Como se recuperar de um transtorno mental?

Recuperação pessoal

O conceito de recuperação de um transtorno mental evoluiu nos últimos vinte e cinco anos da tradicional visão médica de remissão (desaparecimento) dos sintomas e prevenção de recaídas para uma noção mais abrangente, que parte do indivíduo que sofre de transtorno mental grave e se concentra na sua subjetividade e na sua relação com seu meio social e familiar.

Os pacientes com transtorno mental grave, particularmente as pessoas com esquizofrenia, através do movimento de associações ocorrido em diferentes países a partir da década de 1980/1990, como EUA, Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia, têm sustentado que o que eles desejam não é diferente do que qualquer cidadão comum almeja: ter um sentimento de pertencimento à sociedade, receber uma remuneração justa por trabalho ou atividade produtiva, morar num lugar decente, relacionar-se, ter amigos, amar, enfim, alcançar um equilíbrio emocional, mental, físico e espiritual a partir do sofrimento que a doença lhes trouxe, sendo capazes de adquirir, ou readquirir, habilidades ou capacidades que lhes tragam um sentido de contribuição e de valor em sua comunidade.

Histórias pessoais de sofrimento e superação começaram a surgir de diferentes partes do mundo e reverberaram em outros pacientes que vivenciavam o mesmo sentimento de recuperação, baseado muito mais em valores como esperança, identidade, significação e responsabilidade do que em aspectos clínicos, como a remissão dos sintomas.

A definição mais citada de recuperação pessoal é a de Bill Anthony (1993):

“Recuperação é profundamente pessoal, um processo único de mudar suas próprias atitudes, valores, sentimentos, objetivos, habilidades e/ou papéis. É uma forma de viver uma vida com satisfação, esperança e contribuição ainda que com limitações causadas pela doença. Recuperação envolve o desenvolvimento de um novo sentido e propósito na sua vida enquanto se cresce e amadurece para além dos efeitos catastróficos da doença mental.”

Os estudos definem a jornada de recuperação pessoal como um processo ativo, individual e único, um processo não-linear e multidimensional, que envolve diferentes estágios e esforços pessoais na busca de experiências capazes de mudar a vida. Não se trata de cura, mas de um processo gradativo de transformação pessoal, da forma como encarar a vida e as pessoas, rever conceitos e crenças, resignificar experiências, buscar um novo olhar sobre si próprio e sobre o papel que se pode ter na comunidade a partir do adoecimento. A recuperação não é um processo que naturalmente ocorra com a intervenção de um profissional ou dela prescinda, mas encontra auxílio e amparo em ambientes que ofereçam suporte, apoio e tratamento.

Em relação às etapas de recuperação, pesquisadores identificaram cinco categorias distintas entre os estudos:

  1. Ligação: através de grupos de ajuda ou de usuários, relacionamentos, apoio de outros e ser parte da comunidade.
  2. Esperança e otimismo em relação ao futuro: acreditar na possibilidade de se recuperar, ter motivação para mudar, relacionamentos que inspirem esperança, pensar positivo e valorizar os sucessos, ter sonhos e aspirações.
  3. Identidade: reconstruir e redefinir um senso positivo de identidade, superar o estigma.
  4. Sentido na vida: buscar um sentido nas experiências da doença mental, espiritualidade, qualidade de vida, papel social e objetivos sociais para uma vida plena; reconstruir sua vida.
  5. Empoderamento: responsabilidade pessoal, controle sobre sua própria vida, focar na sua força e no seu poder (quais são suas melhores habilidades, formas de relaxamento e diversão, maneiras de se tranquilizar, focar no bem-estar).

Um novo paradigma para a saúde pública

A recuperação pessoal representa uma mudança de paradigma na medida em que propõe um olhar para fora do paradigma científico. Ela não objetiva negar os avanços no campo da ciência e da medicina, não é um movimento antipsiquiátrico, muito pelo contrário, ela prescinde da psiquiatria para fornecer os melhores tratamentos baseados em evidências científicas e que possam ajudar o indivíduo a alcançar sua recuperação. Esses tratamentos, contudo, devem estar centrados nos objetivos pessoais (aspirações, desejos) e não nos objetivos do tratamento em si (evitar que coisas ruins aconteçam, como hospitalização e recaída).

