Entrevista no Portal Consulte sobre Esquizofrenia.
Parte 1 – Estima-se que a esquizofrenia atinja 1% da população, entre homens e mulheres de todas as classes sociais. De difícil diagnóstico, quanto antes for descoberta, melhor e mais rapidamente o paciente estará curado. Acompanhe aqui a entrevista com o autor do livro Entendendo a Esquizofrenia, o psiquiatra Dr. Leonardo Figueiredo Palmeira, que explica o que é a doença, quais suas causas e sintomas.
1. O que é a Esquizofrenia?
É uma doença mental, cuja característica fundamental é uma dissociação entre pensamento, emoção e percepção. A pessoa perde a capacidade de integrar suas vivências psíquicas internas e externas e com isso acaba tendo sintomas como delírios – que são crenças irreais, fantasias nas quais a pessoa acredita como se elas fossem de fato reais, alucinações – que são percepções falsas do meio, então a pessoa pode escutar vozes, ver coisas, ver vultos que não existem, sentir sensações estranhas no corpo. Enfim, a pessoa, por esta dissociação das suas funções psíquicas, tem vivências que são falsas, mas que ela toma como realidade. Então ela acaba perdendo o juízo crítico da realidade. Não consegue mais discernir a fantasia da própria realidade. Isto leva a outros sintomas comportamentais, dificuldade de relacionamento, introspecção, retraimento emocional, isolamento social que são outros sintomas que compõem a esquizofrenia.
2. Quais os fatores causadores da doença?
Ainda não há uma causa totalmente conhecida. Mas o que se sabe hoje é que a metade do risco da doença é composta por fatores genéticos e a outra metade por fatores ambientais. Existem possivelmente centenas de genes que predispõem a pessoa a desenvolver a esquizofrenia, mas não basta ter esses genes. A doença surge de uma combinação de fatores genéticos e ambientais, principalmente fatores que ocorrem precocemente ao longo da vida da pessoa, como durante a gestação, o parto e a primeira infância. Esses fatores ambientais ativam os genes de predisposição à doença, gerando uma vulnerabilidade da pessoa adoecer ao longo da vida. Alguns exemplos de fatores ambientais seriam:
a) Durante a gravidez – infecções maternas como pelo vírus da gripe, rubéola, toxoplasmose, depressão materna, problemas do parto (parto difícil, parto de emergência, hipóxia neonatal, prematuridade, baixo peso ao nascer).
b) Na primeira infância – traumas psíquicos, maternagem deficiente, perda dos pais, infecções do Sistema Nervoso Central.
Esses genes, na presença dos fatores ambientais, seriam ativados e interfeririam no desenvolvimento cerebral criando esse estado de vulnerabilidade. A pessoa fica, então, vulnerável e, na presença de fatores estressantes, ela pode desencadear um surto. Isso é mais comum na adolescência, por ser o momento de formação da personalidade, de cobranças e responsabilidades, aumentando o estresse. Essa pessoa não suporta a sobrecarga e entra num processo de adoecimento, de surto.
3. Fatores genéticos ou fatores ambientes isoladamente podem levar à esquizofrenia?
Veja, a combinação de fatores genéticos e ambientais leva a pessoa a desenvolver uma vulnerabilidade à doença. Ela precisa ter ao longo da vida alguma situação de sobrecarga social ou cotidiana que a leve a desencadear a doença. Há pessoas com predisposição genética, mas que não desenvolvem a doença por não possuírem os fatores ambientais que deflagram todo o processo. Também existem pessoas que têm os genes para a doença, passaram por fatores ambientais de risco, ou seja, possuem a vulnerabilidade, mas que ao longo da vida não foram submetidas a situações de estresse suficientes para o início da doença. Então, existem vários cenários possíveis, em que mesmo tendo a predisposição, a pessoa não adoece. Por exemplo, um pai esquizofrênico não necessariamente vai ter um filho esquizofrênico; ele herda os genes do pai, como herda os genes da mãe, pode ter uma predisposição hereditária, mas pode não ter todos os ingredientes necessários para o adoecimento.
4. Então quem tem um familiar com a doença tem mais chance de também ter a doença?
Esta é uma dúvida muito freqüente que as pessoas perguntam no site: ‘Meu pai ou irmão é esquizofrênico. Qual a possibilidade de eu ser ou do meu filho ser esquizofrênico?’. Estatisticamente essa chance é pequena, tem estudos mostrando que no caso de um dos pais esquizofrênico, o risco do filho ser esquizofrênico é de 12%, o que não é um risco grande, justamente porque o que causa a doença é a combinação de todos os fatores citados. Em outros estudos com gêmeos idênticos, que têm, portanto, o mesmo DNA e teoricamente o mesmo risco de adoecimento, que foram criados no mesmo ambiente, a taxa de concordância para a esquizofrenia é de 50%, ou seja, um gêmeo tem esquizofrenia e o outro vai desenvolver a esquizofrenia apenas em 50% dos casos. Então isso mostra que o peso da hereditariedade é 50% assim como o peso dos fatores ambientais, sejam os fatores precoces que vão alterar o desenvolvimento da pessoa e deixá-la vulnerável à doença, sejam os fatores posteriores que vão desencadear o surto.
