Efeitos psicológicos da quarentena pelo COVID-19.
A quarentena imposta pela pandemia de COVID-19 já é a maior e a mais rigorosa dos tempos modernos. É inegável que existe um custo físico, psicológico, social e econômico para toda a população mundial. No Brasil experimentamos desde a semana passada uma quarentena com um rigor crescente, envolvendo medos, preocupações e incertezas. As autoridades não falam com todas as letras como a quarentena será daqui para frente, quanto tempo ficaremos longe de nossas rotinas e de nossos trabalhos, impedidos de ver familiares e amigos, de ter lazer e de fazer esportes. Não há na história recente um período de privação como este, fazendo muitos a compararem ao período da Segunda Guerra Mundial.
Mas quais são os efeitos psicológicos de uma quarentena? O que outras experiências podem nos ensinar, como abrandar os efeitos que um longo tempo de privação social pode ter em nosso organismo?
Um artigo publicado no Lancet em fevereiro (26) traz uma revisão dos estudos sobre impacto psicológico da quarentena após as epidemias de SARS (2003), Ebola (2014), H1N1 (2009/10) e Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS – 2002).
Sintomas e transtornos mentais
Durante essas quarentenas as pessoas comumente relataram medo (20%), nervosismo (18%), tristeza (18%) e culpa (10%). Esses sintomas reduzem normalmente após o período de quarentena, sendo que um estudo mostrou que de 7-17% das pessoas que demonstraram sentimento de ansiedade e raiva após 4 a 6 meses reduziram a mais da metade, para 3-6%.
Estudos qualitativos mostraram que a quarentena também produz outros sentimentos como solidão, desesperança, frustração, irritação, raiva, exaustão emocional e pode provocar insônia. Rebaixamento do humor (73%) e irritabilidade (57%) estão entre as queixas mais prevalentes entre as pessoas submetidas a ela.
Os profissionais de saúde, como esperado, sofrem mais. Entre os profissionais de saúde que prestaram atendimento durante as epidemias, dois estudos encontraram maior prevalência de alcoolismo e dependência química 3 anos depois do surto de SARS em 2003. Outro estudo verificou que 9% reportaram depressão 3 anos depois do surto de MERS, sendo que destes 60% que tiveram que passar por quarentena reportaram sintomas depressivos mais graves. Um estudo relacionou a quarentena de empregados de um hospital a sintomas de estresse pós-traumático 3 anos depois da epidemia. Os profissionais de saúde também experimentam maior estigmatização do que o público em geral. Eles têm com maior frequência pensamentos de estarem infectados com SARS e preocupações de infectar outras pessoas.
A experiência negativa com a quarentena sofre influências de diversos fatores, que podem contribuir para aprofundar os sentimentos de tristeza, medo e frustração. Os estudos apontam que quanto maior o tempo de quarentena e confinamento, com perda da rotina usual e redução do contato físico e social com outros, maior a aflição das pessoas. Isso pode ser potencializado quando há desabastecimento de suprimentos básicos ou considerados essenciais para o período de epidemia. Durante a epidemia de SARS em Toronto, p.ex., autoridades públicas demoraram muito a suprir as necessidades de kits médicos, com máscaras e termômetros, o que foi associado a uma pior evolução psicológica.
Informação e comunicação
Outro aspecto tem a ver com a informação passada de maneira inadequada à população, com diferenças na forma, abordagem e conteúdo da informação transmitida por diferentes órgãos e níveis de governo. No caso da epidemia de SARS em Toronto, houve informações desencontradas que levaram à falta de clareza e propósito da quarentena, dos diferentes níveis de risco e o sentimento por parte da população da falta de transparência do governo quanto à gravidade da epidemia. Esse fator foi considerado um preditor significativo de sintomas de estresse pós-traumático, atribuindo a importância de se ter um protocolo claro e racional que contemple as dificuldades da população em seguir a quarentena.
Trabalho e finanças
O aspecto financeiro da quarentena pode ter um impacto determinante no estado emocional das pessoas. A interrupção das atividades profissionais sem um planejamento de curto ou médio prazo pode ter um efeito psicológico duradouro, com piora do estresse e causando raiva e ansiedade por semanas, mesmo após a suspensão da quarentena. A possibilidade do trabalho remoto, através do home office, ajuda a pessoa a se manter ocupada e a se sentir produtiva, aliviando em parte as tensões que o afastamento e as incertezas diante do trabalho podem causar.
A ação dos governos é considerada primordial nesses momentos, com políticas tributárias compensatórias e de auxílio financeiro enquanto durar a quarentena. Na epidemia de Ebola, mesmo recebendo assistência financeira do Estado, muitos consideraram o montante insuficiente e que a demora em receber o auxílio não possibilitou a cobertura das despesas. Muitos tornaram-se dependentes das famílias, o que foi difícil de aceitar e trouxe conflitos adicionais. Na epidemia de SARS em Toronto houve casos de estresse pós-traumático e depressão, principalmente entre as classes menos favorecidas.