Ela prega o inverso de algumas suposições tradicionais:

  • A doença mental é apenas uma parte da pessoa, ao invés da pessoa resumir-se a uma doença psiquiátrica;
  • Ter um papel na sociedade ajuda a melhorar os sintomas e a reduzir hospitalizações, ao invés de precisar aguardar que a pessoa atinja a remissão dos sintomas para assumir suas responsabilidades;
  • Os objetivos de recuperação são formulados pelo indivíduo, enquanto o suporte para que esses objetivos aconteçam vem dos tratamentos, ao invés de impor objetivos para o paciente cumprir. O foco deve ser centrado nas preferências, nas habilidades e nos pontos fortes da pessoa e não naquilo que ela não consegue fazer.

Em 1999 o relatório sobre a Saúde Mental nos EUA, elaborado pelo “Surgeon Report” (DHHS, 1999) incorporou o conceito de recuperação pessoal como objetivo principal da assistência pública. Em 2003 uma comissão da Presidência dos EUA constatou que o sistema de assistência à saúde mental do país era fragmentado e desorganizado, levando a gastos desnecessários por prejuízos à saúde, à moradia e por encarceramento dos pacientes, enfatizando que o sistema simplesmente manejava os sintomas e aceitava os prejuízos a longo prazo trazidos pelas doenças mentais (DHHS, 2003). Em 2005, com as recomendações do governo sendo incorporadas à Agenda Federal de Ação (Federal Action Agenda), as transformações necessárias foram se tornando públicas e explícitas. A preocupação central é adequar os serviços de assistência à saúde mental nos EUA às demandas dos pacientes e de suas famílias.

A recuperação pessoal se tornou, então, a principal orientação das políticas de saúde mental nos países anglo-saxões. Na Inglaterra, o plano de saúde mental de 2009-2019 prevê que a assistência esteja centrada nas necessidades das pessoas com transtornos mentais graves, utilizando estratégias e intervenções baseadas em evidências científicas e focadas na recuperação das pessoas, como foi definido em discussão com os usuários dos serviços.

Pesquisadores analisaram 498 textos a partir de 30 documentos práticos e de políticas de saúde mental de seis países – EUA, Inglaterra, Escócia, Irlanda, Dinamarca e Nova Zelândia, levantados através de uma revisão da literatura. Quatro domínios práticos foram descritos como sendo fundamentais como norteadores dos serviços de saúde mental:

  1. Promover a cidadania: capacitar as pessoas com transtorno mental a exercitar seus direitos e a viver uma vida plena, ou seja, criar serviços que apoiem e estimulem a independência e a autodeterminação. Isso inclui enfrentar o estigma e a discriminação e promover o bem-estar social, produzindo a integração com a comunidade fora do ambiente dos serviços de saúde mental.
  2. Maior envolvimento dos usuários na organização dos serviços: os serviços não se restringem à infraestrutura e à qualidade, mas precisam balancear as tensões entre as prioridades dos pacientes e as expectativas mais amplas da comunidade. As pessoas com doença mental, seus familiares e cuidadores são estimulados a contribuir com o desenvolvimento, a prática e a avaliação dos serviços de assistência. Pessoas em recuperação podem contribuir compartilhando suas histórias com outros usuários, servindo de modelo de empoderamento, responsabilidade e autodeterminação.
  3. Serviços que suportem a recuperação como definida pelo usuário: integrar as experiências subjetivas do adoecer com as práticas baseadas em evidências.
  4. Relacionamento em parceria: terapeutas e pacientes devem buscar um relacionamento terapêutico, mas, sobretudo, verdadeiro e sincero. Os profissionais devem incorporar esta visão de recuperação na sua concepção de saúde-doença com uma visão ecológica, considerando mais o contexto de vida, o ambiente e os relacionamentos entre as pessoas e seu ambiente no cuidado à saúde. Deve-se priorizar a tomada de decisão do usuário e apoiar suas escolhas, resguardando o seu direito de correr riscos e fracassar.

O movimento dos pacientes e familiares nesses países transformou pouco a pouco a prática da saúde mental, trazendo, além do conceito de recuperação pessoal, outros pontos chaves alinhados a ele, como justiça social, empoderamento, ficar bem (“wellness”) e tomada de decisão compartilhada.

Justiça Social

A recuperação deve ser acompanhada pela luta contra o estigma e a descriminação e a favor da igualdade de oportunidade, liberdade e de acesso à diversão, assim como os demais cidadãos. Isso parte da constatação que usuários permanecem excluídos de muitos aspectos da vida e que é preciso que se organizem em grupos para lutar pelos seus direitos.