5. Qual é a faixa etária mais atingida?
É uma doença que acomete pessoas jovens. A faixa de idade na maior parte dos casos é dos 15 aos 35 anos, sendo que, os homens adoecem mais precocemente do que as mulheres. O pico de incidência nos homens é dos 15 aos 25, nas mulheres dos 25 aos 35 anos. Podem acontecer casos fora desta faixa etária, mas são raros. A esquizofrenia raramente acorre na infância, acredita-se que menos de 1% dos esquizofrênicos desenvolvam a esquizofrenia antes dos 10 ou 12 anos de idade. Existem casos posteriores aos 35 anos, podendo ocorrer aos 40, 45 anos, mas são raros. Dentro do conceito de vulnerabilidade, imagina-se que uma pessoa aos 35 ou 40 anos de idade já tenha passado por fatores externos estressantes suficientes para desencadear a doença. Basicamente são pessoas em idade jovem, em idade produtiva, pessoas em que se espera uma autonomia, uma força de trabalho, formação de família. Enfim, isso é para mostrar como a esquizofrenia pode interferir diretamente com a qualidade de vida e com as perspectivas que a pessoa tem de ter uma vida produtiva e saudável.
6. Como identificar os sintomas da doença, de forma a procurar um especialista e iniciar o tratamento o mais rápido possível?
Essa é uma questão crucial e também difícil de responder, porque quanto mais rápido você iniciar um tratamento, melhor o prognóstico, menor as chances da pessoa desenvolver um surto mais grave, maior a probabilidade dela se recuperar plenamente, de voltar às suas atividades normais.
O primeiro sintoma da esquizofrenia geralmente é o retraimento e o isolamento social. O adolescente acometido pela esquizofrenia – antes de entrar em delírio, alucinações, maiores deturpações da realidade – se fecha, fica muito introspectivo, absorto em seus próprios pensamentos, dúvidas, angústias, ansiedades. A pessoa perde referenciais de vida, começa a questionar coisas absurdas como sua própria existência, a razão das coisas, explicações para fatos naturais, começa se interessar por temas mais exóticos ou mais científicos, acaba se envolvendo com literaturas que tratam do assunto, pode ter interesses específicos em religião, astronomia, física, enfim, buscando uma resposta para o estado interno. Esse estado chamamos de humor delirante difuso, que ainda não é o próprio delírio, mas o estado inicial de angústia que leva a pessoa a entrar no surto psicótico. Então, a pessoa começa se isolar, fica introspectiva, não quer ir à escola ou trabalho, não quer mais se socializar, se isola no quarto e se fecha para o mundo.
7. Estes sintomas podem ser confundidos com uma depressão?
Muitas vezes a família vê isso como um estado de depressão ou até mesmo como algo passageiro da adolescência, uma crise existencial. É por isso que é difícil diagnosticar a doença nesse período, pois dificilmente a família vai levar a pessoa ao médico, ao psiquiatra. Além da resistência natural que todo familiar tem em relação a isso, somente famílias que já sabiam de outros casos de esquizofrenia, que já tenham passado por essa experiência, é que vão acender a luz de alerta. Mas a grande maioria dos casos passa como uma depressão, uma crise normal, passageira. E aí, então, a família só vai despertar para o problema quando o surto eclodir, por ser o momento em que a pessoa começa a falar de suas crenças irreais, de coisas sem sentido, com um comportamento mais alterado e desorganizado. Mas os primeiros sinais, antes do primeiro surto, são esses: isolamento, introspecção, retraimento, dúvidas existenciais, procura por explicações para tudo, a necessidade de vivenciar significados em tudo que acontece.
É importante e desejável que se faça o diagnóstico antes do surto para atuar preventivamente e, com isso, evitar todas aquelas perdas que a pessoa tem, em que o indivíduo se desconecta da realidade, não se relaciona normalmente com as pessoas, se afasta de todos e de tudo, como trabalho e estudo, evitando assim grandes repercussões que uma crise psicótica pode ter para o funcionamento da pessoa.
