O que venho observando na minha clínica ao longo da pandemia da COVID-19: Transtornos da Cognição.

Dificuldade de concentração, de memória, de planejamento e organização, procrastinação, dificuldade em executar tarefas que antes conseguia, são muitas as queixas que afetam a cognição nessa época de pandemia da COVID-19 e as razões, como vimos em outras áreas da saúde mental, são diversas. Procuramos neste artigo abordar as principais queixas cognitivas e seus transtornos nesse período.

Inicialmente cabe uma breve explicação sobre o que é cognição. Cognição engloba as funções mentais superiores e aquelas funções mais básicas que servem de fundo para as primeiras. Um exemplo que faz parte do dia-a-dia das pessoas é a queixa de memória. Memória é uma das nossas principais funções cognitivas. Problemas de memória são comuns em quadros afetivos, como a depressão, em situações de estresse e sobrecarga e na Doença de Alzheimer, dentre outros problemas médicos e psiquiátricos. Alguns desses transtornos acometem a memória propriamente dita, como é o caso do Mal de Alzheimer, em que a pessoa perde a capacidade de fixação de novas informações na memória, tornando-se mais esquecidas para fatos recentes do que antigos.

Na depressão, porém, as dificuldades de memória decorrem mais por uma alteração de fundo, que apoia a memória em sua operacionalização. Pessoas deprimidas podem ficar mais desatentas ou apresentar problemas de função executiva, que prejudica as etapas de codificação ou evocação da memória, ou seja, a dificuldade é maior em lembrar ativamente dos fatos, raramente ocorre esquecimento rápido e as pessoas com depressão conseguem se lembrar dos fatos quando são ajudadas através de “pistas”.

Através desse exemplo pode-se ter uma ideia da complexidade de nossa cognição, que engloba ainda linguagem, inteligência, orientação, praxia, gnosia, funções executivas, velocidade de processamento e habilidades visuoespaciais.

Como numa orquestra sinfônica, nossa cognição requer o bom funcionamento dos instrumentos e a coordenação entre eles, dada pelo maestro da orquestra, para que nosso comportamento, nossa capacidade de raciocínio e inteligência, nossa memória, nossa capacidade de socialização, relacionamento e trabalho/estudo sejam harmônicos.

Em tempos de pandemia, com todos os distúrbios que já abordamos em outros artigos aqui no site, sejam sociais, políticos, econômicos, culturais, psicológicos ou familiares, é esperado que algumas pessoas sintam consequências negativas para o bom funcionamento cognitivo.

Como esse é um assunto vasto para ser abordado num único artigo, irei priorizar os quadros mais comuns que venho observando em minha prática clínica, com alguns comentários, embora saiba que cada um deles merecesse ser abordado num texto próprio.

TDAH

O Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH) é um dos transtornos que têm chamado atenção durante a pandemia. E não somente em crianças e adolescentes, mas também em adultos.

Uma das principais mudanças que a pandemia trouxe para o estudo e para o trabalho foi o ensino à distância e o home-office. A rotina de estudantes e trabalhadores sofreu um revés, com um aumento da carga horária na frente de um computador ou celular.

Naturalmente ocorreu uma grande mudança também no aspecto cognitivo, uma vez que prestar atenção a uma aula ou reunião online não é igual quando o ambiente é propício para isso. O setting de uma sala de aula ou de reunião guardam características às quais já estamos acostumados e que transmitem informações que para a grande maioria serve de ambientação e ajudam na concentração e na assimilação de conteúdos. Mesmo nesses ambientes, pessoas têm dificuldade para se manter concentradas, mas se o ambiente mudar, com outros atrativos que podem desviar ainda mais o foco de atenção?

