Atendimento à saúde mental terá nova diretriz no Brasil, entenda.

Por Lara Pinheiro, G1

Ministério da Saúde divulgou neste mês documento que organiza mudanças feitas entre 2017 e 2018. Entre outros pontos, texto prevê internação em hospitais psiquiátricos e financiamento para máquina de eletrochoques.

O governo federal prepara um documento que coloca em prática uma nova política de atendimento à saúde mental no Brasil. Entre outros pontos, prevê a internação em hospitais psiquiátricos e o financiamento para compra de máquina de eletrochoques. Baseada em portarias e resoluções publicadas entre outubro de 2017 e agosto de 2018, a “nota técnica” chegou a ser divulgada no site do Ministério da Saúde na segunda-feira (4). Entretanto, criticado por especialistas, o texto foi retirado do ar dois dias depois.

O ministério afirmou ao G1, que o texto ainda não está pronto. Segundo a pasta, a “nota técnica” está em consulta interna no SEI (Sistema Eletrônico de Informações) para receber contribuições de servidores do ministério e de outros órgãos, como o Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) e o Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde).

Depois de chegar à versão final, o documento ainda precisa ser aprovado pela diretoria da área e pela secretaria. Não há uma data prevista para conclusão e implementação.

Os principais itens em consulta interna no ministério são:

  • Inclusão dos hospitais psiquiátricos nas Redes de Atenção Psicossocial (Raps);
  • Financiamento para compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia, mais conhecidos como eletrochoque;
  • Possibilidade de internação de crianças e adolescentes;
  • Abstinência como uma das opções da política de atenção às drogas.

Abaixo, o G1 mostra os marcos legais, os principais destaques do texto e a opinião de quatro especialistas que listam pontos contra e a favor das mudanças.

História e marcos legais

De acordo com parte dos especialistas ouvidos pelo G1, os principais itens da nota técnica vão na contramão da lei 10.216, de 2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, que estabeleceu novas diretrizes para o cuidado à saúde mental no Brasil.

Antes da lei de 2001, era comum que pessoas com transtornos mentais fossem internadas indefinidamente em hospitais psiquiátricos que funcionavam como asilos, onde sofriam maus-tratos — como mostrado, por exemplo, no livro “Holocausto Brasileiro”, da jornalista Daniela Arbex, que conta a história dos tratamentos infligidos aos pacientes do Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais.

Com o movimento da reforma psiquiátrica, iniciado nos anos 70 e fortalecido com a instituição do SUS, em 1988, a inclinação passou a ser para um “modelo substitutivo”, no qual os pacientes fossem atendidos fora dos hospitais, com destaque para o convívio social e o fechamento de leitos psiquiátricos.

É nesse contexto de substituir os antigos manicômios que surge o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (Caps), em 1986. O Caps é uma unidade de atendimento do SUS voltada à saúde mental, com profissionais de diversas especialidades, onde pacientes com transtornos psiquiátricos ou problemas causados por álcool e drogas podem ser tratados. Na previsão da nota técnica, os Caps deixam de ser a principal referência no atendimento.

Destaques da nota técnica

1 – Inclusão de hospitais psiquiátricos nas Redes de Atenção Psicossocial (Raps)

Com uma resolução de dezembro de 2017, o Ministério da Saúde incluiu os hospitais psiquiátricos, junto com os ambulatórios e os hospitais-dia, nas Redes de Atenção Psicossocial (Raps) do SUS, que tratam do cuidado à saúde mental. Não haverá mais o chamado “modelo substitutivo”. Dessa forma, os Caps não irão mais substituir os hospitais psiquiátricos que ainda permanecem em atividade — os dois modelos de atendimento deverão coexistir.

Por outro lado, o documento proíbe a ampliação do número de leitos em hospitais psiquiátricos, determinando que esses leitos sejam oferecidos em hospitais gerais, dentro de enfermarias especializadas. Em sua atual versão, a norma do Ministério da Saúde estabelece que os hospitais gerais devem ter equipe qualificada, com enfermaria especializada ao atendimento psiquiátrico, com até 30 leitos.

Segundo o texto, a política de retirar dos hospitais pessoas internadas há muito tempo permanece, assim como a implantação qualificada de enfermarias psiquiátricas capacitadas em hospitais gerais.

Os especialistas que são a favor da inclusão dos hospitais argumentam que a medida pode salvar vidas, pois existem casos severos em que o paciente precisa de hospitalização para sair da crise ou representa uma ameaça a si ou a outras pessoas. Como vários hospitais gerais sofrem com falta de leitos, fazer com que alguns deles fossem reservados à psiquiatria poderia trazer problemas.