Parte 2 – A esquizofrenia, uma vez diagnosticada e devidamente tratada, pode permitir que o paciente volte a levar uma vida normal. Acompanhe nesta entrevista com o Dr. Leonardo Figueiredo Palmeira algumas informações importantes sobre as crises, os diferentes tratamentos e a possibilidade de cura da doença.
1. Os pacientes em crise podem ser violentos chegando ao ponto de agredir as pessoas?
Pacientes podem se tornar violentos em uma crise psicótica, mas a violência não é comum a todos os casos. Um dos grandes estigmas da esquizofrenia é justamente achar que o esquizofrênico é violento, que oferece um risco à sociedade, mas isso não é verdade. Se fizermos um levantamento dos casos de esquizofrenia, veremos que a grande parte dos pacientes – 70% a 80% dos pacientes – é muito mais vítima do que algoz de alguma violência. Então, até pelo estado de vulnerabilidade que os indivíduos se encontram, pelo estado de apreensão que o surto psicótico traz, eles se acuam. Às vezes se tornam violentos para se proteger, porque se sentem ameaçados. É preciso saber se a pessoa se sente ameaçada ou não e pra isso é preciso conversar com a pessoa, saber exatamente o que está se passando na sua mente, se está se sentindo perseguida por alguém, se ela acha que vão invadir seu apartamento ou se acha que vão fazer algum mal para sua vida. É natural que a pessoa se arme, se defenda de possíveis invasores. Então, neste sentido, a pessoa pode se tornar violenta, mas na maioria dos casos não funciona desta forma.
2. E quanto ao suicídio, o paciente em crise corre este risco?
O risco de suicídio na esquizofrenia é grande, depois da depressão e do transtorno bipolar é a doença mental que mais tem risco de suicídio. Então é importante conversar com o médico do paciente para que este risco seja melhor investigado. Existem pacientes que podem tentar o suicídio durante o surto, às vezes até em obediência a alucinações que mandam se jogar, se ferir. Podem ter um comportamento suicida após o surto, por uma depressão ou quando caem na realidade e vêem que tudo aquilo faz parte de uma doença e que terão que conviver com a rotina de tratamentos. Tomar consciência do problema também pode de alguma maneira levar à depressão e ao suicídio. Realmente são situações em que tanto a família quanto os profissionais precisam ficar atentos. Existem estudos que mostram que até metade dos pacientes com esquizofrenia podem vir a tentar o suicídio em algum momento de sua vida e as taxas de suicídio na esquizofrenia giram em torno de 10%. Então realmente é motivo para termos certa preocupação, naturalmente sem exagerar, mas sabendo que isso pode ocorrer, para poder prevenir, conversar melhor com o paciente, dar apoio à família, o suporte necessário para que isso não aconteça.
3. Quais são os tratamentos possíveis para a doença?
A esquizofrenia possui o tratamento químico (medicamentoso) e tratamento psicossocial, através de terapia individual, reabilitação social e terapias ocupacionais. No tratamento medicamentoso, existem medicamentos que são antipsicóticos, que atuam no cérebro bloqueando receptores de dopamina. Isto porque uma das principais alterações químicas cerebrais que ocorre na esquizofrenia é o excesso de dopamina e que causa delírios, alucinações e alterações de comportamento. Portanto, esses medicamentos corrigem este desbalanço de dopamina e com isso tratam efetivamente a doença, melhorando a capacidade do paciente se relacionar com as demais pessoas e de retomar suas atividades.
Mas existem pacientes que além da questão psicótica, possuem o que chamamos de sintomas negativos – outro ponto bastante importante a ser abordado. Esses sintomas negativos são a apatia, a dificuldade de iniciativa, o isolamento social, a dificuldade de se envolver em atividades produtivas como trabalho ou atividades sociais. Enfim, pessoas que vão melhorar do surto, sair daquele estado psicótico, mas vão ter dificuldade de retomar suas atividades normalmente. Para esses pacientes é importante que além da medicação se ofereça terapias de reabilitação. Elas incluem a psicoterapia, para ajudar a pessoa a ter mais consciência de sua doença e de seus pontos fortes e pontos fracos, para trabalhar melhor sua capacidade de enfrentamento, sua auto-estima e o seu envolvimento em atividades, e terapias ocupacionais, através de oficinas e atividades que possam recuperar a capacidade da pessoa de se relacionar socialmente e de exercer atividades produtivas. Para isso existem os centros de atenção psicossocial e os hospitais-dia, onde os pacientes freqüentam as atividades de reabilitação social. Existe também a reabilitação neuropsicológica, porque a esquizofrenia tem sintomas cognitivos, como dificuldade de atenção, memória, concentração, dificuldade de planejamento e de organização de suas atividades, que podem ser recuperados com um treinamento adequado.
