Por que explorar de forma sensacionalista e inverídica a doença mental na TV aberta em horário nobre?
Uma moça de 34 anos estava com sua família em frente à sua TV da sala quando, inadvertidamente, sem que lhe pedissem licença, de maneira violenta e cruel, invadiram sua casa com cenas de violência e carregadas de preconceito sobre um tema tão delicado e tão custoso às pessoas que, como ela, padecem de algum transtorno mental. A cena lhe custou uma noite sem dormir, colocando ela e sua família em desespero, vendo-se novamente cercada por fantasmas que lhe assombraram no passado e que acreditava estar superando com a ajuda do tratamento e do apoio de sua família.
A cena foi uma infeliz e desrespeitosa abordagem da novela ‘O Outro Lado do Paraíso’, das 21h, da TV Globo, de autoria de Walcyr Carrasco, que foi ao ar no último dia 21. Nela a personagem da atriz Marieta Severo solicitava a um psiquiatra remédios que pudessem provocar alucinações em sua nora, interpretada pela atriz Bianca Bin, e forjava com ele um laudo falso sobre uma doença mental chamada esquizofrenia. Posteriormente a vítima seria internada em um hospício e submetida a tratamentos aviltantes em um ambiente que não retrata a realidade dos ambientes hoje para o tratamento dos transtornos mentais.
Ao chegar num hospício, um profissional afirma que a esquizofrenia não tem cura e que a pessoa poderia ficar internada pelo resto da vida. A nora é imediatamente contida por enfermeiros, sem sequer ser ouvida, e submetida ao eletrochoque sem nenhum tipo de critério ou cuidado com sua saúde, práticas que não condizem com a realidade das instituições para tratamento em saúde mental nos dias de hoje.
As cenas são fortes e mexem com o imaginário popular, que já é tão preconceituoso com a doença mental e seus tratamentos. Ao mencionar uma doença séria como a esquizofrenia, cujos esforços das últimas décadas têm conseguido mudar o seu prognóstico e a sua recuperação, lança na escuridão da ignorância e do estigma a sociedade que, ao invés de contar com uma informação esclarecedora sobre o que é a esquizofrenia e seus tratamentos, recebe esse desserviço da TV Globo.
A esquizofrenia não é uma doença incurável e, nem tampouco, pacientes ficam internados por toda a vida. É uma doença com diferentes níveis de recuperação, em que 25% pode ter uma única crise e se recuperar plenamente a ponto de não mais precisar de tratamento e até 70% dos pacientes se recupera de maneira a levar uma vida digna e com qualidade junto à sua comunidade e sua família, apesar de ainda precisar de algum nível de suporte ou tratamento. Internações são cada vez menos necessárias e somente se justificam quando as opções de tratamento ambulatorial forem esgotadas ou se o paciente estiver correndo risco de vida.
O eletrochoque, ou eletroconvulsoterapia – nome técnico, é um tratamento aprovado e regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina, utilizado com critérios médicos rígidos, depois de um exame cuidadoso do paciente e com a autorização expressa da família, em ambiente hospitalar, sob anestesia e com monitoramento adequado dos sinais vitais do paciente. Não da forma como foi veiculado na novela.
A TV Globo desperdiçou uma oportunidade de ajudar as pessoas que sofrem de transtornos mentais a combater o estigma, como já fizera outrora em uma de suas novelas (‘Caminho das Índias’). Pelo contrário, as cenas da novela ‘O Outro Lado do Paraíso’ foram um tapa na cara das pessoas que convivem com transtornos mentais e dos profissionais de saúde que atuam na área, além de contribuírem para aumentar o estigma junto às pessoas que não possuem informação à respeito e acreditarão que esta é a forma de tratar as pessoas que sofrem com transtornos mentais.
Quais as razões para abordagem tão preconceituosa e apelativa? Sinal do desespero pela audiência? Mas a que custo? Explorar dessa forma a doença mental é tão grave e desleal quanto explorar de forma preconceituosa a cor da pele ou o gênero das pessoas.
A TV Globo deveria rever sua postura e reparar os equívocos nos próximos capítulos da novela.