Estigma
O estigma é um dos principais temas sociais relacionados às epidemias. Pessoas infectadas e que foram submetidas à quarentena forçada relataram preconceito e estigmatização mesmo após o controle da epidemia, sendo tratadas por seus vizinhos com suspeição e temor, não sendo convidadas para eventos sociais e recebendo comentários críticos. Mesmo profissionais de saúde, que precisaram trabalhar no atendimento à população, relataram aumento das tensões dentro da própria família, por considerarem a profissão deles muito arriscada.
A educação da população sobre a doença e a explicação do racional para a quarentena são importantes para reduzir o estigma. A mídia também pode ter um papel decisivo, tanto para produzir como para combater o estigma, dependendo da maneira como divulgam as informações.
O que pode ser feito para abrandar os efeitos da quarentena?
Manter a quarentena o mais breve possível
Quarentenas longas estão associadas a piores desfechos psicológicos. Restringi-las ao que é cientificamente razoável e não adotar medidas exageradas de precaução contribuem para minimizar os efeitos sobre as pessoas. As autoridades devem manter a coerência com o tempo de quarentena por elas determinada. A extensão do período de quarentena exacerba os sentimentos de frustração e desmoralização. Impor um cordão de isolamento na cidade sem um limite claro de tempo, como foi feito em Wuhan, China, é mais danoso do que adotar os procedimentos estritamente necessários.
Forneça às pessoas o máximo de informação possível
Assegurar que a população tenha um bom entendimento da situação e das razões para a quarentena, sem informações que provoquem insegurança, medo e exageros. As pessoas já estão com medo de adoecer e de infectar outras pessoas, normalmente possuem expectativa catastrófica em relação a qualquer sintoma que venham a experimentar durante a quarentena, então necessitam, por parte da autoridade de saúde pública, da informação que as auxilie a ter uma visão mais lúcida e compreensiva da epidemia.
Reforçar que a quarentena ajuda a proteger outras pessoas mais vulneráveis e demonstrar que as autoridades estão gratas por essa atitude ajudam a reduzir os efeitos psicológicos da quarentena e aumenta a adesão das pessoas.
Forneça suprimentos adequados
Os suprimentos básicos não podem faltar e precisam ser coordenados pelo governo com antecedência, como planos de realocação para conservar os estoques e evitar o desabastecimento.
Reduza a monotonia e melhore a comunicação
O isolamento e a monotonia contribuem para elevar os níveis de estresse. Acessar sua rede social é uma prioridade, com as mídias sociais e plataformas de comunicação servindo de instrumento valioso para conectar amigos e familiares. Garantir, portanto, acesso a telefones e rede WiFi que possibilitem essa comunicação direta é essencial para reduzir sentimentos de isolamento, estresse e pânico.
Outra comunicação importante é com as autoridades de saúde pública, disponibilizando um canal de contato por telefone e serviços online para orientações de como proceder em caso de algum sintoma.
No Brasil existe um atendimento por telefone (136) para tirar dúvidas e buscar auxílio para COVID-19, bem como um chat on line (http://ms136.vectorservicos.com:8085/webchat/default.aspx).
Há evidências de que grupos de suporte virtuais para pessoas em quarentena podem prover apoio a pessoas que não estão recebendo apoio de outras.
Profissionais de saúde necessitam de atenção especial
Profissionais de saúde em quarentena podem se sentir pior por não estarem ajudando seus colegas no atendimento aos pacientes e as percepções de seus colegas nesse sentido são particularmente importante. A separação da equipe pode aumentar o sentimento de isolamento e o apoio de seus colegas imediatos é fundamental, cabendo às chefias assegurarem que algum suporte vem sendo oferecido aos profissionais em quarentena.
Essa revisão joga uma luz sobre alguns aspectos importantes que cercam a quarentena de uma epidemia. Cada um de nós precisa ter acesso à informação de qualidade, que seja capaz de nos instruir, mas ao mesmo tempo de nos tranquilizar. Cumprir com as determinações das autoridades, respeitando a quarentena imposta, é a nossa parte de contribuição para o controle dessa epidemia. O restante precisamos deixar para as autoridades, para os médicos e demais profissionais de saúde. Acompanhar o noticiário massivamente pode ser para muitos ansiogênico, ficar acompanhando o número de doentes e de mortos também. Cada um precisa encontrar seu ponto de equilíbrio entre a informação adequada (aquela que importa e nos instrui) e a exagerada (aquela que aumenta o medo e gera angústia). Tomar cuidado com as fake-news, que infelizmente são cada vez mais comuns em tempos de mídias sociais, onde os cliques e likes valem mais do que o respeito à vida das pessoas.
Buscar conectividade social é outro ponto importante. Conversar com os amigos e familiares através das plataformas de videocoferência (existem várias, o próprio WhatsApp, Skype, Hangout, Zoom) nos ajuda a superar a solidão e o isolamento que a quarentena nos impõe.