Não é só sobre redes: as várias camadas de ‘Adolescência’

Masculinidade tóxica, machismo, patriarcado, misoginia, racismo, bullying, cyber-bullying, meritocracia, neoliberalismo, infocracia, a série Adolescência, da Netflix, aborda tudo isso e mais, abrindo várias feridas da sociedade contemporânea e as deixando expostas. A série parece exalar um odor fétido que deixa o espectador inquieto, enauseado, incomodado, reflexivo, cabisbaixo, angustiado. Uma realidade aparentemente tão distante da nossa, mas assustadoramente tão próxima à medida que a trama vai se desenrolando.

A forma como a série foi filmada, com a câmera ligada o tempo todo, do início ao fim de cada episódio, pegando cada suspiro, cada gota de suor, cada gesto e cada passo dos personagens, só realça esse incômodo, como se não desse para escapar da triste realidade que vai se descortinando aos nossos olhos. A série não tem refresco! Não tem pausa! Tudo se desenrola freneticamente. Até os momentos de silêncio são reveladores, portanto, vale a pena rever a série com calma, prestando atenção nos diálogos e nos movimentos da câmera.

Mesmo que você pense que essa é uma série de ficção, que se passa em outro país, sob outra cultura diferente da nossa, com famílias tão diferentes da sua, qualquer um que tenha assistido atentamente à série, em algum ou vários momentos se colocou ali, na cena, imaginando que o que ali passava podia ou pode sim ocorrer em qualquer lugar e com uma outra qualquer pessoa comum, com qualquer família, consequência das mazelas da nossa sociedade atual.

Como não se identificar com um pai e uma mãe que são surpreendidos com um crime cometido pelo próprio filho, de apenas 13 anos de idade, sendo que ele é seu filho amado, que nunca deu motivos para que se pensasse algo assim? Pois a série vai desenrolando os personagens aos poucos à medida que os problemas vão aparecendo. E toda aparente normalidade vai caindo como um castelo de cartas. Sim, famílias são espantosamente “normais” num primeiro olhar contemplativo. Escolas também podem ser.

Assisti e li diversas análises da série, algumas que tentam minimizá-la e acusá-la de terror psicológico de uma corrente progressista pró-feminista a outras que preferiram se restringir ao debate das redes sociais e do perigo que elas representam para pais desavisados. Portanto, a mensagem seria mais monitoramento e vigilância, mais punição e rigidez. Mas a camada mais profunda da série é sobre relações humanas. Como estamos nos relacionando com os outros, com os colegas e professores na escola, com os vizinhos de casa e, pior, como estamos nos relacionando dentro da própria casa. Embora isso tenha influência da sociedade contemporânea em que a informação das redes toma o lugar dos dispositivos disciplinares tradicionais de controle (pegando o conceito foucaultiano), causando uma falsa sensação de liberdade, pois no final estamos todos aprisionados em algoritmos, a infocracia, segundo o filósofo Byung-Chul Han, cria pessoas despolitizadas, que se deixam adestrar como gado de consumo das mídias digitais. No regime da informação a comunicação é essencial para o controle, o domínio passa a ser a psique do outro, o psicológico. O antídoto a isso está obviamente fora das redes, na polis, na relação real que estabelecemos com os outros em comunidade, e é a qualidade dessas relações que irão proteger ou vulnerabilizar o sujeito ainda mais para o efeito das redes. A série Adolescência é brilhante justamente por expor esse lado que muitas vezes permanece oculto, simplificando a problemática das redes como questões operacionais e pragmáticas, quando na realidade o que está em cena são afetos e a qualidades das relações que estabelecemos com o outro.

A seguir faço uma análise por episódio, sendo desnecessário avisar que quem não viu a série ainda, não deve avançar no texto, afinal ele está cheio de spoilers. Mas talvez valha a pena lê-lo antes de ver a série pela segunda vez.

