Lady Gaga revela surto psicótico que a afastou de show no Rock in Rio

Sabemos o quanto a psicose é cercada de estigma e tabu. Por isso a importância de uma estrela como Lady Gaga vir a público admitir um surto. Isso naturaliza o problema, mostra que com tratamento e atenção adequada a pessoa retoma sua vida e carreira. A seguir a entrevista que ela deu à revista Rolling Stone.

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Todas as noites de sua atual turnê, no momento em que surge no palco como Lady Gaga, em um vestido carmesim de 4 metros e meio de altura, Stefani Germanotta começa a entrar em pânico. No centro do cenário da ópera, duas camadas de cortinas se abrem, revelando aquela crinolina gloriosa, absurda, do tamanho de um vestido Clifford, e a pequena mulher enfiada dentro dela. Cerca de vinte mil Little Monsters, agora adultos, gritam pela luz guia que lhes disse, quando mais precisavam, que nasceram assim (“Born This Way“).

Lá do alto, acima da multidão, ela sente uma tontura, consciente demais do coração acelerado. Enquanto o vestido desliza para a frente e sua banda irrompe nos primeiros acordes da noite, ela se prepara para a onda de adrenalina que antes lhe parecia a razão de viver. “Quando não estou no palco, me sinto morta”, disse em nosso último encontro, 14 anos e várias crises de saúde mental atrás, antes mesmo de consultar um terapeuta. “Se isso é saudável ou não… realmente não me interessa.” Naquela época, ela se gabava de não dormir nem comer, de viver à base de “café e música”. Namorava, intermitentemente, um barman mal-humorado e metaleiro que considerava sua musa. Todos ao seu redor a chamavam de Gaga.

Ela estava prestes a finalizar seu segundo álbum, Born This Way, que vendeu 14 milhões de cópias. Naquele momento, era fácil imaginar o restante de sua carreira como uma trajetória ascendente e tranquila. Seu álbum seguinte foi o controverso Artpop, que os fãs acabariam por abraçar como um dos seus favoritos. Mas a crítica foi hostil, as vendas diminuíram e Gaga enfrentou a primeira reação negativa de sua carreira, em um momento já frágil. Ela vinha reprimindo um grande trauma desde os 19 anos, quando, segundo ela, um produtor musical a estuprou. Na era Artpop, esse trauma finalmente veio à tona.

Ela tentou escapar de tudo isso e conseguiu gravar alguns de seus maiores sucessos ao longo do caminho. Fez álbuns de jazz com seu amigo Tony Bennett, arrasando em “Lush Life“, a composição de Billy Strayhorn que Frank Sinatra achou difícil demais para cantar. Ela se aventurou no estrelato cinematográfico, especializando-se em performances emocionalmente transparentes que eram difíceis de conciliar com sua persona multifacetada do mundo da música. Ela gravou uma (ótima) trilha sonora para o filme Nasce Uma Estrela, e experimentou com o seu excêntrico quinto álbum de estúdio, e Joanne — nada a ver com um álbum pop típico da Lady Gaga.

Mesmo enquanto se apresentava no show do intervalo do Super Bowl e ganhava Globos de Ouro e um Oscar, seu psicológico estava se deteriorando. “Fiz Nasce Uma Estrela tomando lítio”, revelou casualmente. Na turnê mundial de Joanne, logo após as filmagens, ela sofreu o que descreveu como um surto psicótico. “Um dia, minha irmã me disse: ‘Não vejo mais minha irmã’”, conta. “E eu cancelei a turnê. Fui internada em um hospital psiquiátrico. Precisava de um tempo. Eu não conseguia fazer nada… Entrei em colapso total. Foi realmente assustador. Houve um momento em que achei que não conseguiria melhorar… Me sinto muito sortuda por estar viva. Sei que pode soar dramático, mas sabemos como isso pode terminar.”

Ela conseguiu se reerguer, com muita ajuda do noivo, Michael Polansky, um empresário gentil, formado em Harvard, que sempre a chamou de outra coisa senão Stefani. “Estar apaixonada por alguém que se importa com a verdadeira eu fez toda a diferença”, diz ela. Mas isso significava que ela precisava descobrir quem era essa pessoa: “Como você aprende a ser você mesma com alguém quando não sabe como ser você mesma sozinha?”