Por outro, alguns especialistas afirmam que a norma vai contra o movimento de desospitalização instituído no Brasil, reforçando o modelo anterior à Reforma Psiquiátrica e excluindo os pacientes do convívio social. O atendimento delas, afirmam, poderia ser feito nos leitos reservados à psiquiatria nos hospitais gerais.

Antônio Reinaldo Rabelo, psiquiatra, professor associado aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba):

“Apesar de ficar como reduto último, há casos que o Caps [Centro de Atenção Psicossocial] não tem condição de cuidar, de resolver. Se o paciente não toma remédio, ou a família não dá, tem que internar. Os hospitais gerais têm déficit de leitos. Se está com déficit em clínica e cirurgia, como é que vai ceder espaço para leitos de psiquiatria? A mentalidade antimanicomial não é para deixar de internar; é para não internar aqueles que podem ser tratados fora do hospitais. Mas há casos — e que são raros — que o hospital tem que internar, e é obrigado a atender”.

Emmanuel Fortes, psiquiatra e vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM):

“Não tem um retorno ao modelo anterior. O que tem é a incorporação do hospital e do ambulatório psiquiátricos à Raps — que foram expurgados do rol de equipamentos, como se doença mental não existisse e as pessoas não precisassem de hospitalização. Nem sempre um hospital geral apresenta requisitos e condições para tratar uma pessoa violenta, agitada, desnorteada. A estratégia [de desospitalização] continua sendo a da política de saúde mental. O que está se anunciando é a possibilidade de tratar as pessoas que estão em crise, em risco de suicídio, de matar alguém de serem agredidas em um lugar seguro.”

Marisa Helena Alves, psicóloga, parte da Comissão Intersetorial de Saúde Mental do Conselho Nacional de Saúde (CNS)

“Entendemos como um retrocesso. A Raps, antes, não tinha o hospital psiquiátrico como o local de atendimento, porque atenderia a pessoa de forma mais humanizada. Para quem conhece a realidade do manicômio, é isso que nos indigna — ele nunca foi um local de tratamento. Sempre foi um local onde as pessoas foram depositadas — você limpa a cidade e coloca ali. Ele indo pro hospital geral, é atendido na crise. Com medicação, com terapias, ele sai da crise e o acompanhamento pode ser feito na Caps. Um dos problemas é que os hospitais gerais têm muita resistência em aceitar o paciente psiquiátrico, por preconceito. Tem que ter uma equipe especializada.”

Girliane de Souza, enfermeira psiquiátrica e professora na Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

“Quando é um caso que não consegue ser manejado no Caps, com agressividade muito grande, ou é um município sem Caps 24h, aí, sim, ela vai para um hospital. Mas o que a lei fala é que tem ter leitos psiquiátricos dentro do hospital geral. Por que não ter uma equipe para tratar essa pessoa? Às vezes essa pessoa também tem uma demanda clínica, principalmente em usuários de álcool e outras drogas. O que a gente questiona é por que voltar o modelo de hospitais psiquiátricos, se existem outros dispositivos que cuidam tão bem dos usuários de saúde mental? Se não vai ter um aumento de investimento em saúde, por que não fortalecer os Caps, aumentar o número de leitos no Caps que já existem?”.

Posição do Dr. Leonardo Palmeira: A reforma psiquiátrica previa a substituição dos leitos em hospitais psiquiátricos por leitos em hospitais gerais, o que nos parece mais adequado, pois não há razão para que a doença mental não seja tratada na crise como outras doenças físicas. A alegação de que há pacientes agitados e agressivos não nos parece consistente, uma vez que equipe especializada e espaços apropriados dariam conta disso. Outra alternativa são os CAPS III com leitos de curta permanência, que são mais adequados do que hospitais especializados. Eles poderiam ser ampliados para dar maior cobertura territorial. O retorno aos hospitais psiquiátricos nos formatos que ainda existem hoje, enfermarias grandes, com muitos pacientes para poucos técnicos, não deixa de ser um retrocesso. Será muito mais difícil avançarmos na ampliação dos CAPS III e dos leitos em hospitais gerais com esse recuo.

2 – Incentivo ao uso da eletroconvulsoterapia (ECT)

Com a nota, o Ministério da Saúde passaria a financiar a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia (ECT) para tratamento de pacientes com transtornos mentais graves ou que não respondem a outros tratamentos. O equipamento consta na lista de materiais do Fundo Nacional de Saúde, vinculado ao SUS.

