Dependente em tecnologia lembra uso diário de 15 horas e demissão por ‘baixa produtividade’.

Ainda que planejasse a rotina, a empresária Luísa, de 28 anos, percebeu que não conseguia cumprir as tarefas programadas devido ao uso excessivo de tecnologia. Ela admite que sacrificava coisas importantes da vida para assistir vídeos e relembra os piores momentos, quando passava de 12 à 15 horas diárias em frente às telas e vivia isolada.

— Eu acredito que o oposto da adicção é a conexão. Eu não conseguia me relacionar ou controlar a minha dependência. Pensava que iria assistir só um episódio, jogar uma fase, usar meu telefone por 10 minutos. Mas nunca conseguia parar por aí e percebi que precisava de cada vez mais estímulo para sentir o mesmo prazer — diz.

Luísa (nome fictício para preservar a identidade da entrevistada) percebeu que era compulsiva em 2017 e decidiu contar para a terapeuta. Porém, ela acredita que “não conseguiu se expressar bem”, o que provocou demora no diagnóstico.

— Minha terapeuta não entendeu a gravidade da questão logo de início. Ela achava que era algo passageiro e resultado de uma fase ruim — conta.

A adicta revela ter tentado diminuir o uso de tecnologia de inúmeras formas, mas todas falharam e provocaram uma recaída ainda maior. Ela percebeu que quando reduzia o tempo de contato com o seu principal gatilho, imagens em movimento, canalizava a atenção nas redes sociais.

Doutora em Saúde Mental e Professora da Pós-graduação do Instituto Delete/UFRJ, Anna Lucia Spear King explica que as tecnologias ativam a área de recompensa do cérebro. Segundo a psicóloga, o dependente passa a viver em um mundo virtual, onde pode esquecer os problemas da vida real.

— No caso dos videogames, por exemplo, os adictos passam a não querer sair do quarto e a urinar em garrafas. Isso tudo para não perderem o jogo. O meio virtual é uma vida paralela e muitas vezes melhor que a normal — aponta.

A dependência também prejudicou o trabalho de Luísa e causou uma perda contínua de eficiência, principalmente quando começou o home office, na pandemia. Ela relembra os dias em que abria o computador e não trabalhava.

Segundo a adicta, a baixa produtividade “gerou muitos problemas para a empresa” e provocou a sua demissão.

— Um dia acordei, tomei banho e o café da manhã. Faltava apenas sentar e trabalhar. Eu não conseguia fazer isso, então menti para a minha chefe. Falei que estava doente. Passei dois dias trancada no meu quarto assistindo televisão e mal me levantava até para comer — afirma.

Além dos prejuízos no meio profissional, o dependente também pode ter problemas na vida pessoal e na saúde. Anna Lucia aponta ser comum que adictos deixem de se relacionar com parentes e amigos. Problemas físicos como artrite e tendinite são motivos de preocupação.

Foi em 2022 que Luísa encontrou o ITAA (https://internetaddictsanonymous.org/pt/), um grupo de ajuda que segue os métodos do Alcoólicos Anônimos (A.A.) para atuar na recuperação da adicção em internet e tecnologia.

O programa de 12 passos adotado pelo ITAA – também chamado de DITA (Dependentes de Internet e Tecnologia Anônimos) – permitiu que ela tivesse contato com outros dependentes.

No tratamento, Luísa frequenta as reuniões do grupo e possui uma “lista de linhas” classificadas como vermelhas, amarelas e verdes, de acordo com os impactos das atitudes na sua recuperação.

— Para mim, séries e vídeos são linhas vermelhas, porque se faço uso, não consigo parar. As amarelas são comportamentos que podem levar para a vermelha. No meu caso, são as redes sociais. E as verdes são ações positivas, como exercício físico e prestação de serviços na irmandade — explica.

Luísa teve uma recaída após um mês de programa e, desde então, encontra-se sóbria. Ela abriu uma empresa quando estava em recuperação e relata ter resultados no trabalho que antes não imaginava que conseguiria. “Eu não dava nem conta das tarefas de um funcionário e agora sou empresária”, celebra.

Cinco anos após ter percebido que o uso de tecnologia não traria mais prazer, mas sim sofrimento, Luísa segue os princípios do programa de recuperação diariamente. O tratamento requer que ela relembre que continua uma adicta e precisa de ajuda.

— É impossível viver sem internet e tecnologia na sociedade atual. As minhas decisões em relação a isso se resumem a uma pergunta: o uso dessa tecnologia é circunstancial ou necessário? Qualquer pessoa que queira se recuperar da dependência consegue, basta ter a vontade de mudar — diz.

Uma pesquisa encomendada pela Digital Turbine, em 2021, constatou que 20% dos brasileiros não ficam mais de 30 minutos longe do celular. O estudo também detectou que cerca de 40% da população aumentou o uso de seus smartphones durante o pico da pandemia.

Mestre em psiquiatria pela UFRJ, Leonardo Palmeira acredita que as mídias digitais inauguraram um novo momento da história moderna: a sociedade da informação.

Para o especialista, os novos meios de comunicação permitem que os sujeitos deixam de ser meros passivos receptores de conteúdo, como ocorria com as tecnologias de massa (Televisão e rádio), para se tornarem produtores e consumidores.

— As mídias digitais nos pegam num nível pré-consciente e emotivo. Somos incentivados a produzir cada vez mais. Essa forma de comunicação pode se tornar compulsiva, deixando a pessoa refém da rede e dos algoritmos. Ela fica submissa e sujeita a afetos que podem ir da euforia à depressão e desespero — explica.

Palmeira diz ser necessário construir mecanismos para combater os malefícios dessa tendência. O psiquiatra elenca como pontos a serem trabalhados: a convivência coletiva e a troca de experiências. Além disso, destaca ser essencial a produção de conhecimento e consciência capazes de fazer frente a essa realidade.

— São inúmeros os riscos não só para a vida privada, mas para a democracia. As pessoas são facilmente influenciadas pela informação – muitas vezes falsas – e vivem num entretenimento desenfreado, na função de entreter a si próprias e às outras. Elas não tem noção das consequências que o sistema pode trazer para suas vidas, tanto do ponto de vista psíquico, como social — conclui.

Fonte: O Globo (reportagem de Luis Felipe Azevedo)

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