O que venho observando na minha clínica ao longo da pandemia da COVID-19: Abusos e compulsões.
Abusos de substâncias, como álcool, tabaco, drogas ilícitas, associados a compulsões das mais variadas formas, como por comida, compras, jogo, sexo, dentre outras, são transtornos que comumente afetam o comportamento das pessoas em situações difíceis como a que estamos vivendo pela pandemia da COVID-19.
O que há de comum nessas situações é a necessidade de buscar prazer e gratificação imediatas para aliviar o estresse, a frustração ou o fracasso que situações adversas podem gerar nas pessoas. Existem aspectos da personalidade e até mesmo genéticos e do funcionamento cognitivo que tornam pessoas mais suscetíveis aos transtornos de abuso de substâncias e às compulsões em situações como essa.
Um circuito cerebral que está intimamente ligado a esses comportamentos é o circuito de recompensa. Pessoas com susceptibilidade nesse sistema tornam-se facilmente “viciadas” no prazer e na recompensa que substâncias psicoativas e comportamentos compulsivos que geram prazer proporcionam. São situações que trazem a sensação imediata de prazer e satisfação e que provocam um comportamento recorrente de procura pelo objeto desejado com grande dificuldade de resistir a ele, tanto que o indivíduo não mede esforços e corre eventualmente riscos para se satisfazer.
Biologicamente o estímulo a esse sistema provoca uma liberação maciça do neurotransmissor chamado de dopamina, deixando o sistema de recompensa sensibilizado e constantemente à procura de novas descargas, motivo pelo qual o comportamento associado às compulsões seja tão difícil de frear.
Em situações adversas como a que vivemos, a necessidade dessas pessoas buscarem prazer pode aumentar e, na minha prática clínica, vem aumentando. Esse é um grupo de pessoas que também corre um risco maior de contrair o coronavirus, visto que as compulsões podem colocar a pessoa em situação de risco ao se expor ao vírus pelo comportamento de busca e pela impulsividade ao objeto de desejo, sem respeitar as medidas de proteção e distanciamento.
Abuso de substâncias e compulsão por álcool e drogas
Alguns pacientes em tratamento para dependência química tiveram recaídas do uso de drogas e isso inclui todas as substâncias, dentre elas o álcool. Outros que eram usuários recreativos passaram a usar a substância em maior quantidade e frequência e experimentaram prejuízos que antes não tinham, expondo-se a riscos psicossociais e de saúde, criando conflitos familiares e prejudicando-se financeiramente.
Estressores psicossociais concomitantes, como a quarentena prolongada, medo de perder o emprego, ansiedade em se contaminar com o vírus, reações de pânico e sintomas depressivos podem explicar o agravamento do uso de substâncias psicoativas, principalmente porque o abuso de substâncias costuma ser um ciclo vicioso que se retroalimenta: quando utilizadas de forma prolongada, as drogas provocam uma adaptação neuronal ao estresse e dos circuitos de recompensa que amplificam as respostas neuroendócrinas e da reatividade ao estresse de uma forma que agravam a fissura pela droga quando uma situação de estresse se instala.
Por outro lado, pessoas mais vulneráveis ao estresse também podem utilizar substâncias com características aditivas para amortecer seu sofrimento, o que contribui para o aumento do abuso e da dependência química na população. Existem alguns estudos que mostraram o aumento do consumo e da venda de bebidas alcoólicas e cigarros eletrônicos durante essa pandemia. O aumento do consumo de cigarros e bebidas em casa também representam um impacto negativo sobre as famílias, especialmente as crianças.
O abuso de medicamentos também é uma preocupação da pandemia, particularmente os medicamentos ansiolíticos e hipnóticos e os derivados de anfetamina, como os psicoestimulantes, como formas de atenuar os distúrbios de sono, a ansiedade e as compulsões alimentares, sem a prescrição médica adequada.
A falta do tratamento especializado, que na maioria das vezes envolve equipe multidisciplinar, terapia de família, terapia individual e em grupo, pode ter deixado alguns pacientes com dependência química desamparados e suscetíveis à recaídas. Grupos de AA e NA também interromperam suas atividades presenciais e, muito embora façam as reuniões online, o contato interpessoal, que costuma ser muito importante nesses casos, não pode ser mantido.
Alguns pacientes experimentaram o oposto: redução do consumo de drogas. Isso ocorreu num contexto de cumprimento do distanciamento social e pela ausência das influências dos amigos e das festas. Esses pacientes experimentaram sintomas de abstinência e alterações de humor, mas alguns aumentaram o consumo de outras substâncias, como álcool e calmantes.
O abuso de substâncias está intimamente relacionado a distúrbios de humor, como depressão e irritabilidade, comportamentos impulsivo-agressivos, abusos físicos e psicológicos em casa e maior risco de suicídio.
