O que a Gripe Espanhola pode ensinar ao Brasil sobre a COVID-19?

A politização da epidemia e um sistema de saúde sucateado ao longo dos tempos que se mostra insuficiente e desarticulado não é algo novo e que aconteça somente na epidemia atual pela COVID-19. Um estudo publicado pela Dra Adriana da Costa Goulart em 2005 na Revista História, Ciência e Saúde (Goulart AC. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. História, Ciências, Saúde. 12(1): 101-42, 2005) mostra que a epidemia atual guarda muitas semelhanças com a Gripe Espanhola no Brasil, ocorrida há mais de 100 anos.

O desgaste político das autoridades governamentais pela subestimação da gravidade da pandemia, a insistência na visão de que se tratava de um problema menor e que só acometia pessoas idosas, as resistências em realizar a quarentena, a morosidade nas decisões, a politização de tratamentos, a mobilização da imprensa e da opinião pública contra o governo são alguns dos ingredientes que estiveram presentes em ambas as epidemias.

Apesar desse nome, a Gripe Espanhola não se originou na Espanha. Era a Primeira Guerra Mundial e a Espanha foi o país mais transparente sobre a epidemia, enquanto outros, como a Inglaterra, tentavam escondê-la. Sua posição neutra na guerra e seus acenos aos alemães podem ter tido influência política para que recebesse a alcunha.

Apesar da epidemia já desgraçar a Europa, “as notícias sobre o mal reinante eram ignoradas ou tratadas com descaso e em tom pilhérico, até mesmo em tom de pseudocientificidade, ilustrando um estranho sentimento de imunidade face à doença” pelas autoridades brasileiras. Imperou-se uma visão de que a doença era corriqueira, que só afetava com gravidade pessoas de idade mais avançada”, uma versão da contemporânea ‘gripezinha’.

A imprensa começou a dar maior destaque à epidemia quando o surto matou 156 pessoas de uma missão médica brasileira a bordo de um navio a caminho de Dakar. Sem condições de realizar a desinfecção de todos os navios que atracassem no porto e com a dificuldade política e econômica de determinar a quarentena daqueles que chegavam, autoridades do governo foram acusadas de favorecer a entrada da epidemia no país.

“Nenhuma estratégia de combate à moléstia foi previamente montada para socorrer a população. Muitas foram as deficiências das estruturas sanitárias e de saúde reveladas durante o período pandêmico, a começar pela administração sanitária, sobre a qual
muito se falou que a epidemia demonstrou a falência. Entretanto, essa situação já era há muito de conhecimento público. A falta de condições das instituições de saúde para socorrer a população foi o primeiro dos muitos problemas explicitados durante a epidemia”.

Segundo depoimento de um cidadão na época, “a epidemia só fez explodir uma raiva acumulada durante anos contra as instituições de saúde e o desmazelo que o governo
tinha para com a saúde de um modo geral. A espanhola veio, com certeza, tornar imperativo a melhoria da estrutura de saúde da cidade. (…) então houve muita confusão nas ruas, pois todos queríamos uma explicação para a inércia da saúde e do governo” (Nelson Antonio Freire em entrevista à Goulart).

Na época a Diretoria Geral de Saúde Pública, responsável pelas medidas de combate à epidemia, era subordinada ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores e possuía claramente pouca autonomia.

Rapidamente a cidade do Rio de Janeiro caminhou para um colapso. Faltavam alimentos, remédios, médicos e leitos em hospitais. As ruas se transformaram em um mar de cadáveres, pois faltavam coveiros e caixões. Segundo uma testemunha ocular da epidemia, “o pior de tudo é que estava morrendo gente aos borbotões, e o governo dizia nas ruas e nas folhas, que a gripe era benigna. Certo dia, as folhas noticiaram mais de quinhentos óbitos, e mesmo assim a gripe era benigna, benigna, benigna. (…) As mortes eram tantas que não se dava conta do sepultamento dos corpos”.

