâncias.

Com o objetivo de prevenir e reduzir estes números a campanha Setembro Amarelo® cresceu e hoje conquistamos o Brasil inteiro.

Como resultado de muito esforço, em 2016, garantimos espaços inéditos na imprensa e firmamos muitas parcerias. Conseguimos também iluminar monumentos históricos, pontos turísticos, pela primeira vez o Cristo Redentor, espaços públicos e privados no Brasil inteiro. Centenas de pessoas participaram de caminhadas e ações para a conscientização sobre este importante tema.

Esta é uma página completa com material disponível para auxiliar a todos. Assim sendo, aproveite os materiais e participe da campanha durante todo o ano.

São diversos materiais de uso público: Diretrizes para a Divulgação e Participação da Campanha Setembro Amarelo®, materiais online para download, a Cartilha Suicídio Informando para Prevenir e todo o material para a imprensa.

Participe, divulgue a campanha entre os seus amigos e ajude a salvar vidas!

Acesse: https://www.setembroamarelo.com

Baixe gratuitamente a cartilha posts_2019_guia_prevencao_do_suicidio


OMS lança documento a favor dos direitos humanos e contra as medidas coercitivas na saúde mental

Esta foi uma semana importante para a Saúde Mental mundialmente. A Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou em 10 de junho as novas “Orientações sobre serviços de saúde mental comunitários: promoção de abordagens centradas na pessoa e baseadas nos direitos”. Desde a última versão da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências (CDPD), em 2016, esta é a orientação que trata mais especificamente do direito das pessoas com transtorno mental de serem cuidadas através de abordagens baseadas na sua comunidade e com total respeito aos direitos humanos, não se atendo somente aos cuidados com a saúde mental, mas ampliando o campo de ação para o apoio à vida cotidiana, incluindo questões como moradia, educação e emprego.

Uma preocupação central das novas orientações da OMS é com o abuso dos direitos humanos e com as práticas coercitivas que continuam sendo muito comuns nos serviços psiquiátricos. Apesar de muitos países virem reformando suas leis, políticas e serviços relacionados à saúde mental, até o momento poucos países estabeleceram as estruturas necessárias para atender às exigências internacionais sobre os direitos humanos. As práticas coercitivas, como internação e tratamento forçados, contenção manual, física e química, condições de vida pouco higiênicas e abuso físico e verbal, ainda são muito comuns em países de todos os níveis de renda.

O relatório traz exemplos de serviços de saúde mental baseados na comunidade que demonstraram boas práticas em relação a medidas não coercitivas, inclusão na comunidade e respeito à capacidade legal das pessoas tomarem decisões sobre seu tratamento e sua vida, em países como Brasil, Índia, Quênia, Mianmar, Nova Zelândia, Noruega e Reino Unido, e é complementado por sete cadernos técnicos que trazem orientações para a implantação de novos serviços que respeitem os direitos humanos em diferentes categorias, como serviços comunitários, de crise, hospitais, assistência à moradia e apoio de pares.

No vídeo do lançamento, transmitido AO VIVO para todos os países (assista ao video abaixo), vários convidados de diferentes continentes enfatizaram a importância de reduzir as medidas coercitivas nos serviços de saúde mental, que ferem os direitos das pessoas com transtorno mental de tomar decisões sobre sua vida e restringem a sua liberdade individual, e de repensar os serviços de maneira que eles ofereçam alternativas que respeitem os direitos humanos integralmente.

Norman Lamb, que já foi membro do Parlamento inglês e Ministro de Estado para Assistência e Apoio no Departamento de Saúde, cuidando diretamente das políticas públicas de saúde mental no Reino Unido, teve uma fala muito contundente sobre essas necessidades: “Testemunhei tantas vezes os sistemas de saúde mental falhando com as pessoas. Não fornecendo uma resposta adequada às suas necessidades. Muito frequentemente, os serviços de saúde mental são medicalizados. Eles não abordam as causas sociais que podem estar por trás dos problemas de saúde mental. Lutei contra o tratamento desumano e a desvantagem experimentada por pessoas com problemas de saúde mental. Violações rotineiras dos direitos humanos das pessoas. Testemunhei uma dimensão racial perturbadora nos serviços de saúde mental, onde, em nosso país, se você é jovem e negro, tem muito mais probabilidade de ser detido de acordo com nossa Lei de Saúde Mental”.