Episódio 1

O primeiro episódio apresenta a trama e tem um final que, se não é surpreendente, confirma aquilo que todo mundo torcia não fosse verdade. Mas me chamou atenção o fato do garoto querer o pai como acompanhante dos procedimentos na delegacia e não a mãe. Num primeiro momento aquilo não fez sentido, mas pensei, vai ver o garoto achou que a figura do pai, um homem, seria mais forte para defendê-lo num ambiente predominantemente masculino. Mas faltou abraço, afeto, diálogo. O pai passa a maior parte do tempo calado ou com falas perdidas. Já a mãe, assume nesse episódio um papel coadjuvante. A irmã, então, nem se fala. Elas ocupam a sombra ao longo de toda a trama, talvez porque a série queira mesmo chamar atenção para o masculino.

Episódio 2

O segundo episódio é o da escola. Os investigadores, um homem e uma mulher, vão à escola conversar com os demais alunos. Aí começa o circo dos horrores. A escola tem uma rotina de violência, alunos indisciplinados, que praticam bullying, racismo e misoginia, em que a preocupação dos homens é se tornarem populares e atraírem as mulheres.
A melhor amiga da vítima é negra e tinha nela a única amiga na escola, afirma não saber mais o que fazer, pois era a única pessoa que a aceitava do jeito que ela é. O episódio se encerra com um vôo aéreo da câmera, mostrando a menina isolada, deixando a escola em meio aos demais alunos.

A resposta da escola aos conflitos dos alunos é agressiva e autoritária, parecem conhecer somente os métodos punitivos ou corretivos, como quando dois jovens são humilhados pelo professor no pátio ameaçados de serem colocados no isolamento, uma espécie de quarto do castigo, onde não é permitido nenhum contato externo, ou quando à amiga negra é oferecido acompanhamento psicológico que ela critica ser a única ajuda que a escola consegue oferecer. Um professor admite abertamente não saber o que fazer com os alunos. Toca o alarme de incêndio e um caos instantâneo se instala, culminando em gritaria e agressões entre alunos. Até os policiais parecem não ter boa referência de suas escolas, naturalizando a situação. Aliás, não parecem de fato surpresos com a escola, transparecendo ser uma questão comum às escolas inglesas. A policial menciona que a escola fede, tem cheiro de vômito, repolho e masturbação, como todas as outras. O policial compara a escola a um curral.

O cyberbullying parece ter códigos só decifráveis pelos alunos. A coordenadora da escola desconhece, parece viver em outra era. O filho do policial, que estuda na mesma escola, revela ao pai, com quem tem pouco diálogo a ponto de estranha-lo chama-lo de filho, comunidades Red pill que propagam a misoginia e a ideologia Incel, pela qual 80% das mulheres só se interessariam por 20% dos homens e destinariam os demais 80% a um celibato involuntário. A vítima e o criminoso teriam trocado mensagens e ela teria curtido com um emoji um comentário dele que teria viralizado na escola e o exposto aos demais colegas.

Até esse episódio fica claro a ausência de diálogo dos pais com os adolescentes, delegação à escola do papel de educar e a total falta de condições, com um corpo técnico rígido, protocolar e autoritário-agressivo, negligente e alheio às problemáticas que acontecem no ambiente escolar e nas redes.

Não é difícil imaginar escolas como essa por aqui! Quanto a delegar a educação dos filhos às escolas, essa é uma questão antiga. Resta saber se os pais conhecem bem as escolas por dentro. A problemática das redes sociais também é bastante conhecida, e essa parece uma batalha cada vez mais perdida, não só para os jovens, mas para as sociedades contemporâneas, com influências profundas na cultura, na política e na democracia. A questão é como tudo isso impacta o psicológico de alguém vulnerável, capaz de cometer crimes quando afetado por fatores como esses. Aí entra o terceiro e mais eletrizante episódio.