“Era necessário emoldurar a doença para torná-la compreensível e emocionalmente mais tolerável. Entretanto, nem a população, nem os serviços sanitários foram capazes de lidar com a violência imposta pela espanhola, que acabou instaurando um quadro de desordem pública. Isso porque não se tinha uma resposta positiva para dar à nova peste que recaía sobre a cidade. Tal fato possibilitou o surgimento de um quadro de tensões sociais, criando uma atmosfera de medo, incompreensão e colapso social que se instaurou na capital federal”.

O caos social e o quadro de insatisfação com a morosidade nas medidas profiláticas e com as limitações das instituições de saúde, mostrando-se despreparadas e sucateadas por escassez de verbas e investimentos, fez com que a população se voltasse contra o presidente Wenceslau Braz, o que também foi explorado politicamente por seus opositores e pela imprensa.

O reconhecimento oficial de uma epidemia só se concretiza após um grande acúmulo de doentes e mortos, segundo Rosemberg (1992) e Evans (1992), forçando uma reação coletiva. É antes de tudo um evento social, que mobiliza toda a sociedade para tentar construir sua própria resposta.

Para Rosemberg, uma doença só passa a existir quando há concordância de sua existência pela percepção, classificação e pelas respostas que lhe são dadas e quando se constitui o diagnóstico e, consequentemente, o tratamento. Uma vez cristalizada como entidade específica, ela passa a servir como fator estruturante de situações sociais. O processo de emolduramento traz em si um componente pelo qual as sociedades tentam fazer conexões entre a ordem biológica e social, em que a doença passa a ter também uma natureza social e cultural.

Neste sentido é também uma construção intelectual que, uma vez realizada, tem sua própria história e vitalidade. As negociações em torno da definição e das respostas à doença são sempre complexas, dependendo ao mesmo tempo de elementos cognitivos e disciplinares, de mecanismos institucionais e políticos, bem como do ajustamento ou não dos indivíduos aos modelos estabelecidos (Ranger e Slack, 1992. In: Goulart AC, 2005).

“Ela é construída por meio de fatores intelectuais, atitudes profissionais e políticas públicas, e também do conhecimento popular, tudo isso passando por complexas negociações, mediante as quais a sociedade concorda ou não em aceitar sua legitimação como um mal determinado”.

O que se vê é uma complexa rede de negociações sociais que são frequentemente conflituosas. A população passa a fazer sua própria leitura do conhecimento médico, fortalecendo práticas que nem sempre estão baseadas em evidências científicas, como receitas caseiras, medicina popular, que passam a ser encaradas como uma alternativa diante da falta ou ineficiência dos medicamentos indicados pelos médicos. A dificuldade de atender à demanda imposta pela epidemia também resulta em perda de capital político e prestígio social de vários segmentos da classe médica.

Diante do desconhecimento sobre a doença e de uma ciência ainda em formação, surge uma terapêutica extremamente heterogênea, que transmite incertezas e inseguranças. Durante a epidemia de Gripe Espanhola surgiram vários medicamentos que eram até então pouco utilizados ou desconhecidos da população e que ganharam atribuições curativas. Análogo ao que ocorre hoje com vários fármacos que passaram a ganhar conotação política, como é o caso da cloroquina e de vermífugos. O tratamento médico deixa de ser exclusividade dos médicos e torna-se parte da política e da cultura da pandemia.

Na tentativa de se salvar, a opinião pública passa a exigir a revitalização de medidas como quarentenas e isolamentos e os médicos, sem saber ao certo que tipo de estratégias utilizar, endossam o isolamento como principal medida de prevenção, já que de fato não se conhece nenhuma cura eficaz ou definitva.