Martin Zinkler, psiquiatra alemão, que foi diretor do Hospital de Heidenheim, explicou como foi possível transformar o serviço de psiquiatria do hospital de um serviço tradicional para um serviço que chega à comunidade: “oferecemos à população local uma escolha, a escolha de quatro configurações de tratamento para qualquer problema de saúde mental em adultos. Tratamento em casa com visitas domiciliares diárias, tratamento em hospital-dia e também internação. Cada um desses tratamentos sem tempo de espera. Os usuários do serviço são incentivados a decidir onde querem ser tratados e apoiados. Oferecemos às pessoas uma gama completa de opções de tratamento em qualquer uma dessas configurações, como terapia psicológica, individual ou em grupo, arteterapia, dançaterapia e também apoio social. Pessoas que optam por sair do tratamento são bem-vindas, pessoas que querem parar de tomar a medicação também. Oferecemos uma escolha informada sobre qualquer forma de tratamento. Os objetivos de Heidenheim são eliminar a coerção com várias intervenções, uma política de portas abertas em todas as enfermarias, portanto, não há enfermarias trancadas neste departamento, com tratamento em casa como uma alternativa ao tratamento hospitalar, que pode começar imediatamente com suporte individualizado em momentos de crise e em situações intensas e com atendimentos avançados direcionados e planos conjuntos para situações de crises. Não usamos reclusão”.

Zinkler enfatizou que é necessário monitorar o uso de qualquer intervenção coercitiva e que os dados precisam ser comparados com outros serviços. A taxa de qualquer intervenção coerciva no Hospital de Heidenheim em 2019 foi de 2,1% de todos os pacientes internados, enquanto que no sul da Alemanha, onde esses dados são rotineiramente coletados, a média foi de 6,7%. “Heidenheim não está livre de coerção, mas atingiu taxas de hospitalização que estão entre os mais baixos da Europa. E o mais importante, acreditamos fortemente que o uso de coerção pode ser reduzido ainda mais. Não achamos que haja algo como um mínimo necessário ou absoluto em coerção para serviços de saúde mental”, conclui.

Para Dunja Mijatovic, Comissária do Conselho da Europa para os Direitos Humanos, a nova orientação da OMS é uma “virada de jogo”, fornecendo um impulso muito necessário para as reformas dos serviços de saúde mental na Europa. “A mudança de uma compreensão da saúde mental biomédica para uma mais baseada nos direitos humanos tem sido lenta, lenta mas seguramente evoluindo em nossa região, desde a entrada da CDPD. No entanto, como você sabe melhor do que ninguém, o progresso tem sido muito irregular. E também tem enfrentado muitas resistências, inclusive do meio médico, prevalecendo o velho paradigma em muitos dos nossos Estados membros. Uma posição tão inambígua em favor dos padrões da CDPD, vinda da Organização Mundial da Saúde, certamente terá um grande impacto na redução dessa resistência”, afirma Dunja.

Dunja acredita que a nova orientação da OMS sobre a saúde mental possa reduzir essas resistências e fazer prevalecer a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências (CDPD) sobre convenções mais antigas e desatualizadas que regiam tratamentos involuntários de pessoas com deficiências psicossociais e que refletiam atitudes dominantes daquela época. “Penso que deveria ser papel do Conselho da Europa não aumentar esta confusão. Acho que apegar-se a leituras desatualizadas dessas convenções mais antigas é uma coisa muito perigosa de se fazer. Acho que é importante alinhar a interpretação delas com a CDPD. Na minha opinião, isso é perfeitamente viável. Tenho pressionado exatamente por isso em nossa organização. E continuarei a fazê-lo. Também posso dizer que não é fácil, mas também posso garantir que não vou desistir. Tenho certeza de que a nova orientação da OMS tornará a tarefa muito mais fácil e sou grata por esse acréscimo tão indispensável em nossa caixa de ferramentas”, conclui.

Como enfatizou Lamb, “acabar com as práticas coercitivas, incluindo reclusão e contenção, internação e tratamentos forçados, e combater a violência, o abuso e a negligência são um imperativo urgente para todos os países e uma prioridade global para os direitos humanos. A orientação da OMS preenche uma lacuna realmente importante, orientando-nos sobre como podemos implementar uma abordagem baseada nos direitos humanos nos serviços de saúde mental e, olhando as orientações, existem estudos de casos maravilhosos que nos ajudam a descobrir como podemos buscar iniciativas próprias. Precisamos ver o fim dos serviços institucionalizados e garantir que nossos serviços de saúde mental baseados na comunidade não reproduzam abordagens das antigas instituições, mas em vez disso, eles realmente impliquem numa abordagem baseada em direitos, abordagem sem coerção, ouvindo e respeitando os desejos das pessoas, abordando suas necessidades reais, atendendo ao que consideram importante na vida, ao invés de simplesmente administrar medicamentos para reduzir os sintomas. Nosso objetivo deve ser dar às pessoas a chance de uma vida boa, uma vida feliz”.