Ela encontrou essa resposta e agora se considera “uma pessoa saudável e completa”. Em março, lançou Mayhem, um dos maiores álbuns de sua carreira, recuperando cada pedacinho de sua atitude musical, em todas as suas múltiplas facetas, depois de anos se afastando dela. O álbum concorre a sete Grammys, incluindo Álbum do Ano. “Foram meses e meses e meses redescobrindo tudo o que eu havia perdido”, diz ela. “Honestamente, acho que é por isso que se chama Mayhem. Porque o que foi preciso para recuperá-la foi uma loucura.”

A turnê que a acompanha, o Mayhem Ball, é o espetáculo mais impressionante de uma carreira repleta deles, mas as primeiras apresentações confirmaram imediatamente o quanto ela havia mudado. “Não sou mais viciada em adrenalina”, diz ela. “Eu costumava adorar essa sensação”.

Agora, ela reage como qualquer pessoa equilibrada reagiria se se visse diante de uma arena lotada, espremida em uma fantasia gigantesca de Lady Gaga. “Eu vejo todos os fãs”, diz ela, com os olhos arregalados, “e estou neste vestido enorme, a música está tão alta e é tudo tão dramático… e por 90 segundos, preciso me controlar para não ter um ataque de pânico.” Polansky, ouvindo a conversa pelo microfone, às vezes a flagra respirando com dificuldade.

A sensação se mantém durante toda a primeira música: “Estou entrando em pânico um pouco durante ‘Bloody Mary‘”. Mas depois disso vem o sucesso deste ano, “Abracadabra”, que pode muito bem ter substituído “Bad Romance” como a música mais Gaga de todas as tempos, com seu refrão triunfante repleto de autênticos palavreados incompreensíveis da Mother Monster: “Abracadabra, morta-ooh-ga-ga/Abracadabra, abra-ooh-na-na!”

De alguma forma, toda vez que ela começa a coreografia daquela música, seus batimentos cardíacos diminuem e ela se lembra de quem é. Toda a sua prática, para esta turnê, para todas as turnês, entra em ação. “O ensaio de mim mesma me salva”, diz ela. “Cada célula do meu corpo pensa: ‘Você sabe o que fazer’.” Nesse momento, ela costuma olhar para a plateia e gritar uma ordem familiar: “Levantem as malditas patas!” Isso aí, Stefani.

Ela definitivamente não é Gaga nem Stefani”, Polansky me diz. “Ela é as duas, e, sim, elas combinam muito melhor do que as pessoas imaginam”.

Ela diria de uma forma um pouco diferente. “Lady Gaga é a pessoa que criou Lady Gaga“, diz, permitindo-se uma risadinha diante da tautologia. “Acho que me sinto mais tranquila em relação a tudo isso. Tipo, eu sou Lady Gaga. Sabe, essa ideia de que precisa ser algo específico? Acho que é uma velha história que eu contava para mim mesma. E não me importo mais com o que as pessoas dizem. Sou apenas eu”.

Às vezes, porém, não é tão simples assim. Numa tarde de terça-feira do início de julho de 2025, oito dias antes do início da turnê, três Lady Gagas rondam sua casa de ópera, atualmente instalada numa arena vazia em Las Vegas. Uma Gaga está lá em cima, com o enorme vestido vermelho, silenciosa e imóvel, esperando. Outra, de collant, está ensaiando uma coreografia perto de uma passarela que se estende até a plateia ausente. A terceira está na pista da arena, observando-as da escuridão.

A Gaga de vestido é uma das dançarinas da turnê, Jessica Toatoa, uma loira baixinha que se parece um pouco com a própria Gaga. No psicodrama do show, ela interpreta o lado sombrio de Gaga, a Mistress of Mayhem (em tradução livre, a Senhora do Caos), quando Gaga não está interpretando esse papel — a estrela do show também incorpora, às vezes, seu lado luminoso, a presa de Mayhem, uma personagem que ela considera a “Gaga Etérea“. A Gaga de collant é outra dançarina da turnê, China Taylor, que só está imitando a Gaga para os ensaios, para que a verdadeira artista possa se assistir fora do palco. (“O show é criado pela pessoa que está na plateia”, afirma Gaga.)

“Vamos colocar mais fumaça no palco”, diz a verdadeira Gaga pelo sistema de som, falando ao microfone na penumbra. Com maquiagem minimalista, ela está vestida como sua própria assistente de palco, toda de preto, com um rabo de cavalo loiro espreitando por baixo de um gorro de tricô; meias arrastão rasgadas são o único toque de estilo que ela se permitiu. No geral, é a versão mais Stefani que já vi dela, e o mesmo visual que o público da turnê verá quando ela reaparecer no final de cada show, sem o figurino, com o rosto limpo. Polansky chama essa encarnação de A Artista. Hoje, ela consulta periodicamente seu noivo, uma presença calma de shorts, camiseta e tênis, também todo de preto. Ela o vê como seu principal parceiro criativo agora, e ele é creditado junto com ela como um dos diretores criativos e produtores executivos da turnê.