Compulsão alimentar
Pacientes com transtornos alimentares são sensíveis às situações que geram estresse e ansiedade e, com frequência, elas desencadeiam tanto episódios de restrição, p.ex. anorexia, como de abusos, p.ex. episódios de binge (ato compulsivo de comer, conhecido também como ataques de fome). A utilização de métodos purgativos, como indução de vômitos, abuso de laxantes ou excesso de exercícios físicos, também são comuns.
Na população geral a pandemia da COVID-19 também trouxe um interesse culinário adicional às famílias. Cozinhar se tornou um passa-tempo e também uma oportunidade de reunir as pessoas que vivem na mesma casa. Essa atividade é para a maioria das pessoas uma atividade prazerosa e saudável. Entretanto, estudos mostram que na população geral também estão ocorrendo comportamentos alimentares de restrição e binge, com consequências para o peso corporal e para a saúde de alguns. Os métodos purgativos, contudo, parecem ser menos frequentes na população geral do que em pessoas com transtornos alimentares clinicamente reconhecidos. O nível de atividades físicas também é menor na população geral do que na clínica, devido às medidas de isolamento do governo. A maioria das pessoas com mudanças no padrão de alimentação vem experimentando aumento da compulsão (binge) e menor atividade física, portanto, ganhando peso.
Compulsão por compras
Quem se utilizava da saída ao shopping para comprar alguma coisa viu na pandemia uma restrição. As pessoas que mantiveram seu poder aquisitivo tiveram menor oportunidade para comprar do que em situações normais. Algumas pessoas passaram a comprar através da internet e o que se viu foi também um exagero nas compras online, procurando compensar a falta de oportunidade de compras físicas. Entretanto, a internet ainda representa um limite às compras e a falta do contato interpessoal também reduz a avidez por comprar. Embora algumas pessoas tenham comprado a mais nessa pandemia, a presença física em lojas é um atrativo para as compras, que o e-commerce não consegue substituir.
Compulsão pelo jogo
O isolamento social tem sido um terreno fértil para diferentes comportamentos aditivos ou compulsivos envolvendo a internet e aparelhos eletrônicos, como computadores e celulares. Adolescentes e adultos jovens são os que têm maior risco de desenvolver dependência por jogos eletrônicos durante a pandemia da COVID-19, sendo comum o aumento expressivo das horas dedicadas à prática desses jogos, alguns passando até 10 horas imersos. A compulsão pelos jogos eletrônicos pode provocar distúrbios de sono, mudanças de humor e conflitos familiares.
Contudo, os jogos também podem ser uma forma de manter os vínculos sociais durante a pandemia, particularmente jogos online que permitem a interação entre os jogadores. Neste sentido, os jogos podem ser atenuadores do isolamento e da solidão que a quarentena impõe.
Discute-se muito a qualidade do que se acessa na internet e o tempo que se dedica a ela e me parece equivocado concluir que quanto maior o tempo de exposição, maior o prejuízo, particularmente numa situação como a que vivemos. Um jovem com um tempo maior em jogos eletrônicos ou mídias sociais pode estar melhor emocionalmente do que aquele que não acessa nenhum desses conteúdos, desde que ele tenha um relacionamento saudável e controlado com essas mídias. A tecnologia vem se mostrando uma grande aliada da pandemia, possibilitando o estreitamento dos laços sociais e me parece que a privação delas possa ser mais prejudicial do que o excesso, embora haja a necessidade de se avaliar caso a caso.
A compulsão pelo jogo de azar, também conhecido como jogo patológico, quando envolve apostas em dinheiro, também é um dos problemas que se agravou com a pandemia. O mercado clandestino de jogos parece não ter alterado sua rotina nessa pandemia, havendo pacientes que se expuseram para fazer suas apostas e se endividaram mais nesse período.
Compulsão por sexo
As pessoas que apresentavam compulsão por sexo passaram na epidemia a acessar mais conteúdos de pornografia pela internet. O mercado de sites de conteúdo adulto ficou aquecido nessa pandemia. Algumas pessoas ignoraram a pandemia e se expuseram fisicamente, assumindo o risco de se contaminarem com a COVID. Da mesma forma que em relação às drogas, houve um aumento da compulsão por sexo nessa pandemia. Um risco adicional nesses pacientes é contrair doenças sexualmente transmissíveis e não procurar o atendimento médico, por medo de se contaminar com a COVID, transmitindo adiante doenças para seus parceiros.
Tratamentos
Abuso de substâncias e comportamentos compulsivos têm complicações e podem precipitar ou agravar outros transtornos mentais, como depressão, transtornos de ansiedade e suicídio. Pessoas com comportamentos compulsivos precisam de apoio psicoterápico e tratamento médico e se beneficiam dessas abordagens, reduzindo o risco psicossocial, porém são transtornos de difícil adesão e comumente ficam sem tratamento adequado.
Essas pessoas estão num risco aumentado para a COVID e também para transtornos mentais decorrentes da pandemia e da quarentena, podem sofrer rupturas familiares e conjugais, que irão agravar seu estado de saúde e a compulsão, e podem ter problemas emocionais por um período maior, mesmo após cessada a pandemia.