O presidente Wenceslau Brás e o diretor da Saúde Pública, Carlos Seidl, foram acusados de incompetência administrativa e de não estabelecer estratégias para defender a população da epidemia. A insistência em defender a benignidade da gripe e o declínio da epidemia diante da realidade presenciada nas ruas foi encarada pela população como uma demonstração de passividade e rendeu as críticas ao governo.

Em determinado momento da epidemia, o diretor de Saúde Pública pedia a censura dos jornais, culpando-os e alegando que eles incutiam o pânico na sociedade e ameaçavam a ordem pública. A Gripe Espanhola passou a ser conhecida na capital como ‘Mal de Seidl’.

Observou-se na época diversos movimentos de cunho nacionalista que colocavam em xeque o modelo republicano ao exercício da governabilidade plena do Estado. Uma questão amplamente debatida foi que a sobreposição do Executivo em relação ao Legislativo acarretava várias conseqüências, entre as quais a inflexão das atividades
institucionais e, principalmente, das rotinas dos ministérios, que passavam a ser ocupados, não por “conselheiros do presidente”, mas por simples “depositários da confiança do presidente” (Lessa,1995. In: Goulart AC, 2005).

Um novo modelo de burocrata passou a ser exigido pela imprensa e com o apoio da população e de grupos políticos, alguém que incorporasse a saúde pública à agenda política do país. A epidemia acabou contribuindo para que figuras como Oswaldo Cruz (falecido em 1917) e Carlos Chagas (considerado seu herdeiro científico) fossem mitificadas.

Chagas tomou posse do comando dos socorros públicos quando a pandemia já entrava no seu declínio. Mesmo assim foi considerado pela população a única pessoa capaz de salvar a nação. Chagas já era um cientista respeitado e de grande renome por ser o braço direito de Oswaldo Cruz e pela descoberta do agente da Doença de Chagas, mas a Gripe Espanhola possibilitou que ele alcançasse posições de poder político e de conhecimento médico antes não alcançadas, encarnando um maior controle sociopolítico e fortalecendo sua associação a Oswaldo Cruz.

Ele criou um serviço especial de postos de atendimento à população em vinte e sete pontos diferentes da cidade. Ao mesmo tempo criou cinco hospitais emergenciais e publicou cartazes e panfletos de alerta aos habitantes e buscando apoio de profissionais da sua área, conseguindo ajuda da maioria dos médicos cariocas e de vários membros da Academia Nacional de Medicina.

“O gênio, de acordo com Norbert Elias, surge de uma construção social, sendo fruto das pressões sociais exercidas sobre ele e da interdependência com outros atores sociais de sua época. Esse tipo de ator se encontra frequentemente envolvido em um processo social não planejado, sendo muitas vezes escolhido para atender a uma demanda social (Elias, 1994b. In: Goulart AC, 2005). Carlos Chagas acabou por atender a uma demanda subjetiva e politicamente necessária do ponto de vista da população. Tal demanda ganhou crédito, devido à postura desse sanitarista e da sua transformação em um gênio salvador da nação e do povo ao longo do evento epidêmico”.

A ocorrência de novos surtos de gripe em 1919 levou Carlos Chagas, então nomeado pelo Presidente Epitácio Pessoa como o novo diretor de Saúde Pública, a restabelecer a quarentena e isolamento para navios e a notificação compulsória de casos da doença.

A Gripe Espanhola matou só no Rio de Janeiro, capital da República na época, 15 mil pessoas, 930 em um único dia no pico da doença, com aumento na taxa de mortalidade de quase 2.000%. 66% da população carioca precisou de internação. Em 1918 a população da cidade do Rio de Janeiro era de 910.710 habitantes.

As semelhanças entre as epidemias e os argumentos utilizados pela Dra Adriana da Costa Goulart em seu artigo servem à história, mas também a um modelo que nos permite compreender os efeitos que as epidemia tem sobre a sociedade e os governos.

Fonte: Goulart AC. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. História, Ciências, Saúde. 12(1): 101-42, 2005.

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