A fumaça que paira no ar, vinda do palco, fica ainda mais densa; luzes estroboscópicas a tingem de carmesim. Acordes sombrios de sintetizador ecoam. Mais do que o show em si, esse espetáculo misterioso e enigmático com várias integrantes de Gaga parece um vislumbre de seu subconsciente. “Você não está errado”, ela diz mais tarde. “É um sonho gótico, e de alguma forma está completamente relacionado ao romance interior com o qual luto a vida toda.”

Gaga está concentrada na tarefa do dia, o motivo pelo qual reuniu suas sósias no palco: no último minuto, ela está adicionando uma versão completamente repaginada de “Shallow” ao show, com uma cenografia que faz referência a O Fantasma da Ópera, de Andrew Lloyd Webber. “Levá-la até o palco B é sempre um desafio”, diz Polansky, e eles encontraram uma solução inovadora: uma gôndola. Sua equipe só precisa construir uma e descobrir como impulsioná-la pela passarela até o piano do outro lado. (Eles vão simplificar, colocando-a sobre rodas e fazendo com que os dançarinos a arrastem.)

“É tão brega cantar ‘Shallow‘ em um barco”, diz Gaga, feliz. “Meio ridículo! Eu pensei: ‘Este é o desafio perfeito, porque isso pode dar muito errado’”. Ela também queria trazer “Shallow” para o seu próprio universo estético pela primeira vez, já que o arranjo de estúdio refletia profundamente suas origens cinematográficas. “Não tem o meu estilo característico”, diz. Ela se lembrou que Mark Ronson, um dos compositores, criou um loop de bateria eletrônica que não entrou na gravação final — depois que ela mandou uma mensagem para ele, ele o encontrou e enviou para ela.

A música agora começa com um baixo sintetizado pulsante que transforma completamente seu clima e estilo. “Acho que o que isso trouxe à tona na música é que o relacionamento de Ally e Jackson era, na verdade, meio sombrio”, diz ela. “Nesta versão, tenho a sensação de que algo realmente assustador pode acontecer”.

“VENHA COMIGO”, diz Gaga, e percorremos corredores de concreto até seu santuário nos bastidores, isolado por cortinas e com carpete. A decoração é minimalista: uma TV grande em um case de transporte, uma mesa posta para um jantar a dois, fotos emolduradas dela com Polansky, alguns livros de arte (Italian Chic, Vanity Fair 100 Years). Acomodamo-nos em duas poltronas macias, com uma vela cara e apagada sobre a mesa entre nós. Em encontros anteriores, Gaga se sentia mais à vontade comigo a acompanhando em sua vida do que com a introspecção de entrevistas formais. Desta vez, mergulhamos direto em território pesado. Ela está se jogando de cabeça; observe enquanto ela se entrega completamente.

A narrativa do show, uma versão onírica de parte de sua jornada na vida real, permite que ela desenvolva personagens de verdade, até mesmo improvisando, no meio de um suposto show pop. “Nunca atuei dessa forma em um palco de arena antes”, diz ela, embora, para ser justa, ninguém mais tenha feito isso. “É diferente a cada noite”. Ela chorou após um show, explicando a Polansky que algo novo havia acontecido: “Depois que cantei ‘Million Reasons‘ para a Mayhem, ela ficou com medo de mim.”

Ela tenta resumir a história de forma sucinta. “Mayhem é como eu começo o show”, diz ela. “É o meu lado mais egocêntrico, um lado de ser Gaga que eu realmente detesto. Basicamente, eu anuncio que sou a rainha e coloco uma versão mais ingênua e jovem de mim mesma em um sono profundo — com o desejo de torturá-la, como forma de ensiná-la a ser grandiosa. A Gaga Etérea gosta disso. Ela simplesmente cai nessa mania gótica, e Mayhem fica horrorizada porque toda a sua motivação era ensinar uma lição a essa garota e, de certa forma, abusar dela para alcançar a grandeza. E o que ela queria não sai como planejado.”

