Erros e acertos da reforma da assistência psiquiátrica brasileira: para onde vamos?
A reforma psiquiátrica brasileira transformou a assistência à saúde mental no país, fechando leitos em hospitais psiquiátricos e criando dispositivos alternativos na comunidade, como os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e as residências terapêuticas, com objetivo de aproximar portadores de transtornos mentais graves da sociedade, permitindo maior integração social e resgatando sua cidadania. Inspirado no modelo de reforma italiana por Franco Basaglia, que praticamente acabou com os hospitais psiquiátricos naquele país, a reforma brasileira é hoje motivo de polêmica e de muita discussão acerca de seus erros e acertos.
Em 1941, o Brasil possuía 5,8 leitos para cada 10 mil habitantes. No período da ditadura houve uma grande ampliação do número de leitos com a criação de clínicas privadas e conveniadas ao SUS, chegando a 8,8 leitos para cada 10 mil habitantes. Com a reforma psiquiátrica, iniciada na década de 80, houve redução dramática de leitos para 4,4 por 10 mil habitantes em 1998 e, posteriormente, para 2,5 leitos por 10 mil habitantes em 2005 (pouco mais de 40 mil leitos em todo país). Um programa de avaliação hospitalar criado pelo governo federal (PNASH) avaliou os hospitais psiquiátricos em todo o país e fechou clínicas que não tinham os pré-requisitos necessários ao seu funcionamento e restringiu leitos em outras que precisavam se adequar às novas normas. Paralelamente a isso, foram implantados CAPS e residências terapêuticas, que seriam os serviços substitutivos ao fechamento dos hospitais, porém em velocidade muito inferior. Em 2002 existiam no país apenas 424 CAPS e este ano são 1394, responsáveis por apenas 57% da cobertura populacional, ou seja, quase metade dos brasileiros não tem acesso aos serviços, continuam recorrendo aos hospitais, sendo que há grande carência de profissionais e de leitos.
A redução de leitos psiquiátricos ocorreu também em outros países. Após a Segunda Grande Guerra, com o advento dos medicamentos antipsicóticos e dos movimentos pelos direitos humanos, muitos governos criaram serviços comunitários para substituírem o modelo de assistência centrado nos hospitais. Entretanto, como a internação continuava sendo necessária em muitos casos, como nas crises agudas, em que os recursos para tratamento extra-hospitalar não são suficientes, foram criados novos leitos em hospitais gerais. Em vários países ocorreu reestruturação da rede hospitalar geral para receber alas psiquiátricas, como nos EUA, Canadá, Inglaterra, Alemanha, França e Itália, inclusive. Este processo é mais moroso em países em desenvolvimento, como Brasil, Uruguai e Argentina. No Brasil, o número de leitos psiquiátricos em hospitais gerais não ultrapassa 5% do total de leitos (0,12 leitos/10 mil habitantes). Veja a tabela comparativa com a proporção de leitos para tratamento de transtornos mentais em alguns países:
Leitos / 10.000 | Hospitais Psiquiátricos | Hospitais Gerais | Comunidade | |
---|---|---|---|---|
Brasil | 2,5 | 2,44 | 0,12 | ... |
Uruguai | 5,4 | 4,78 | 0,62 | ... |
Argentina | 6,0 | 5,4 | 0 | ... |
EUA | 7,7 | 3,1 | 1,3 | 3,3 |
Canadá | 19,34 | 9,1 | 5,06 | 5,18 |
Cuba | 7,36 | 5,72 | 1,54 | 1,0 |
Itália | 4,63 | 0 | 0,92 | 3,7 |
França | 12,0 | 7,0 | 3,0 | ... |
Alemanha | 7,5 | 4,5 | 2,9 | ... |
Austrália | 3,9 | 1,2 | 2,7 | ... |
O que muitos se perguntam é se a reforma psiquiátrica no Brasil tem gerado mais desassistência do que melhorado a atenção à saúde daqueles que sofrem de doenças mentais. A resposta a essa pergunta não é simples. Oferecer serviços abertos, próximos a comunidade e com a participação ativa de seus usuários é um inegável avanço. No caso da esquizofrenia, as internações prolongadas agravam os sintomas negativos e crônicos da doença e dificultam a recuperação do paciente, que para isso depende também da retomada de suas atividades sociais. Porém, no caso de crises agudas, a demora para um tratamento adequado, que inclui a dificuldade em internar alguém quando necessário, pode ser tão ou mais agravante para a sua saúde. A ciência tem demonstrado que numa crise psicótica ocorre liberação de moléculas inflamatórias (semelhante ao que ocorre na sepse – estado infeccioso generalizado), gerando um ambiente tóxico às células nervosas, provocando a perda de conexões sinápticas e a morte de neurônios. Isso torna o quadro mais grave, com muitas recaídas e pior recuperação. Por isso, especialistas do mundo todo têm enfatizado a necessidade de resposta rápida à crise, com providências imediatas que restaurem os tratamentos e possibilitem a recuperação plena.
A ênfase em dispositivos comunitários de tratamento, como os CAPS, é correta, pois possibilita a reabilitação social das pessoas em sua comunidade, porém os serviços precisam ser ampliados para uma maior cobertura e estar preparados para lidar com toda a complexidade da crise, o que requer leitos para internações curtas e profissionais qualificados. Por outro lado, é urgente criar novos leitos em hospitais gerais e na comunidade, através das residências terapêuticas, para assistir as pessoas em surto ou que não possam voltar às suas casas pela falta do suporte familiar ou porque se recusam a morar com a família. A saúde mental também não avançará se não forem criados incentivos para que pacientes em condições possam retornar ao mercado de trabalho e ter uma vida mais autônoma e independente. O Brasil não possui uma legislação específica que contemple o trabalho para portadores de transtornos mentais crônicos, com incentivos fiscais às empresas, como o que ocorre na deficiência física e mental.
Tanto se fala em reabilitação psicossocial, mas é necessário criar uma atmosfera social favorável a isso, para combater o estigma e o preconceito. E isto parte do princípio de termos serviços de qualidade e que acolham a totalidade de pacientes que deles necessitam, mostrando que a doença mental pode ser tratada, que as pessoas podem se recuperar e ocupar seus espaços na sociedade. A transformação desta realidade exige um investimento muito maior do que é feito hoje, quando os gastos com saúde mental não ultrapassam 2,5% do total de gastos do Governo com a saúde pública.
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