Após anos de internação, pacientes têm nova vida em residências terapêuticas.
Seguindo uma tendência de humanização e reinserção social, hoje, no Rio, cerca de 460 pessoas vivem em 89 dessas casas, assistidas por equipe multidisciplinar dos CAPs
Por Ana Paula Blower / O Globo
Na bolsa de couro sobre a cama cuidadosamente arrumada, Tereza Caetano, de 79 anos, guarda sua carteira de trabalho, o documento de identidade e um álbum com fotos da família. Raquel Barros, 43, carrega na bolsa rosa meias recém-compradas, “coisa simples”. Em sua inseparável sacola de pano, Katia Nogueira, 57, leva sempre o maço de cigarros.
As três mulheres têm em comum longos anos de internação psiquiátrica, que deixaram nelas marcas como o hábito de andarem sempre coladas a seus pertences. E, agora, as três encaram uma nova fase: mudaram-se há poucos dias para casas assistidas pelos Centros de Atenção Psicossociais (CAPs) do município do Rio.
Hoje, cerca de 460 pessoas vivem em 89 dessas casas — residências terapêuticas mantidas pela Secretaria Municipal de Saúde no Rio, que também fornece uma bolsa de um salário mínimo aos ex-internos de hospitais psiquiátricos públicos. A ideia é que abram caminho para sua reinserção na sociedade.
O número de moradores em cada residência varia, mas eles têm sempre a assistência de uma equipe multidisciplinar que inclui, entre outros profissionais, psicólogo, enfermeiro e assistente social. Os espaços são divididos a partir da complexidade dos moradores: baixa, média e alta, o que determina os níveis de cuidado e atenção de que precisam.
Recentemente, as internações de longa permanência — quando passam de um ano — vêm diminuindo, por iniciativa da rede pública (leia mais no texto abaixo). Em 2012, eram 1.302 pacientes sob os cuidados do município; em 2015, caíram para 613; hoje, são 282 pacientes. Todos esses estão nos institutos municipais Nise da Silveira, no Engenho de Dentro, Juliano Moreira, em Jacarepaguá, e Phillippe Pinel, em Botafogo.
Esse era o caso de Tereza, que chegou em 2016 ao Juliano Moreira, após quase cinco décadas internada em hospitais privados conveniados com o Sistema Único de Saúde (a parceria acabou em 2016 e a Secretaria Municipal de Saúde assumiu os pacientes em sua rede própria). A antiga colônia, que já foi um dos maiores hospícios do Brasil, desinstitucionalizou 33 pacientes em 2018 — 27 foram para residências terapêuticas e seis voltaram para suas famílias. Mesmo assim, ainda há 194 pacientes internados lá.
A primeira opção para o fim do confinamento psiquiátrico é o retorno familiar. Se não for possível, a residência terapêutica se torna um caminho. O processo de mudança, quando há vaga disponível, é organizado pelos CAPs, e o ideal é que os pacientes participem ativamente dele.
‘Vou passear na praça’
Após 53 anos internada em instituições psiquiátricas, a baiana Tereza Caetano parece indignada quando alguém menciona sua idade.
— Quem disse que tenho 79 anos? Se fosse assim, teria muitos cabelos brancos! — diz a senhora de fios pretos longos entremeados por poucos grisalhos.
Um dia depois de chegar à nova casa, em um condomínio de dez residências terapêuticas onde divide o quarto com outra ex-interna, Tereza Caetano estava ansiosa, perguntando diversas vezes sobre o restante de sua mudança. Olhando as fotos da família, diz sentir falta deles e esperar que a visitem. Sua nova casa tem ainda outros sete moradores, todos ex-internos.
Mais à vontade em sua nova morada, Raquel conta que seus primeiros dias na residência terapêutica estavam sendo calmos.
— A casa é imponente, bonita. E é bom porque não tem discussão — afirma Raquel, que passou oito anos em hospitais psiquiátricos, os últimos dois deles na Juliano Moreira.
Dias antes de deixar o Núcleo Rodrigues Caldas, também na Juliano Moreira, a expectativa de Claudio de Lima Moura, de 44 anos, internado há quatro, era grande. Ele chegou na semana passada, recebido por um churrasco, a uma residência terapêutica em Campo Grande, Zona Oeste do Rio. Para ele, a mudança não seria um problema. “Vou me virar”, dizia, contando o que queria fazer longe da internação:
— Vou ligar o ventilador. Passear na praça, soltar pipa. Comprar uma garrafinha de guaraná natural e uma pizza.
País passa por reforma psiquiátrica
Diretor do Instituto Municipal Juliano Moreira, Alexander Ramalho aponta para a questão social por trás das longas internações. Pessoas internadas por alguma sintomatologia na década de 1960 e 70, por exemplo, e que tiveram seus quadros estabilizados, mas que, por não terem para onde ir, acabaram ficando nos hospitais.
— Todos que estão hoje no Juliano Moreira estão de alta, não têm indicação clínica para estarem aqui. Mas perderam vínculo familiar, algumas foram abandonadas, outros não têm recursos para se manter. E aí aparecem outros dispositivos, como os CAPs, as residências terapêuticas e os espaços de convivência — explica Ramalho. — A política de saúde mental antiga levava à exclusão porque focava no manicômio. Desde a década de 1970, foca-se nos serviços substitutivos.
Desde a década de 1970, alinhado com um movimento mundial, o Brasil passa por uma Reforma Psiquiátrica, que questiona as internações de longa permanência em hospital como única alternativa de tratamento.
Com o intuito de garantir essa mudança, a Lei Federal nº 10.216, de 2001, delimitou três tipos de internação: voluntária, involuntária e compulsória. A lei diz que “a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes”.
— Algo que as famílias consideravam uma aberração virava motivo para internar. Hoje, com essa lei, isso não é permitido. A doença mental deve ser encarada como outra qualquer, sem o estigma de que é alguém que precisa ser excluído — diz a diretora do CAPS III Arthur Bispo do Rosário, Carla Cavalcante Paes Leme.
A ideia de que o paciente não deve viver recluso e que, a todo momento, deve-se pensar em sua reinserção social é uma das premissas dessa reforma psiquiátrica.
Diante disso, Maria Helena Silva, coordenadora de segmento pelo CAPS Profeta Gentileza, define residências terapêuticas como “possibilidades de vida e liberdade”, diferentemente dos hospitais psiquiátricos e suas regras institucionalizadas.
— Na residência terapêutica não existe hora de acordar, de almoçar. Eles é que dizem como querem viver. E nós construímos junto a chegada e a permanência. Eles deixam de ser pacientes e passam a ser moradores de sua própria casa.
Fonte: Jornal O Globo