Há, claro, um pouco de autobiografia não tão velada aqui. “Acho que talvez as pessoas não saibam o quanto eu trabalhei quando era jovem”, diz Gaga, e eu a lembro da vez em que a vi cantar seis músicas depois da meia-noite para um vídeo promocional qualquer em 2009. Sua voz falhou e ela saiu correndo da sala, apenas para retornar e se forçar a terminar a apresentação insignificante com uma determinação sobre-humana que me preocupou. Assim como sua personagem, ela tinha o hábito de abraçar a dor que lhe era infligida. “Eu acreditava em sofrer pela arte. Eu acreditava nisso de uma forma muito real. Era quase sincero e doce, mas na verdade não era saudável para mim.”

Enquanto gravava Mayhem, Gaga teve sonhos “com esses diferentes lados de mim mesma”. Há um verso na confessional faixa industrial “Perfect Celebrity” sobre um “clone… dormindo no teto”, e o inquietante single “Disease” foi narrado pelo lado sombrio de Gaga antes mesmo de ela ter um nome para ele: “Você é tão torturada quando dorme/Atormentada por todas as suas memórias”.

O que Gaga não se lembra muito bem — e eu também não, até consultar minhas transcrições — é que ela já tinha visões semelhantes desde 2011. “Eu tive um sonho em que havia algo maligno dentro de mim”, ela me contou naquele ano, enquanto passeávamos por Manhattan em um carro com motorista. “E havia uma parede branca, e para expulsar a negatividade e o mal de mim, eu tinha que bater na parede, e uma essência saía voando do meu centro da alma. Eu estava tentando me livrar disso — uma espécie de exorcismo”.

O exorcismo claramente não surtiu efeito naquela época. Quando chegou a hora de fazer o vídeo de “Disease”, o primeiro single de Mayhem, a personagem Mayhem nasceu. “Começamos a explorar com a coreografia essa ideia de eu lutando contra mim mesma”, diz ela. “Essa música é tão deliberadamente sobre alguém que quer te machucar — e esse alguém é você”. Gaga já havia brincado com imagens de filmes de terror antes, mas o vídeo de “Disease” é uma jornada codificada por seus pensamentos mais sombrios, uma maneira notavelmente intransigente de começar um ciclo de álbum importantíssimo. Ela começa o vídeo cantando como seu próprio cadáver, atropelada por um carro com Mayhem ao volante, e a partir daí a coisa fica ainda mais assustadora.

Por mais estranho que pareça, o vídeo, e todas as referências temáticas que a turnê extraiu dele, talvez não existissem sem o último filme de Gaga, o fracasso estrondoso e instantâneo de outubro de 2024, Coringa: Delírio a Dois. “Havia muita negatividade em torno de Coringa“, diz ela. “E acho que eu estava me sentindo artisticamente rebelde na época”.

A atuação comovente de Gaga, ao lado de Joaquin Phoenix, como uma Harley Quinn tragicamente delirante, foi um dos poucos pontos positivos do filme. As críticas, no entanto, foram implacáveis. Os fãs do sombrio Coringa de 2019 ficaram completamente repelidos pelo salto tonal ousado, senão imprudente, do novo filme: o original era um drama urbano decadente ao estilo de Scorsese, e este era um… musical surreal sobre doença mental. Com um segmento de desenho animado.

Depois de todas as experiências de Gaga, a onda de ódio contra um filme realmente a incomodou? “Eu não fiquei, tipo, indiferente”, diz ela, sorrindo ao ouvir a pergunta. “É engraçado, estou quase nervosa para compartilhar minha reação. Mas a verdade é que, quando começou, eu comecei a rir. Porque estava ficando muito fora de controle”. Seu divertimento acabou se dissipando: “Quando algo demora para se dissipar, isso pode ser um pouco mais doloroso. Só porque eu me dediquei muito a isso.”

O vídeo de “Disease”, então, foi uma resposta a toda essa hostilidade. “Eu coloquei muita energia naquele vídeo”, diz ela. “Eu estava naquele momento, sabe, eu pensava: ‘Vou mostrar quem eu sou e vou mostrar como é essa luta’”.

A obra de arte resultante foi um pouco dolorosa demais. “Quando terminamos de filmar, entrei numa espécie de período sombrio mentalmente”, diz Gaga. “Talvez eu tenha me assustado um pouco… Durante semanas, fiquei realmente perturbada. Isso não saía da minha cabeça. Eu estava tentando descobrir o que queria dizer. Há um lado meu que tem medo de outro lado. E acho que havia uma sensação dentro de mim de que eu ainda não tinha terminado de me curar”.

