A vulnerabilidade ao estresse: onde começa e onde termina a doença mental?

Pouco se sabe sobre a origem dos transtornos mentais, mas já é bem estabelecido que fatores genéticos e ambientais convergem para o adoecimento. A hereditariedade é um aspecto importante, já que muitos pacientes apresentam um histórico familiar positivo para distúrbios mentais. Entretanto, é comum que os transtornos mentais na família sejam diferentes, por exemplo, um tem depressão, o outro tem Transtorno do Pânico e um terceiro é bipolar.

Estudos genéticos têm associado diversos genes a diferentes distúrbios mentais, mas têm encontrado genes comuns a mais de um transtorno. No caso da esquizofrenia e do transtorno Bipolar (TBH), onde se tem maior robustez científica, vários genes (disbindina, DISC I, COMT, neuroregulina, dentre outros) foram encontrados tanto em pacientes esquizofrênicos como bipolares.

Isto nos leva a um questionamento: seriam os genes específicos para o transtorno A ou B ou eles predisporiam a pessoa ao adoecimento qualquer que fosse a síndrome? E sendo esta segunda hipótese verdadeira, o que faria com que a pessoa desenvolvesse depressão e a outra esquizofrenia?

Isso poderia explicar também porque familiares com a mesma carga genética não adoecem, enquanto outros desenvolvem transtornos mentais graves. Ou seja, embora a genética seja importante, ela não é preponderante. Entram em jogo fatores ambientais, o temperamento e a personalidade da pessoa, que podem tanto protegê-la, como empurrá-la para uma síndrome.

É neste contexto que entra um conceito da década de 70, a vulnerabilidade da pessoa ao estresse, ou seja, sua incapacidade de resistir às pressões, traumas e desgostos da vida, aos quais todos estamos expostos. Naquela época já se dizia que o que poderia ser inato não era a doença mental, mas a vulnerabilidade pessoal de desencadeá-la. E que ter ou não a doença dependeria de inúmeras variáveis, como criação, temperamento, personalidade, posturas e hábitos de vida, traumas, etc.

Pelo conceito de vulnerabilidade, um dos princípios fundamentais para a saúde de um organismo, é manter sua homeostase, seu equilíbrio fisiológico. Se estamos com sede ou precisamos saciar nossa fome, é porque nosso organismo detectou alguma ameaça à nossa homeostase e nos alertou a prontamente agirmos para seu reequilíbrio. As células do nosso corpo também agem sob este princípio. Este seria uma espécie de pulsão vital.

Quando algo de estressante ou desagradável nos ocorre, também agimos para buscar um alívio e restabelecer as condições de felicidade. Experimentamos, nestes momentos, mesmo que seja por um breve período, uma sensação de angústia ou aflição, perdemos algumas noites de sono, ficamos sem apetite, mas logo nos recuperamos e estabelecemos o status quo.

Nessa hora entram em cena o que psiquiatras chamam de disposição e capacidade de enfrentamento. São ferramentas que utilizamos para resolver assertivamente os problemas da vida. O que ocorre em pessoas vulneráveis, é que a disposição e sua capacidade para solucionar seus problemas não são suficientes para recuperar a homeostase, seja porque o trauma ou o infortúnio da vida é muito grande, difícil de transpor, seja porque sua disposição e capacidade de enfrentamento não estão adequadas. O sofrimento psíquico, então, se prolonga e ganha contornos dramáticos, uma vez que a pessoa não vê saída.

A genética pode explicar, em parte, porque alguns são mais vulneráveis, porque uns surtam diante de um problema e outros apenas se abalam, mas conseguem se reequilibrar. Mas certamente que a genética não atua isoladamente. As influências do temperamento (também inato) e da personalidade (adquirida através da criação, das experiências emocionais no início da vida) são de suma importância. Algumas pessoas têm verdadeiro tropismo para problemas, envolvem-se em relacionamentos conturbados, têm condutas de risco, expõem-se a drogas, enfim, criam consciente ou inconscientemente uma atmosfera propícia para o estresse e se colocam em risco o tempo todo para o adoecimento psíquico. É como se colocassem em cheque toda a sua capacidade de enfrentamento, mas se esquecem que o estresse crônico mina sua própria resistência.

O tratamento psiquiátrico, através de medicamentos, procura aliviar os sintomas para aguçar a percepção e permitir que a pessoa possa recuperar suas habilidades de enfrentamento para lidar com a situação adversa. Muitos quadros psiquiátricos vêm acompanhados de alterações cognitivas, como da atenção e da memória, que dificultam à pessoa planejar sua vida e tomar decisões acertadas para reestruturá-la. Neste sentido, a manutenção dos sintomas aprisiona a pessoa em seu marasmo atual, impedindo que ela evolua e saia do quadro.