Segundo Antônio Reinaldo Rabelo, professor aposentado da Ufba, o tratamento não causa danos ao cérebro e faz um “embaralhamento” nos circuitos do cérebro que estão com defeito. O tratamento com ECT é feito em várias sessões, mas, segundo ele, tem efeito mais rápido do que os antidepressivos, por exemplo.

“A ECT é um instrumento que salva vidas. O paciente com depressão e risco de suicídio que não responde à terapêutica medicamentosa precisa tomar. Isso é outro grande preconceito que foi disseminado junto à população — nós que somos clínicos sabemos a utilidade. Eles devem incorporar. É tecnologia a serviço da vida. O CFM estabeleceu que há uma sala para esse tipo de tratamento — uma sala quase cirúrgica, com estrutura de suporte à vida para tratar de intercorrência.”

Marisa Helena Alves, Conselho Nacional de Saúde

“Eu quero que fique bem claro: ele é um aparato terapêutico, médico, aprovado cientificamente, que tem que ser feito em centro cirúrgico. Mas pode ser usado de forma inadequada. E a gente tem comprovação, inclusive através das inspeções, que não era feito da melhor maneira — foi usado inclusive como forma de punição. O que a gente tem receio é desse retrocesso, do uso sem restrições, indiscriminado, porque não é para qualquer um. É um procedimento invasivo, como uma cirurgia. Torna-se difícil prever que, de um dia pro outro, o que era um instrumento de tortura faça-se um instrumento terapêutico.”

Girliane de Souza, UFMG

“É um ponto obscuro. Precisa ter um protocolo. Existem clínicas privadas que fazem, com protocolo de anestesia. É indicado para os casos que não respondem a medicamento. A nota técnica fala, mas não diz como vai ser o protocolo. Isso precisa ficar muito claro, para que a gente não repita os erros do passado.”

Antônio Reinaldo Rabelo, Ufba

“Não existe nada melhor pra depressão e esquizofrenia refratárias do que a ECT — inclusive causa menos problema do que remédios. Tem grande indicação terapêutica. Pena que é cara. Se for para empregar com condições técnicas — em centro cirúrgico, com anestesista, equipamentos de ressuscitação, tudo bem. Mas poucos hospitais terão condições de ter uma sala cirúrgica com anestesista para fazer isso.”

Posição do Dr. Leonardo Palmeira: O ECT é um tratamento eficaz e reconhecido pelo CFM e pelo próprio Ministério da Saúde, foi utilizado no passado de forma pouco criteriosa e há de fato relatos de uso punitivo, por isso seu estigma. Que o SUS disponibilize mais aparelhos para centros que não possuem recursos para tratamento de casos graves e refratários achamos ser positivo, porém há de se ter um protocolo elaborado pelo próprio Ministério da Saúde junto às associações médicas e fiscalização do próprio MS e Ministério Público, para que não se permita o mal uso do ECT. Ele também deve ser realizado em hospitais gerais, com equipamento adequado e UTI para eventuais complicações. O pior cenário será permitir aparelhos de ECT em hospitais psiquiátricos sem condições, isso será um retrocesso a práticas da década de 1970.

3 – Internação de crianças e adolescentes

A nota do Ministério da Saúde previa a possibilidade de internação de crianças e adolescentes em enfermarias psiquiátricas de hospitais gerais ou em hospitais psiquiátricos. Segundo o posicionamento do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, citado no texto, essa internação deve ser feita, preferencialmente, em área separada da dos adultos.

Uma portaria do Ministério da Saúde, que estabelece os valores pagos pelo governo pela diária de internação em hospitais psiquiátricos, a idade mínima do paciente aparece como 12 anos. Quando questionado pelo G1 sobre a possibilidade de crianças abaixo dessa idade serem internadas, no entanto, a pasta não respondeu.

Emmanuel Fortes, CFM

“[A internação infantojuvenil] funciona do mesmo jeito que pra adulto, só que num ambiente adequado para tratar crianças e adolescente. Hoje, nós não temos essa especificação porque ninguém tem onde tratar as crianças que entram em crise. Quando se interna num hospital de adulto, são problemas seriíssimos. Então as diretrizes estão corretas.”