Começando com sua apresentação no Coachella em abril de 2025, essencialmente o primeiro rascunho do show, ela colocou essa batalha interna no centro de sua performance. “Decidi que queria fazer algo que todos pudessem entender e amar”, conta, “e não precisava ser a coisa mais sombria que eu já criei. Não é a Mayhem falando? ‘Eu tenho que ser sombria.’ E, tipo, o que há em mim que me faz ter que ser a mais durona ou a mais ousada?”

Ela ri quando aponto que, mais leve ou mais séria, ela escolheu colocar um conceito que considerava psicologicamente desestabilizador no centro de uma turnê mundial, se forçando a revisitá-lo noite após noite. “Você simplesmente… me desmascarou e me psicoanalisou de uma vez só”, diz ela. “Isso é algo que eu faria — ter uma experiência traumática e depois construir tudo em torno dela”. Mas, como ela vê, “o desconforto em todas as áreas da vida pode te tornar uma pessoa melhor. Você só precisa se permitir processá-lo”.

O videoclipe de “Disease” atinge um novo patamar de horror no final, quando Mayhem, mascarada e vestida com roupas de bondage, vomita uma grande quantidade de bile negra. Logo em seguida, o cenário muda, e a etérea Gaga envolve sua inimiga em um abraço, cantando o refrão para o monstro: “Eu posso curar sua doença”. A imagem parece uma referência a um momento crucial na carreira de Gaga, quando a reação negativa ao Artpop se cristalizou: enquanto cantava “Swine” no festival South by Southwest, em março de 2014, Gaga pediu à artista performática Millie Brown que vomitasse leite tingido em seu corpo. A performance não foi bem recebida. Seguiu-se um grande debate sobre a “glamourização da bulimia”, e a ação ajudou a consolidar a percepção de que Gaga estava permitindo que sua inclinação para o espetáculo, e o que os detratores presumiam ser um desejo de chocar, ofuscasse sua música.

Ela tentou explicar que a música (“Você é apenas um porco em um corpo humano”) e a performance eram uma tentativa de processar o abuso sexual que sofreu, e não uma provocação aleatória. Ninguém pareceu estar ouvindo, e a rejeição geral de Artpop alterou o rumo da carreira de Gaga. “Sim, foi muito impactante”, diz ela. “Tipo, muito mais impactante do que qualquer outra crítica a qualquer obra de arte. Foi difícil… Foi a primeira vez que recebi uma crítica séria sobre um trabalho que eu havia feito.”

No início de outubro, durante uma breve pausa na turnê, Gaga está de volta ao lugar onde tudo começou. Ela está sentada em uma poltrona de couro preta em uma sala de gravação tranquila no estúdio Village, em Los Angeles — o look do dia é um blazer preto oversized sobre uma camiseta do Social Distortion e botas de couro até o joelho com salto de 7,5 cm. Ela está se recuperando de um resfriado, mas seus olhos brilham. A turnê está, pela primeira vez, à altura da sua visão, e ela acaba de ganhar o prêmio de Artista do Ano no VMA. “Tenho feito muitos shows”, diz ela. “Me sinto muito bem”.

Em algum momento de 2023, Gaga sentou-se ao piano Steinway no canto desta mesma sala e começou a compor o que se tornaria a primeira faixa gravada para Mayhem, a vibrante canção de amor “Vanish Into You”, com o produtor Andrew Watt. Eles se conheceram em outro estúdio alguns meses antes, quando Watt trabalhava no álbum Hackney Diamonds dos Rolling Stones, vencedor do Grammy. Ela estava por perto, gravando algumas músicas relacionadas ao filme Coringa, e Mick Jagger a convidou para entrar enquanto eles gravavam uma balada gospel excepcionalmente forte, “Sweet Sounds of Heaven”, com Stevie Wonder participando nos teclados. Watt criou coragem para colocar um microfone em sua mão e, em poucos minutos, a música se tornou um dueto.

“Ela entrou na sala de gravação”, diz Watt, “e foi a primeira vez que testemunhei pessoalmente, além de assistir aos seus shows, a absoluta ousadia que ela tem. Sim, ela é a Lady Gaga, mas eles são os Rolling Stones, sabe? E o Stevie Wonder. É uma música que ela só tinha ouvido duas vezes. Mick entrega a letra para ela, e aí ela simplesmente começa a se inspirar nela”.