Olga Runciman sabe bem o que isso pode significar na vida de alguém com transtorno mental. Psicóloga e enfermeira psiquiátrica, ela passou pelo sistema de saúde, que a educou e no qual trabalhou, como paciente psiquiátrica. Não bastasse os traumas da infância e da juventude pelos quais passou, como ter sido vítima de bullying, abuso sexual e estupro, Olga sofreu com tratamentos forçados que ela considera como traumas na sua vida: “quando alguém é submetido a tratamento forçado, há muito mais implicações do que muitas pessoas possam perceber, incluindo a equipe. Se devo me tomar como exemplo, estar cercada por um grupo de pessoas em um papel ameaçador é uma reminiscência do bullying no playground ao qual fui submetida. Quando alguém se recusa a tomar o medicamento, apesar da persuasão da equipe, as consequências são terríveis. A pessoa é agarrada e segurada por um grupo de homens e mulheres. Sua roupa íntima é puxada para baixo e você recebe uma injeção de uma substância química. Isso tem toda a semelhanças com ser estuprado. O sentimento é o mesmo. Como costuma acontecer em casos de estupro, a pessoa é levada a se sentir responsável pelo horror do ato negado, sob o pretexto da saúde. Alguém tem que sofrer o insulto de ter que reconhecer que era necessário e bom que este evento tenha ocorrido. Então, assim como com o abuso sexual, as pessoas colocam em prática “cuide da criança, abuse da criança”. E da mesma forma, o sistema implementado para ajudar os aflitos, abusam dos aflitos. Esta é realmente uma grande traição à confiança e impede as possibilidades de criar relacionamentos de confiança, tão necessários para a cura e o entendimento. Imagine só, que em vez de um grupo de funcionários me cercando e insistindo que sabiam o que era bom para mim, uma reminiscência do bullying no pátio da escola, as pessoas se reunissem ao meu redor para me apoiar e ouvir, com curiosidade e interesse. Imagine que, em vez de ser pressionada e injetada à força, eu fosse tratada com dignidade e respeito. Novos caminhos de recuperação se abririam para serem explorados. Imagine que, em vez de ter que me subjugar e dizer que a ajuda forçada era necessária e boa para mim, houvesse um interesse genuíno em avaliar o que funcionava para que as práticas pudessem continuar a crescer e evoluir para lugares onde os pacientes não precisassem temê-las. Apenas imagine”.

Assista ao vídeo do lançamento!

https://youtu.be/Rl_Ad-Cfm_M


Ilha Fiscal é iluminada em lilás pelo Dia da Conscientização da Esquizofrenia

Dia 24 de Maio é o Dia Mundial da Conscientização da Esquizofrenia e, pelo quarto ano seguido, esse dia é lembrado em vários estados brasileiros, dentre eles o Rio de Janeiro, que em 2018 iluminou o Cristo Redentor. Este ano foi a vez da Ilha Fiscal, um dos principais cartões postais da cidade, na Baia de Guanabara e próximo a outro símbolo da cidade, a Ponte Rio-Niterói (Assista à reportagem do Bom Dia Rio - TV Globo).

O Castelo da Ilha Fiscal foi construído pelo Imperador Pedro II em estilo gótico-provençal para ser um Château da família real, onde foram realizados bailes, inclusive o último antes da Proclamação da República. Atualmente o castelo abriga o Museu Histórico-Cultural, subordinado à Marinha do Brasil, e é aberto à visitação.

No Rio de Janeiro outros prédios públicos foram iluminados, como o edifício do Ministério Público do Rio de Janeiro e o Laboratório Farmacêutico da Marinha (fotos).

Essas ações foram organizadas pelos Grupos de Ajuda-Mútua que integram o Programa Entrelaços da UFRJ/IPUB, que no dia 24 de Maio contribuíram com dois eventos online que você pode assistir aqui no Portal: Live Descomplicando a Esquizofrenia e o Monólogo "Normalidade, Esquizofrenia e Espiritualidade"


24 de Maio, Dia da Conscientização sobre a Esquizofrenia

Pelo quarto ano seguido comemora-se o dia 24 de Maio como o Dia da Conscientização da Esquizofrenia no Brasil (foto: primeiro ano, em 2018, no Rio de Janeiro). Vários estados organizaram eventos online devido à pandemia da COVID-19, a exemplo do que aconteceu no ano passado (veja os eventos em nossa TIMELINE).