A psicoterapia é outro ponto fundamental. Medicações podem atuar a curto prazo e devolver à pessoa alguma estabilidade, mas é através da psicoterapia, compreendendo seus pontos fracos e trabalhando para aperfeiçoar suas habilidades de enfrentamento, que a pessoa reunirá condições psicológicas para um dia interromper os medicamentos e seguir sua vida.

Mas as medicações podem ser essenciais para que a psicoterapia de fato aconteça. É comum que num quadro agudo a pessoa circule em círculo, sem conseguir perceber e elaborar suas questões, impedindo, assim, a progressão do tratamento. Por isso o tratamento aliado (medicação e psicoterapia) é comprovadamente mais eficaz do que os tratamentos isolados.

Um aspecto que considero fundamental na recuperação de longo prazo é a mudança de hábitos, comportamentos e atitudes diante das situações de vida, como trabalho, relacionamento, família. Muitos pacientes perceberão, através do tratamento, erros que podem predispô-los a um novo episódio e imprimirão mudanças em seus comportamentos para evitar a repetição.

A maior parte das recaídas ocorrem por fatores sociais ou biológicos que se repetem ao longo dos anos. No caso dos fatores biológicos, a identificação é importante para determinar se aquela pessoa precisa de um tratamento preventivo, inclusive através de medicamentos. É o caso das depressões sazonais, em que a pessoa desenvolve um episódio depressivo sempre no inverno e isso independe de outros fatores sociais. É o caso de algumas apresentações de transtornos cíclicos, como o transtorno bipolar e a esquizofrenia, em que a pessoa, p.ex, tem um episódio uma ou duas vezes por ano. Quando se percebe um padrão de recorrência claro, talvez seja negócio tratar continuamente a fim de se evitar a próxima recaída.

Mas grande parte dos quadros psiquiátricos não apresenta um padrão claro de recorrência (embora possa ser recorrente) que sugira um gatilho biológico para uma nova crise. Eles recorrem muitas vezes por repetição ou manutenção de fatores psicossociais geradores de estresse. A esquizofrenia, doença mental mais consolidada pelas pesquisas científicas, sofre fortes influências do meio em que a pessoa vive. Tem sido comprovado que o estresse proveniente da convivência familiar pode determinar se um paciente terá mais ou menos crises psicóticas. Esquizofrênicos com famílias compreensivas e colaborativas com o tratamento e a reabilitação tem até 70% menos recaídas e hospitalizações do que aqueles que possuem famílias críticas ou hostis. O mesmo pode ser aplicado a pacientes com outros transtornos, como TBH, TOC, Borderline, entre outros.

Então, um dos enfoques do tratamento é mudar os fatores do ambiente sócio-familiar que estão interferindo no processo de adoecimento. Ambientes como trabalho, círculos sociais, amizades prejudiciais seguem o mesmo raciocínio. Sempre que houver uma sobrecarga emocional ou estresse, pode ocorrer um desequilíbrio da homeostase, aumentando a vulnerabilidade da pessoa a um novo episódio da doença.

E porque muitas pessoas tomam remédios a vida toda? Primeiro é preciso separar aquelas que precisarão da medicação por apresentarem doença mais grave, crônica ou recorrente, sendo a medicação um fator preventivo de suma importância. Mas mudar comportamentos, hábitos, estilos de vida não é simples e muitos relutam e, por isso, agarram-se às medicações. É como emagrecer. A maioria quer tratamentos de resultados rápidos, como medicamentos, cirurgias, em detrimento de dietas demoradas e atividades físicas. Porém, qual resultado durará mais tempo? Emagrecimentos rápidos estão relacionados a ganho posterior de peso, enquanto àqueles com mudança real dos hábitos alimentares e do estilo de vida mantém-se magros para a vida toda. Vinte anos após o surgimento da cirurgia bariátrica (para redução de peso) já assistimos a pacientes operados que recuperaram seu peso antes da cirurgia.

Em suma, a transformação pessoal para uma vida mais feliz e sem episódios psiquiátricos precisa partir de dentro para fora, com a ajuda de medicamentos e psicoterapia, mas não pode se furtar de mudar o meio em que a pessoa vive. A cura está na capacidade de reduzir a sua vulnerabilidade e de aumentar sua capacidade de enfrentamento às situações da vida.

Para entender mais sobre a biologia dos transtornos mentais CLIQUE AQUI

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