Gaga e Polansky mantiveram contato com Watt e o convidaram para participar quando ela se sentiu pronta para começar a gravar seu próprio álbum — o trio acabou produzindo-o em conjunto. Conforme “Vanish Into You” se desenvolvia, Watt sugeriu adicionar o produtor/programador de bateria Cirkut ao processo, e todos começaram um ano de estreita colaboração. Nesse processo, Gaga finalmente retornou ao centro de sua trajetória artística, após anos de desvios produtivos que ela atribui diretamente ao período posterior ao Artpop.

“Eu me dediquei muito ao Artpop”, diz Gaga. “Foi realmente minha obra-prima da EDM. E eu também estava em um momento muito caótico. Às vezes é difícil se manter firme quando o chão está afundando, sabe?” O álbum, e suas escolhas em relação a ele, se recusaram a dar às pessoas o que elas esperavam. “As pessoas não gostam quando eu digo: ‘Não vou me vestir do jeito que vocês querem. Não vou ter o cabelo que vocês querem e não vou fazer música pop do jeito que vocês querem. Porque vocês querem que tudo soe como “Bad Romance”, e eu nunca mais vou fazer isso’”.

O sexismo presente na reação, em retrospectiva, é óbvio para Gaga. Quando artistas homens se recusam a se repetir, ela destaca, eles são celebrados como visionários, “pensadores radicais descobrindo novos territórios”, que não “precisam se apegar aos louros de seu sucesso anterior”. Em vez disso, “eu fui meio que anunciada como, tipo, ultrapassada”. Ela tinha, na época, apenas 27 anos.

Na cabeça dela, o mundo a tratava como um produto, não como uma artista. “Era assim em todos os lugares que eu ia”, diz ela. “Produto, objeto, negócio. ‘O que você consegue que ela faça? Ela vai fazer isso? Você consegue que ela faça aquilo?’ Quando me tornei um grande negócio para as pessoas, a prioridade delas não era garantir que eu tivesse uma experiência artística digna. Era garantir que eu ganhasse dinheiro o mais rápido possível… Chegou um momento na minha vida em que eu entrava em salas e não havia mais instrumentos. Era uma tentativa de me controlar para que eu fosse uma peça de um negócio”.

Então, ela simplesmente saiu daquele mundo, deslizando para “departamentos auxiliares”, com alguma ajuda inicial de pessoas como Tony Bennett e Bradley Cooper. “Parte da maneira como me afastei da conversa quando ela fica difícil”, diz ela, “foi trilhando meu próprio caminho… Continuei criando espaços onde eu pudesse estar no controle. ‘Talvez se eu fizer isso, eu não seja um objeto’”.

E, na visão dela, todos esses desvios foram necessários. “Mayhem, como obra musical, eu jamais teria conseguido sem os 10 anos de experiência que tive”, diz ela. “Quase 30, se contarmos todos os meus anos na música. Como seria Mayhem se eu não tivesse me tornado cantora de jazz? Como teria soado se eu não tivesse feito Artpop?”

O álbum Chromatica, de 2020 , sua primeira tentativa de retorno ao pop, tinha algumas músicas realmente ótimas, incluindo “911”, uma referência direta e impactante aos antipsicóticos que ela estava tomando. (Desde então, ela reduziu a medicação: “Ainda tomo alguns, sim, mas não tantos. Parei de tomar muitos deles.”) Ela ainda adora esse álbum, mas agora o vê como uma espécie de meio-termo, um momento de transição.

“Chromatica foi muito literal porque era tudo o que eu tinha”, diz ela. “Eu não tinha muito desse tipo de poesia dentro de mim porque meio que a perdi. E eu acho que isso também valia para Joanne. Mas é quase como se alguém perguntasse: ‘Como você se sente?’ e você se recusasse a dar uma resposta artística, você simplesmente diria: ‘Me sinto uma merda’. … O espírito de Chromatica era ter esperança mesmo quando não se tem.”

Mayhem surgiu de uma Gaga muito diferente. “Eu estava voluntariamente e abertamente revisitando todos os pesadelos do meu passado e do meu presente, encontrando poesia em tudo isso”, diz ela. “E isso foi um sinal da minha saúde como musicista. Uma das coisas pelas quais sou mais grata é ter recuperado todas as minhas faculdades artísticas para fazer este álbum. Eu tive que mergulhar muito, muito fundo, e tive que mudar muita coisa na minha vida e me recentrar no que eu precisava como ser humano.”

Um dia, em 2024, Michael Polansky pediu Gaga em casamento enrolando um fio de grama no dedo dela, no quintal de casa, como narra a canção “Blade of Grass“. Em algum momento, porém, ele fez um upgrade. No estúdio em Los Angeles, há um diamante quase do tamanho do punho de um recém-nascido no dedo anelar de Gaga. “Eu tenho o fio de grama”, ela promete. “Só não estou usando hoje!”