Empoderamento

A reivindicação por mais participação dos usuários na formulação dos serviços e da política de saúde mental e por divisão na tomada de decisão visa que indivíduos com menos poder ganhem progressivamente controle sobre suas vidas, inclusive pela capacidade de influenciar positivamente na organização e na estrutura da sociedade, para ganhar mais domínio sobre sua vida, inclusive sobre os cuidados com sua saúde. Uma das formas de empoderamento é que indivíduos indignados com os serviços que recebem se organizem para criar seus próprios serviços alternativos (serviços liderados pelos usuários – “user-led services”).

Ficar bem (wellness)

Paralelamente à visão de recuperação, usuários têm direcionado o foco da prática de seus serviços para buscar um maior nível de consciência e, consequentemente, para fazer escolhas por um estilo de vida mais saudável, que inclua hábitos como sono adequado, descanso, boa alimentação, exercícios, nada de drogas ou álcool e se manter produtivo, participativo em atividades e em relacionamentos positivos. Isso parte de uma visão holística do indivíduo com suas dimensões físicas, intelectuais, sociais, ambientais, ocupacionais, financeiras e espirituais que precisam estar em equilíbrio para seu bem estar e não somente o equilíbrio mental e emocional.

Tomada de decisão compartilhada

Os tratamentos devem aceitar e presumir a capacidade de cada um tomar sua decisão e saber ouvir suas necessidades, preferências e valores, no sentido de criar uma parceria para o tratamento, uma vez que os objetivos de recuperação são comuns a ambos. Isso implica em que os profissionais saibam se comunicar com o paciente e sua família de forma clara, informativa e personalizada, até mesmo persuasiva, de forma a conseguir o melhor desfecho possível para cada caso.

Entretanto, essa abordagem não deve ser paternalista, no sentido de que o médico é detentor do saber e deve impor ao paciente aquilo que ele acredita seja o melhor para seu tratamento. A comunicação entre médicos e pacientes deve seguir alguns princípios da entrevista motivacional, que objetiva criar um relacionamento de troca e colaboração, em que as opiniões dos pacientes são levadas em conta para buscar alternativas que possam atender às suas demandas, sem, contudo, negligenciar suas necessidades clínicas. Isso inclui o médico ser mais flexível às escolhas dos pacientes, acreditar que ele possa decidir em conjunto o que acredita ser melhor para seu tratamento, aumentando assim seu sentimento de auto-eficiência e de responsabilidade sobre sua própria vida (i.é. estimular o empoderamento). Essa abordagem pode, inclusive, aumentar a adesão do paciente a tratamentos, como a medicação, em que o índice de não adesão pode chegar a 75%.

Um aspecto central na criação de um ambiente favorável a uma decisão compartilhada é não lutar contra a resistência do paciente e sim explorá-la para mostrar a ele as discrepâncias entre eventuais resistências e seus objetivos clarificados anteriormente. Ao invés de impor sua forma de pensar, o médico deve conduzir o paciente a uma reflexão de como algumas ideias o afastam dos alvos de sua recuperação, semeando novos pontos de vista que podem fazê-lo repensar de forma diferente algumas atitudes, lembrando que a recuperação pessoal é um processo de dentro para fora e de responsabilidade do usuário, não ocorrendo de forma impositiva.

Esta forma mais igualitária de relacionamento médico-paciente possibilita também que o paciente acredite que seja capaz de melhorar sua vida e tenha uma visão mais otimista e esperançosa de si próprio. A informação corre bilateralmente e cabe ao médico fornecer todas as informações necessárias a uma boa decisão, como alternativas terapêuticas que se apresentam a cada caso. A decisão é de responsabilidade de ambos, porém a atitude do médico permanece ativa a todo momento, provocando no seu paciente reflexões que possam aproximá-lo do tratamento ideal.

Estudos mostram que 70% dos pacientes diz que não são incluídos nas decisões terapêuticas e mais de 60% teria solicitado outro medicamento se tivesse sido consultado.

Leia as histórias de pessoas que se recuperaram da esquizofrenia e hoje vivem uma vida normal, conheça as histórias de Elyn Saks e Patrícia Deegan, pioneiras do movimento de recuperação pessoal nos EUA, e aprenda um novo olhar sobre a doença, com mais otimismo e esperança – CLIQUE AQUI.

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