Episódio 3

O terceiro episódio foca nos aspectos psicológicos do adolescente criminoso. Uma psicóloga o entrevista durante quase todo terceiro episódio e mais uma vez a câmera que não desliga fica circulando, ora focando no menino, ora na psicóloga, o que vai gerando uma sensação de envolvimento, como se o espectador fosse a terceira pessoa na sala, observando aquele diálogo. A psicóloga toca em temas sensíveis, começa perguntando dos avós paternos e do pai e de como é a sua relação com eles, mais uma vez a série fica na masculinidade. Essa temática claramente coloca o adolescente numa zona de desconforto, e ele tenta inverter o papel algumas vezes utilizando uma combinação de sedução e intimidação, como quem deseja assumir o controle daquela conversa.

Perguntado pelo pai, se ele é feliz com o trabalho que faz, o garoto prefere ironizar que o pai trabalha consertando privadas, e que faz isso inclusive fora do horário de trabalho, pois ganha mais. Acha esquisita a pergunta sobre o afeto do pai, como se não fosse coisa de homem. Normaliza o fato do pai ser irritável e raivoso, “coisas de pai”, na visão dele. Surge então a primeira diferença com o pai, o que o deixa irritado e descontrolado na entrevista. Como ele não gosta de esportes, sentia-se envergonhado por não jogar bem e não ter a aprovação do pai, percebendo que o pai tinha vergonha dele. Por outro lado não se considera bom em nada (no último episódio aparece uma aptidão dele para desenhos que não foi valorizada pela família). Claramente ele descamba nesse momento para suas insatisfações com o lugar em que está preso, se inflamando cada vez mais, até perder o controle, jogar um copo ao chão e ameaçar corporalmente a psicóloga.

Após uma breve interrupção, a psicóloga retorna e decide então explorar a relação dele com as meninas da idade dele, como suas colegas de escola. Antes porém insiste no pai, o que o deixa novamente irritado, querendo saber como o pai tratava a sua mãe. Ele não sabe bem responder, mas acha que o pai trata bem sua mãe, embora ele tenha destruído um galpão num acesso de fúria. Depois sobre as meninas, quis se gabar de tê-las bulinado para afirmar sua masculinidade e negar que seja gay, embora isso não estivesse sendo pautado. Mas era importante naquele momento posar de garoto que fazia sucesso com as meninas, até que ele cai na armadilha de perguntar se ele é feio. Como ficou sem resposta, irritou-se, pois estava acostumado nesse momento a ser confortado e reassegurado de que não é feio pelas demais pessoas. Isso suscita mais um episódio de descontrole de raiva. Assume novamente a atitude intimidadora para deixar a psicóloga numa posição de desconforto e ameaçada por ele, o que claramente lhe dá prazer, chegando a zombar dela estar ruborizada, com “medo de um pirralho”.

Conta sobre o bullying que sofria na escola e o cyberbullying após comentar um nudes da garota que matou, que o marcou com um emoji desqualificando-o, que viralizou. Chamou ela para dar um passeio, achando que poderia se dar bem com ela, aproveitando-se de sua fragilidade. Nesse momento fica evidente a misoginia, em que a mulher é tratada como um corpo objeto a ser utilizado pelo prazer do homem (“acho ela feia, pois ela é reta”, justifica). Como ela não deu bola para ele e ainda foi sarcástica, decidiu por fim à vida dela.

O episódio termina com os efeitos psicológicos que o machismo e a misoginia podem causar mesmo numa situação clínica, com uma psicóloga tecnicamente preparada, mas que sente a carga de agressividade e intimidação do adolescente, mais preocupado com sua gratificação. A psicóloga chega a ter náuseas após a saída do garoto da sala.

Episódio 4

O quarto e último episódio fecha com as questões da família do adolescente. A van com a qual o pai trabalha é pichada com a palavra “pervertido” e isso provoca um caos justamente no dia do seu aniversário. Ele fica furioso, torna-se grosseiro e agressivo com a mulher e a filha, agride um jovem com a bicicleta no estacionamento de um mercado acreditando que seja o mesmo que passou pela sua casa gritando “pervertido”.