4. A eletroconvulsoterapia (eletrochoque) é indicada?
É um tratamento polêmico, até porque já foi muito mal utilizado no passado, usado inclusive como medida punitiva para mau comportamento em clínicas psiquiátricas, ou seja, foi um tratamento que acabou ficando muito estigmatizado, embora seja um tratamento eficaz do ponto de vista médico. Existem pacientes que precisam do eletrochoque e realmente melhoram como não melhorariam com medicamentos convencionais.
Os critérios de indicação para o eletro-choque são os seguintes:
a) Primeiro – quando o quadro é grave e o paciente não responde à medicação ou quando não se pode esperar pela resposta à medicação. A medicação pode demorar de 8 a 12 semanas para fazer efeito. E há casos que são graves, em que a pessoa corre risco de vida e não se pode perder tempo. Nestes casos, o eletrochoque acaba sendo indicado por ser um tratamento relativamente rápido. Uma pessoa submetida a 3 ou 4 sessões de eletrochoque – o que se dá aproximadamente em uma semana – tem uma melhora substancial do quadro.
b) Outras indicações – quando há catatonia, ou seja, quando o paciente fica imóvel, numa mesma posição, não interage e, portanto, não se alimenta, não ingere líquidos. Este estado traz riscos de problemas físicos, como desidratação e desnutrição, sendo necessário intervir rapidamente. Na gravidez, quando a paciente não pode usar a medicação, ou quando ela coloca em risco a saúde do feto.
É importante que se diga que a eletroconvulsoterapia hoje em dia é feita em condições totalmente diferentes do que no passado, em ambiente hospitalar, com o paciente anestesiado, monitorado através de aparelhos que controlam a pressão e os batimentos cardíacos e através do eletroencefalograma para ver se o estímulo elétrico aplicado foi eficaz. É um procedimento que está regularizado tanto pelo Ministério da Saúde como pelo Conselho Federal de Medicina, portanto é um procedimento legal, feito também em outros países. Existem alguns efeitos colaterais, sendo o principal deles as alterações de memória. Durante o período em que faz as sessões, o paciente pode ter problemas de memória recente, não se recordando de coisas que acontecem nos dias próximos às sessões, mas depois do tratamento ele a recupera plenamente.
5. O paciente pode ficar 100% curado, inclusive não necessitando mais de medicamentos? Recaídas são comuns?
Esta resposta é muito variável e, naturalmente, depende do caso. Em torno de 20% das pessoas que desenvolvem esquizofrenia tem um único surto, se recuperam fazendo o tratamento por um período de 1 ou 2 anos, melhoram e podem ficar sem medicação, podem viver uma vida normal e sem uma nova recaída. Neste caso, estamos falando de pessoas que têm uma forma mais leve da doença e que, portanto, são pessoas menos vulneráveis, mais resistentes às sobrecargas cotidianas e que terão menos chances de recaídas.
Porém, a maior parte dos pacientes tem um curso que é recorrente, ou seja, pode sim desenvolver novas crises e aí a evolução vai depender de diversos fatores. Primeiro, do próprio tratamento, tanto medicamentoso, quanto psicoterápico e psicossocial, que precisa ser mantido por um período. Esse tratamento vai fortalecer a pessoa quanto à sua vulnerabilidade. Portanto, a esquizofrenia não é uma doença necessariamente crônica, com a qual a pessoa terá de conviver para o resto da vida. O que é pra vida inteira é a vulnerabilidade. Então, se a pessoa passa futuramente por um período de estresse, por algum trauma ou situação de desequilíbrio, pode sim desencadear uma nova crise. Mas se estiver em tratamento, se fortalecendo, as chances de recaída são menores.
6. Quais são os fatores desencadeantes destas recaídas e como evitá-las?
Os fatores que influenciam as recaídas são o próprio tratamento e o ambiente em que a pessoa vive. A família se coloca em uma posição de muita importância, porque as sobrecargas advindas da convivência familiar, muitas vezes por cobranças excessivas, críticas, brigas e desentendimentos vão, ao longo do tempo, se tornando uma sobrecarga emocional e um fator de desequilíbrio a mais e que pode levar o paciente a recair mais vezes, apesar do tratamento. Alem disso, temos os fatores sociais que se relacionam à vida da pessoa, como o trabalho, por exemplo. A pessoa que se recupera de um surto e começa um trabalho muito estressante, onde as cobranças excedem sua capacidade de corresponder às demandas, pode também ter uma nova crise.
Então é importante que os pacientes com esquizofrenia não só façam o tratamento do surto, mas sejam acompanhados ao longo do tempo para saber quais são as suas necessidades, fragilidades, para fortalecer sua capacidade de enfrentar o estresse, saber manejar os conflitos da melhor forma possível para evitar uma reincidência da doença.