Quando conheceu a mãe de Gaga em um evento beneficente no final de 2019, Polansky jamais imaginou se casar, ou sequer ter um encontro, com uma estrela pop. “Quando a mãe dela começou a me dizer que queria me apresentar à filha”, conta Polansky, que cresceu em Minnesota, “pensei que ela estivesse brincando, porque ninguém na minha vida jamais imaginaria que eu fosse alguém que buscasse atenção”.

Uma letra que ela escreveu sobre ele abordava essa incongruência: “Como um homem como eu pode amar uma mulher como você?” Ou, como Polansky coloca, “Como alguém tão tímido e que deseja tanta privacidade pode amar alguém que faria com que sua vida se tornasse exatamente o oposto de tudo o que ele pensava querer?” Para que tudo fizesse sentido, ele também teria que evoluir.

“Minha mãe achava que nós combinaríamos”, diz Gaga, “ou pelo menos que eu ficaria encantada por ele”. Sua mãe fez questão de acrescentar: “Stefani, ele é um cara muito sério”. Ao contar essa história agora, Gaga mal consegue se expressar. Ela se emociona e começa a chorar. “Desculpe”, diz ela. “É tão especial relembrar isso, porque muitas pessoas na minha vida naquela época estavam em busca de diversão. As pessoas realmente adoravam a Lady Gaga bêbada”. Ela sabia que com Polansky, “nenhum dos meus truques funcionaria. Nós iríamos nos encontrar e provavelmente ter uma conversa adulta muito sincera para ver se gostávamos um do outro. A seriedade de Michael talvez tenha sido o que mais me atraiu nele. Ele entendeu imediatamente o quão sérias as coisas eram para mim”.

No passado, ela reconhece, problemas com o pai a levaram a fazer escolhas ruins em relação a homens. “Meu pai é meio durão”, disse ela. (Quando o conheci, ele me cutucou no peito e disse, sobre o meu artigo iminente: “Mantenha a conversa limpa.”) “Meu pai era mais parecido comigo — com aquela mentalidade de ‘viver rápido, morrer jovem’. Ele se reformou agora. Mudou muito. Então acho que me sentia atraída por isso quando era mais jovem. Mas isso era muito diferente”.

À medida que o novo relacionamento de Gaga se aprofundava, ela acredita que seu pai sentiu alívio pela primeira vez desde que a viu incendiar o palco de uma boate com spray de cabelo na adolescência. “Acho que ele sempre se preocupou muito comigo”, diz ela. “Ele não sente mais que precisa se preocupar comigo. O que é uma sensação boa, saber que meu pai pode descansar um pouco.” Eles são próximos apesar das diferenças políticas — seu pai é um conservador declarado e apoiador de Trump, e Gaga é democrata de longa data e cantou o hino nacional na posse de Joe Biden. “Eu tento me concentrar no meu relacionamento com meu pai, além das nossas divergências”, diz ela. “Como todos sabem, isso é difícil. Somos uma família, como todas as famílias”.

Quando conheceu Polansky, ela estava finalizando Chromatica, um álbum supostamente sobre cura. Na verdade, ela estava em péssimo estado. “Eu fumava três maços de cigarro, ficava sentada na varanda o dia todo”, conta. Ela estava prestes a dar entrevistas sobre Chromatica explicando o quão bem estava se sentindo, mas na realidade, “eu estava tão bem quanto podia estar para alguém que fumava maconha o dia todo, tomava umas duas garrafas de vinho e desmaiava”.

As crises mais dramáticas de 2017 já haviam passado, mas mesmo quando começou a filmar Casa Gucci no início de 2021, ela se sentia instável — suas referências na época a uma enfermeira psiquiátrica no set tinham menos a ver com os rigores do papel do que com seus problemas persistentes. “Acho que não estava nada bem durante as filmagens”, diz ela.

A Covid-19 chegou poucas semanas depois do casal se conhecer. “Ela lançou Chromatica antes do previsto, mas teve que cancelar todos os planos de turnê e apresentações”, lembra Polansky. “Então, na verdade, eu a conheci como Stefani desde o início”. Mas o que Polansky viu nela quando se conheceram o preocupou. “O que sempre me chamou a atenção foi o quão impotente ela se sentia”, diz ele. “Sem controle da própria vida. Eu nunca tinha conhecido alguém tão incrivelmente talentosa e genial se sentir tão impotente”. Ele a viu sentar-se ao piano para compor e começar a chorar.