O objetivo desse dia é chamar a atenção para a esquizofrenia, uma doença cercada de estigmas, tabus e muito preconceito, que afeta até 1% da população brasileira e envolve toda a família, que necessita de muita informação e apoio para lidar da melhor maneira possível com a doença.

A informação e o debate em torno da doença são fundamentais no combate ao estigma e ao preconceito que existe na sociedade e também auxiliam pacientes e familiares na busca de melhores condições de saúde e qualidade de vida.

Compreender a esquizofrenia e o papel da família como parceira do cuidado possibilitam resolver melhor os conflitos, expandir mais a rede social de suporte, desfocar da doença e focar na pessoa e auxiliá-la nos desafios e obstáculos da vida para além dos efeitos da doença mental.

Maior conscientização ajuda na adesão aos tratamentos médicos e psicossociais, no combate ao auto-estigma (vergonha que a própria pessoa tem por ter sido diagnosticada com a doença), numa postura mais altiva e otimista diante dos sintomas e das dificuldades, aumentando a esperança na recuperação e promovendo maior autodeterminação na busca por dias melhores e pela superação das dificuldades.

A união de todos os envolvidos no processo de cuidado, como pacientes, familiares e profissionais de saúde, através dos serviços, de movimentos sociais e associações de pacientes e familiares, é a chave na busca de melhores condições de atendimento, de direitos e de cidadania. Juntos é a melhor forma de combatermos o estigma!

Aproveitem a semana de 23 a 29 de Maio para conversar sobre a esquizofrenia, compartilhar as lives em suas redes sociais, divulgar a informação entre amigos e familiares e em sua comunidade, respeitando as regras sanitárias de distanciamento social, e passar a mensagem de que a esquizofrenia tem tratamento e as pessoas conseguem se recuperar e levar uma vida digna e satisfatória como qualquer outra pessoa.

Abaixo algumas mensagens que podem ser repassadas em suas redes sociais:

#Diga não ao adjetivo “esquizofrênico”. A esquizofrenia não define quem a pessoa é, é tão somente uma doença, que tem tratamento e afeta apenas uma parte do psiquismo de uma pessoa.

#Pessoas com esquizofrenia não são perigosas, pelo contrário, são com maior frequência vítimas de violência.

#O estigma e a desinformação sobre a esquizofrenia são os principais obstáculos à recuperação, tanto para pacientes como para familiares.

#A liberdade das pessoas com esquizofrenia é urgente e necessária, para que sejam sujeitos livres na sociedade, com seus direitos e sua livre circulação garantidos como todo cidadão comum.

#A esquizofrenia requer tratamento multidisciplinar através de uma atenção comunitária, com tratamentos próximos às suas residências e articulados com outros setores, como educação, esporte, cultura, lazer e trabalho.

#Pessoas com esquizofrenia têm maior risco de morrer pela COVID-19, independentemente de outras doenças. Vacinação já para pessoas com esquizofrenia!

#Toda pessoa com esquizofrenia tem direito e capacidade de se recuperar da doença. Ela precisa de apoio, legitimidade, escuta e respeito.

#Diga não ao uso da palavra esquizofrenia quando ela não se refere à doença. Esquizofrenia não serve para adjetivar nada. É tão somente uma doença. O termo esquizofrenia quando mal empregado reforça o estigma e o preconceito.


Por que o 18 de Maio é importante?

O mês de maio é um mês comemorativo para quem convive com a esquizofrenia. É um mês para falar de esquizofrenia, difundir a informação, combater o estigma, mostrar como pacientes e familiares estão se recuperando, fazer suas vozes ecoarem na sociedade, mostrando que a esquizofrenia é uma doença tratável e da qual pacientes e familiares conseguem se recuperar e viver uma vida digna e com realizações.

Mas nem sempre foi assim!

É verdade que é o quarto ano em que comemoramos o Dia da Conscientização da Esquizofrenia no Brasil, o dia 24 de Maio. Mas antes disso, é comemorado o dia 18 de Maio. Você sabe o porquê?