Logo no início do episódio fica claro o contraste do pai agressivo com a mãe afetuosa. Mãe que também sofre com o machismo do marido, que diz a ela o que tem que ser feito na hora que ele deseja. Suas vontades são sempre atendidas, caso contrário ele explode.

No diálogo com a filha no quarto, contrastam as frases “meu pai ama aquela van” com a declaração de amor de mãe para filha e da filha para mãe. Duas mulheres que vivem oprimidas pelo machismo e pelos rompantes do chefe da casa. O close nas duas após regressarem do mercado na van é um retrato da opressão que vivem, a pergunta da filha se ele vai melhorar demonstra que ambas vivem essa realidade há bastante tempo e que essa preocupação acompanha a menina durante a vida.

O episódio possui algumas falas machistas, como na loja quando ele diz a elas para gastar dinheiro, que é o que elas sabem fazer, ou quando elogia a mulher como uma boa cozinheira que vai fazer mocela com pão frito para ele quando chegarem em casa. As duas mulheres também cedem à vontade dele não fazer o programa que combinaram, por que ele se chateou. Como sempre acontece, desistem do programa, alugam um filme e fazem pipoca.

O sentimento de culpa e a tentativa de minimiza-lo são também abordados no final do episódio, sem que os pais consigam fazer uma autocrítica e se implicar (aliás a mãe ao final admite que podiam ter feito mais, o que deixa o pai arrasado). Diante do conselho da terapeuta de não se culparem, eles se eximem de não terem se aproximado do filho quando ele se trancava no quarto, o pai se vangloria de nunca ter batido no filho, apesar da violência que sofria do pai quando era criança, justifica a falta de tempo com o filho por ter que trabalhar 14h por dia, ambos se afirmam bons pais um para o outro, mas não conseguem esconder a culpa que sentem por terem um filho capaz de cometer aquela atrocidade. A preocupação do pai se o filho teria herdado seu gênio demonstra o quanto a causalidade biológica permeia as explicações da vida, como se fatores sociais e psicológicos não tivessem a menor importância.

A cena final do pai com o ursinho simboliza o que faltou neste caso entre pai e filho e o quanto homens podem sofrer numa sociedade estruturalmente machista quando a realidade da vida se volta contra eles, transformando-os de algozes em vítimas. Mas a série mostra o quanto é difícil para os homens se enxergarem nessa posição, basta analisar com calma os homens da série além do pai e do filho, como o policial investigador e o guarda do centro socioeducativo que assedia a psicóloga.

As tentativas de patologizar o adolescente é outra armadilha que as pessoas caem, como tentativa de afastar a realidade de si. Felizmente a série não sucumbiu a isso. Ela mostra como coisas deste tipo podem ocorrer sem que a pessoa ou as pessoas envolvidas sejam verdadeiros monstros. São pessoas comuns, que vivem numa sociedade machista, patriarcal, meritocrática, onde quem é fraco, impopular, feio não tem vez e se torna uma presa fácil para as redes sociais, capaz dos diversos tipos de atrocidades, inclusive matar. Uma sociedade neoliberal em que o trabalho se transformou em escravidão, em que se trabalha sem parar seja para pagar as contas ou para acumular capital, sem tempo para relacionamentos verdadeiros. Uma sociedade informatizada e tecnológica em que as relações humanas são substituídas por telas nas quais as pessoas se exibem umas às outras sem saber sequer quem são de verdade. Em que a atitude e a ação individual podem ser comandadas por algoritmos virais. Treze anos é pouca idade para saber dessas coisas, mas infelizmente já é uma idade em que se é capaz de matar. A série traz os alertas de maneira primorosa, só não enxerga quem não quiser.

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