Antônio Rabelo, UFBA

“Nunca aconselhei, sempre fui contra. Colocar uma criança internada em hospital tem um efeito iatrogênico [efeito negativo de um tratamento] muito grande. Tirar da vida social, da escola — isso é um trauma irrecuperável para uma criança.”

Marisa Helena Alves, Conselho Nacional de Saúde

“Na minha opinião, não. O que deve ter é assistência à criança e ao adolescente — nos Caps infantis, nos Caps para adolescentes, principalmente os adolescentes usuários de drogas. Reforçar esses mecanismos de atenção: o pai e a mãe vão, recebem orientação, aprendem a lidar com a situação, conhecem melhor o problema que o filho tem. Existem casos que precisam de internação, a gente não nega isso. O que a gente questiona é como se faz isso. Criança com doença, com transtorno, dá trabalho — mas isso é responsabilidade da família. Tem que ter aparato do Estado, assistência, medicamento, o local para ser socorrido na crise — mas não pode ter o lugar para depositar e deixar lá.”

Girliane de Souza, UFMG

“É um ponto extremamente problemático, porque a gente vê um uso indiscriminado de remédios psiquiátricos na infância. Como vão se dar essas internações, a questão medicamentos — é um lado obscuro, a gente não sabe como vai funcionar. E a gente se não vai ter um impacto negativo no desenvolvimento cognitivo, afetivo, social da criança, já que ela não vai estar na escola”.

Posição do Dr. Leonardo Palmeira: a internação de crianças e adolescentes às vezes é necessária (particularmente de adolescentes), embora o desejável seja evitá-la ao máximo com os recursos ambulatoriais que precisam ser ampliados. O Ministério da Saúde deve ampliar o atendimento a crianças e adolescentes através do CAPS infantil, incluindo a família, oferecendo suporte a elas para conseguirem lidar melhor com as situações de crise, evitando ou retardando a necessidade de internação.

4 – Uso da abstinência no tratamento contra as drogas

Segundo a nota técnica, a abstinência — na qual o usuário larga por completo o contato com as substâncias — passa a ser uma das estratégias da política de atenção às drogas, assim como a redução de danos, que era enfatizada anteriormente. Nesta última, busca-se encontrar soluções que sejam menos prejudiciais à saúde das pessoas: trocar o crack por um cigarro, por exemplo.

Emmanuel Fortes, CFM

“Nós entendemos que, para que você tenha saúde mental, tem que estar em abstinência. Você não vai manter a pessoa em contato com a substância, vinculada a um padrão de consumo. A tolerância à droga tem que ser zero. A pessoa se trata efetivamente quando compreende que precisa se tornar abstêmia.”

Girliane de Souza, UFMG

“A abstinência não é o melhor tratamento, pelo contrário — é o mais ineficaz. No caso de uso e abuso de substâncias. A redução de danos trabalha na lógica de empoderar a pessoa — quando ela quer [usar a droga], a quantidade. Isso deu muito mais resultado. A abstinência nem sempre funciona pra todo mundo — na verdade, não funciona pra todo mundo.”

“É impossível querer só abstinência, sem fazer redução de danos. Não pode forçar a abstinência. A meta é abstinência, sim — mas, até lá, terá que fazer a redução de danos.”

Marisa Helena Alves, Conselho Nacional de Saúde

“É uma abordagem possível, mas não é a mais simples. O uso de drogas, a doença — porque é uma doença — é de uma complexidade muito grande, que envolve fatores pessoais, sociais, emocionais. Um único viés de tratamento torna-se inoperante, porque vai depender de caso a caso. Tem pessoas que vão deixar de usar a droga pelo método de abstinência — outros precisarão de outros recursos. Quando você cria uma política pública, tem que contemplar o universo de abrangência dessa política — e não reduzi-la a determinados segmentos, a determinadas possibilidades. Em se tratando de política pública, o caráter de universalidade que ela tem em si, de atingir o maior número possível de pessoas, tem que estar contemplado.”

Posição do Dr. Leonardo Palmeira: A redução de danos nos parece mais adequada para pacientes com transtornos mentais severos, como a esquizofrenia, que não costumam responder à abstinência completa. O problema é que muitos serviços que trabalham na lógica da abstinência dispensam pacientes que optam por reduzir a droga ou usar droga de menor potencial nocivo. Seria importante incorporar as duas metodologias, com flexibilidade para atender aos diferentes perfis de pacientes, além de criar equipes e serviços especializados em comorbidades entre dependência química e transtornos mentais graves, uma demanda cada vez mais crescente.

Fonte: G1 (exceção à nossa opinião)

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