Compradora compulsiva lembra ‘gatilho’ de cartão de crédito e desejo de morte: ‘fui salva por Fábio Porchat’.

Ao mudar de cargo no hospital em que trabalha, em setembro do ano passado, a fisioterapeuta Bruna Almeida, de 52 anos, recebeu um novo cartão de débito, que poderia ser revertido em crédito, e chorou apavorada. As possibilidades oferecidas pelo objeto remetiam a “uma liberdade pela qual não poderia mais pagar”. Ela levou o cartão imediatamente ao psiquiatra que a atende desde quando foi diagnosticada como uma compradora compulsiva, em 2021.

— O médico me deu duas opções. Eu poderia retirar o cartão da carteira para não me incomodar ou deixar lá e aprender a conviver com isso. Eu decidi mantê-lo para descobrir como lidar com essa luta pela sobrevivência — diz.

Bruna (nome fictício empregado para manter o anonimato pedido pela entrevistada) gastava em média de R$ 8 mil a 10 mil mensais no cartão de crédito da mãe, em compras definidas por ela como “supérfluas e egoístas”. Os valores eram sempre divididos em muitas parcelas. Além disso, a fisioterapeuta tinha um outro cartão, com limite de R$2.500, que era usado para comprar presentes para si.

Moradora de Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro, Bruna conta que precisou ser interditada por conta de problemas financeiros na pandemia, após o médico achar que ela sofria um infarto.

— Eu passei por um momento difícil na vida. Minha filha estava saindo de casa, aos 19 anos, para morar em outro estado e a Covid-19 fez com que muitos dos meus clientes particulares, que eram idosos, morressem. Nesse meio tempo, eu aumentei o valor dos presentes que me dava e não tinha mais como pagar as parcelas — afirma.

Mestre em psiquiatria pela UFRJ, Leonardo Palmeira explica que casos como o de Bruna existem pelo fato do cérebro humano ter um centro de prazer e recompensa, que uma vez estimulado pode provocar a dependência. No caso das compras, o compulsivo não consegue frear os impulsos pelo consumo e o excesso de estímulo provoca prejuízos na vida.

— O dependente tende a comprar cada vez mais. Ele sente prazer no momento do ato, mas muitas vezes se arrepende logo em seguida e não usufrui do produto. É assim que as pessoas vão desenvolvendo também uma relação de culpa, por questões de endividamento — aponta.

Bruna admite que “comprava mais do que devia” quando visitava uma loja. Ela alega que não buscava saber o preço dos produtos e sentia mais prazer quando gastava com “futilidades” e peças de alto padrão.

— Uma vez entrei em uma loja de marca para comprar uma calça jeans. Saí de lá com oito bolsas cheias e paguei R$ 3.500. Também cheguei a gastar R$ 1.200 em uma loja de biquíni. Hoje, com a limitação dos gastos, tenho dificuldade de sair de casa. A minha motivação é o dinheiro — conta.

Como aponta Palmeira, o dependente desenvolve uma relação pautada pela compra com determinados lugares. Isso explica a dificuldade de um compulsivo em passar pela vitrine de lojas ou supermercados e não consumir. Por outro lado, o psiquiatra ressalta que, com a tomada de consciência da doença, o dependente desenvolve uma fobia desses locais.

— É uma relação conflituosa de culpa. A pessoa sabe que perde o controle nesses ambientes, mas ela também precisa satisfazer aquele prazer instantâneo da compra — explica.

Após a descoberta do transtorno, a família recorreu a empréstimos, e o marido — que até então não sabia quanto ela ganhava ou gastava — precisou intervir. Segundo Bruna, ele estabeleceu “punições” para mostrar que ela não pode ter tudo o que quer.

O salário recebido pelo seu trabalho no hospital passou a ser encaminhado diretamente para a conta do marido, que pagava as despesas da casa e demais dívidas. Ela diz se sentir “humilhada” por precisar pedir dinheiro a ele, mas entende a necessidade do controle.

A dependente revelou ter enfrentado momentos de muita tristeza no período em que foi interditada, e diz que chegou a sentir vontade de tirar a própria vida.

— Naquela época, eu preferia morrer do que não poder comprar. Eu só me sentia segura trancada no quarto. O que me salvou foi o programa de conversas do Fábio Porchat (“Que história é essa Porchat?”, do GNT). Aquilo me fazia rir e impediu que eu me jogasse da janela — conta, emocionada.

A fisioterapeuta passou a realizar compras apenas por PIX ou débito, e sua conta bancária é mantida com uma quantidade baixa de dinheiro. Ela pediu aos amigos do trabalho que a impedissem de pedir cartões de crédito emprestados para consumir.

Bruna define a luta contra a doença como diária. Além de acompanhamento com psiquiatra, ela também usa medicamentos controlados e faz terapia. Atualmente, a fisioterapeuta diz estar feliz e orgulhosa da mudança conquistada, mas não nega ainda ter problemas quando quer muito algo que não pode comprar.

— Eu não me arrependo de nada que comprei e não me sinto mais culpada pelo que aconteceu. Não tenho pretensão de repetir os meus erros. Tenho noção da minha doença e quero continuar me tratando — fala.

Palmeira afirma que o tratamento da compulsão por compras deve ser multidisciplinar. O trabalho deve envolver acompanhamento médico, psicoterapia e grupo de ajuda-mútua. O psiquiatra também ressalta a importância do apoio profissional aos parentes dos pacientes, por existirem traços familiares que podem reforçar o comportamento compulsivo.

Fonte: O Globo (reportagem de Luis Felipe Azevedo)

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