Polêmica reeditada: internação compulsória resolve?

O tema da internação compulsória como medida heróica e de salvaguarda da ordem pública voltou-se novamente contra as populações de rua, num momento em que o poder público vem se mostrando claudicante e incompetente para lidar com o problema do crescimento das populações de rua nas principais capitais brasileiras. O tema já foi pauta recente das lideranças políticas de São Paulo e, mais recentemente, do Rio de Janeiro. Não é coincidência que esse assunto volte a ser pautado na mídia com a proximidade das eleições municipais de 2024, com claro viés eleitoreiro de quem quer dar uma satisfação à opinião pública, sugerindo uma medida de cunho higienista e autoritário. Também não é nenhuma surpresa que essa medida agrade grande parte da sociedade, que espera esse tipo de resposta do poder público para “limpar” as ruas das cidades.

Mas o que há de fundamento nessa medida, seria ela de fato resolutiva para um problema de grande complexidade social, que engloba saúde, educação, assistência social, segurança pública, a própria dinâmica das cidades urbanas brasileiras e, claro, consequências de anos de uma política econômica neoliberal que amplificou as desigualdades, o desemprego e a falta de perspectiva de futuro para grande parte da população periférica?

Comecemos pela população de rua que, diante da dureza de morar no asfalto e nas calçadas, sujeita a toda sorte de doenças, violências, fome, humilhação e discriminação, recorrem às drogas para sobreviver à sua dor, o que aprofunda suas condições de miserabilidade e agravam os obstáculos para que possam se recuperar para voltar a ter a esperança de uma vida digna, de um trabalho, uma casa, uma rede social de apoio, que lhes devolvam ou lhes apresentem pela primeira vez a cidadania de existir nas cidades em condições de igualdade com seus demais habitantes.

População essa que, por óbvio, é mais vulnerável à opinião pública e principal alvo de políticos e autoridades públicas que se sentem autorizados a decidir o futuro por ela em nome da ciência, da saúde e da moralidade. A força da lei em benefício da pessoa e da sociedade. Parece um argumento perfeito e quem ousar discordar dele será acusado de anarquista, irresponsável e fanático por direitos humanos.

Então vamos aos fatos, à experiência de alguém que já trabalhou anos em abrigos para menores usuários de crack e testemunhou a falência desse modelo de internação compulsória.

Trabalhei em um abrigo, ou melhor, uma “clínica de internação” de menores usuárias de crack e outras drogas. Meninas que invariavelmente tinham uma situação sócio-familiar precaríssima. A maioria não tinha família, quando muito uma mãe muitas vezes também usuária de drogas, pai ausente, às vezes uma avó que dava algum suporte. Mas a situação social se impunha, baixa frequência escolar, quando era matriculada regularmente, fome, exposição à violência e abusos de todos os tipos em suas comunidades. Resultado muitas vezes era retornar para rua um a três dias depois da alta e voltar a usar drogas. Reinternavam com uma frequência muito alta e o ciclo se perpetuava.

A falta de planejamento e recursos que dessem conta dessa situação sócio-familiar precária, ausência de um trabalho no território que contemplasse a saúde, educação, moradia, alimentação e cultura, a ausência de uma rede de suporte especializada com pessoas com a mesma vivência que pudessem servir de exemplo e apoio. Investimentos necessários para a reabilitação dessas pessoas que precisam de um projeto terapêutico individual de acordo com a história e a demanda de cada uma.

Então pergunto: antes de propor a internação compulsória de pessoas dependentes químicas em situação de rua, as prefeituras oferecem equipes de consultório de rua, Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPS-AD), centros de convivência e cultura, cooperativas de trabalho, vagas de emprego, auxílio moradia, suporte familiar e por pares com experiência de vida em quantidade suficiente para atender à demanda crescente nas cidades? Como esperar que essas pessoas em situação social precária e ainda dependentes de droga consigam se recuperar sem a melhoria de suas condições sociais? Qual o combate efetivo ao tráfico de drogas nessas áreas, que continuam alimentando a cadeia de usuários?

E mais: caso houvesse número adequado de equipes de cuidado a essa população, não haveria a necessidade de internação compulsória, pois a própria equipe de saúde, ao avaliar a ausência de condições de tratamento ambulatorial ou na rua, indicaria a hospitalização, uma vez que existem critérios clínicos definidos para uma internação involuntária uma vez esgotadas as possibilidades de tratamento na comunidade.

Outro desafio que se impõe, particularmente na população dependente de crack, é uma política eficaz de redução de danos, abandonada por anos em governos anteriores e que precisa superar a hipocrisia, o conservadorismo e o patriarcado característicos de grande parte de nossas lideranças políticas, religiosas e comunitárias, entendendo que não existem soluções simples ou únicas para problemas tão complexos e desafiadores como esse.

Mas continua sendo mais fácil e popular bradar por imposições legais que atendem mais aos interesses dos que se sentem incomodados com a presença dessas pessoas nas ruas, mas que ao final nada resolvem a vida delas, as quais precisam de cuidados que vão muito além de uma internação.

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