O dia 18 de Maio foi escolhido para ser o Dia da Luta Antimanicomial. Um dia para lembrar a luta do movimento social que mudou a assistência à saúde mental no Brasil, que deslocou dos hospitais para a comunidade o foco do tratamento, movimento este conhecido como Reforma Psiquiátrica. Graças a este movimento surgiram dispositivos que hoje são fundamentais na comunidade para os cuidados aos transtornos mentais e na luta contra o estigma: os CAPS, as Residências Terapêuticas, o Programa de Volta para Casa, o Matriciamento na Atenção Básica (equipes de saúde mental responsáveis pelo atendimento primário), o Programa de Inclusão Social pelo Trabalho, os Centros de Convivência e Cultura, o Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada aos Usuários de Álcool e outras Drogas, os CAPSad e os CAPSi (para a população infanto-juvenil), dentre outros.

Antes da Reforma Psiquiátrica, que se iniciou no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, a assistência psiquiátrica era quase exclusivamente realizada em hospitais. Somente 4% das verbas para a saúde mental eram destinadas para tratamentos comunitários, a maioria restrita a ambulatórios. A maioria dos hospitais era privado, pois o Estado, ainda no Governo Militar, havia decidido terceirizar os serviços de saúde, que expandiram seus leitos para a internação de um número cada vez maior de pacientes, chegando a 7 mil pacientes em “leito-chão”, tempo médio de 7 meses de internação e mortalidade de pacientes crônicos (que residiam em hospitais) 6 vezes maior do que em hospitais de outras especialidades. Um escândalo que fez muitos considerarem a assistência à saúde mental uma “indústria da loucura” (Fonte: Luiz Cerqueira. “Psiquiatria social — problemas brasileiros de saúde mental”, Atheneu, 1984).

A Reforma Psiquiátrica foi impulsionada pelo Movimento pela Redemocratização do país e pela necessidade da reforma sanitária do Sistema Público de Saúde (antigo INPS). Em 1978 um movimento iniciado por trabalhadores de saúde mental e unido aos pacientes e familiares usuários da saúde mental se juntou ao movimento pela reformulação do sistema nacional de saúde, que daria origem ao SUS na Assembéia Constituinte. Neste ano, no II Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, trabalhadores de saúde mental, pacientes e seus familiares instituíram o dia 18 de maio como o Dia da Luta Antimanicomial, com o lema “Por uma Sociedade sem Manicômios”.

Em 1989, o deputado federal Paulo Delgado (PT-MG) apresentou um projeto de lei que viria a ser conhecido como a Lei da Reforma Psiquiátrica, sendo aprovado somente 12 anos depois, em 2001, no Governo Fernando Henrique Cardoso (Lei 10.216). Apesar da demora na aprovação e das alterações sofridas ao longo dos anos, a Lei é considerada um marco da assistência psiquiátrica no país e o projeto de lei, além de ter mobilizado o movimento de Reforma Psiquiátrica em diferentes estados, suscitou, até sua aprovação, outras leis estaduais que ajudaram a substituir o manicômio regionalmente.

Essa data e esse movimento fazem parte de uma mudança de rumo histórica da assistência psiquiátrica e da compreensão do transtorno mental para a sociedade em todo o mundo, pois outros países também enfrentaram o mesmo processo. É a partir deste movimento que pacientes passaram a ser tratados na comunidade, por serviços que realizam tratamentos psicossociais e a reabilitação dos pacientes, com projetos terapêuticos individualizados que priorizam seus objetivos e sua inclusão na sociedade como cidadãos, lutando pelo mesmo direito e acesso aos mesmos dispositivos culturais, de lazer, saúde e educação que o restante da população.

Foi a Reforma Psiquiátrica que possibilitou a mudança do paradigma da recuperação em saúde mental (Recovery) conforme a visão do paciente e de sua família, norteando as políticas de saúde mental em diversos países, que passaram a incluir o indivíduo com transtorno mental e sua família no centro dos cuidados e o sujeito como participante ativo das decisões sobre sua vida e seu tratamento. Afinal foi a mudança para a comunidade que estimulou a criação de associações, de grupos de suporte de pares e de pares especialistas em serviços de saúde mental, dentre outras ações que são hoje responsáveis em difundir o Recovery.

Hoje já não é mais possível pensar o tratamento da esquizofrenia com o paciente distante de sua família, sem os dispositivos comunitários e sem a participação social que o incluem na sua comunidade e permitem sua reabilitação. Portanto, o dia 18 de Maio deve ser comemorado e lembrado por todos.

Conheça a Memória da Reforma Psiquiátrica no Brasil!