“O que ele viu foi: ‘Essa sou eu, alguém que se sente muito distante do que deveria estar fazendo’”, diz ela. “Ele queria cuidar de mim. E eu nunca tinha sido amada dessa forma. Minha vida era séria para ele. Não era uma festa. Ele me ajudou a perceber que minha vida era preciosa”.

Polansky disse a ela que precisava resgatar sua música e, em troca, ela pediu a ajuda dele. “Como era música, acabei ajudando-a a fazer música”, diz ele. “Pensando bem, se ela quisesse abrir um restaurante italiano, eu teria aprendido a fazer massa. Nunca teve a ver com música. Simplesmente acabou acontecendo.”

Ela pedia a opinião de Polansky, e ele se viu fazendo sugestões líricas e musicais. “Há várias letras no álbum que eu escrevi, sem intenção. Estávamos trocando mensagens, e eu pensei: ‘E se fizéssemos isso?’”, conta Polansky. “E aí acabou entrando na música.” Ele ficou surpreso ao saber que ela lhe havia dado créditos de composição, assim como alguns fãs. “Foi muito emocionante para mim que ela quisesse me reconhecer”, diz ele. “Acho que acabou sendo um pouco mais confuso para quem estava de fora do que esperávamos”.

As sessões de gravação de Mayhem foram longas e, muitas vezes, emocionalmente intensas. “Houve muitas vezes em que ela cantava um trecho de uma música e isso me fazia chorar, e então ela também chorava”, diz Watt, que credita a Polansky um papel crucial de estabilização no processo. “Michael é simplesmente incrível porque ele é muito equilibrado. Nós podíamos estar todos tão excêntricos e animados, pulando e mergulhando na arte. E então ele aparecia como o grande nivelador. Ele dizia: ‘Não, eu não gosto tanto dessa música quanto gostei daquela outra’. Ele tinha essa energia onisciente, tipo Buda”.

A partir daí, Gaga e seu noivo acabaram trabalhando juntos em todos os aspectos do planejamento da turnê. “Imagine dois melhores amigos simplesmente vivendo a vida, mas sempre sendo criativos”, diz Gaga.

A parceria é recíproca. Há uma empresa de pesquisa em saúde da pele perto de Cambridge, Massachusetts, chamada Outer Biosciences, com 20 funcionários, que foi secretamente cofundada por uma das mulheres mais famosas do mundo. “Foi ideia dela”, diz Polansky. Ela faz parte oficialmente do conselho administrativo, mas seu nome foi mantido em segredo até agora. “A atenção que o envolvimento de Stefani traria não era necessária. Não é voltada para o consumidor final. É uma empresa de pesquisa… Meu trabalho não é público da mesma forma. Quando ela fala sobre sermos parceiras, parece que tudo flui de uma maneira só, mas ela também me dá um apoio incrível.”

Eles estão planejando se casar em breve, seja durante a turnê ou logo depois. “A gente conversa sobre isso o tempo todo”, Polansky me conta. “Temos esses intervalos, e eles são tentadores. É tipo, ‘OK, será que a gente pode se casar naquele fim de semana?’ Não queremos um casamento enorme, mas queremos aproveitar. De muitas maneiras, já nos sentimos casados, então não vai mudar muita coisa”.

Eles têm clareza de que a paternidade é o próximo passo, e Polansky se inspira em Elton John e David Furnish, cujos filhos são afilhados de Gaga. “Os filhos deles se mostraram muito felizes. O mais importante é fazer com que pareça que esta é apenas a nossa família, é isso que fazemos. O fato dela ser Lady Gaga, a arte e tudo mais não é algo que ela precise separar do relacionamento comigo ou de quando for mãe.”

“Ser mãe é o que eu mais quero”, diz Gaga. “E ele vai ser um pai maravilhoso. Estamos muito animados com isso”.

De repente, me lembro de algo que ela me disse durante um jantar quando tinha 23 anos e apenas um álbum lançado. Ela seria Lady Gaga para sempre, prometeu, “mesmo quando eu tiver um bebê um dia”.

Ela olha nos meus olhos. “Eu menti”, diz ela, e ri tanto que os saltos de suas botas de plataforma quase saem do chão. Ela repete, parecendo mais leve do que nunca. “Eu menti! Eu amadureci desde que disse isso”.

Fonte: Revista Rolling Stone

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