Isso vem ocorrendo com a maioria das pessoas que possuem TDAH ou outras dificuldades cognitivas. Há relatos de maior dificuldade de manter a atenção quando o ambiente não é apropriado, quando existem barulhos na casa, quando há estímulos do próprio computador, como outros websites abertos, aplicativos de mensagens ativos, smartphones ligados ou mesmo estímulos no próprio cômodo da casa, como quadros, livros, TV e até a ausência das pessoas na sala, que poderiam servir de estímulo para focar melhor nos assuntos. As salas virtuais, com várias carinhas aparecendo conjuntamente, é outro fator que pode dificultar a atenção em pessoas que tenham dificuldades.

Sem mencionar as tarefas que precisam ser concluídas fora das aulas ou reuniões, pois em casa existe uma tendência maior à procrastinação, afinal cada um poderá se organizar à sua maneira, não dependendo do horário de trabalho ou escola para concluir as tarefas.

As queixas são frequentes na minha prática clínica e muitos pacientes precisaram de adequações no tratamento, tanto do ponto de vista médico, como psicológico, como organização do seu ambiente de trabalho e estudo, identificação e eliminação de fatores que possam causar dispersão e estabelecimento de uma rotina pré-definida com horários.

Outro aspecto é a sobrecarga emocional dos pais, que precisam acompanhar seus filhos nos estudos ao mesmo tempo em que possuem suas obrigações domésticas e de trabalho, ocorrendo também um aumento dos conflitos em casa, com repercussões negativas para o estado emocional das crianças e dos adolescentes.

Demência

Pessoas idosas com quadros cognitivos leves e demência estão tendo maiores dificuldades de compreensão e assimilação da nova realidade que estamos vivendo. Elas podem se desorganizar mais, ficando mais angustiadas e apavoradas, tornando-se mais inseguras para as atividades de vida diária que antes conseguiam cumprir ou podem ignorar as medidas de distanciamento e proteção pela falta de entendimento e de memória.

A mudança de rotina, para a qual as pessoas idosas e particularmente aquelas com declínio cognitivo têm maior sensibilidade, pode precipitar crises de ansiedade, depressão, agitação, confusão mental e piora do quadro neurológico.

Essas pessoas tiveram interrompidos tratamentos e atividades importantes para sua saúde física e mental, como sessões de fisioterapia, terapia ocupacional, centros de convivência, caminhadas ou passeios ao ar livre, banhos de sol, atividades religiosas, que para elas têm uma importância maior, pois ajuda no seu equilíbrio emocional e conferem uma maior organização mental.

Os pacientes que não puderam contar com os seus cuidadores ainda viram na sobrecarga familiar mais uma fonte de estresse, pois com a mudança de rotina de todos os membros da família, a sobrecarga do cuidado de uma pessoa idosa com demência gera conflitos para o relacionamento familiar com consequências mais danosas para ela, que possui menos recursos cognitivos para lidar com o estresse.

Nesse período de pandemia houve idosos que “abriram” quadros de demência em função da maior ansiedade e das restrições do cotidiano impostas pela quarentena. Essas pessoas já vinham com um declínio cognitivo leve e não conseguiram lidar com a nova situação, apresentando sintomas e dificuldades cognitivas que antes não possuíam.

O tratamento das pessoas com demência envolve cuidados multiprofissionais e de toda a família, o que naturalmente foi mais difícil de manter nessa pandemia.

Autismo

Crianças e adolescentes com Transtorno do Espectro Autista também sofreram mais nesse período de pandemia, principalmente aqueles com quadro mais grave e que necessitam de um tratamento de estimulação/acompanhamento mais intensivo. A maioria dos serviços interrompeu os atendimentos e alguns pacientes tiveram maior dificuldade para se adaptar ao atendimento online. A suspensão das aulas também foi um aspecto negativo adicional para esses pacientes, que possuem maior dificuldade de adaptação ao ensino à distância.

As famílias ficaram sobrecarregadas e o confinamento em casa também agravou quadros de ansiedade, comportamentos repetitivos e estereotipados, agitação psicomotora, dentre outros sintomas.

Entre as atividades recomendadas para a família estão jogos interativos, como Lego, jogos de vídeo-game ou internet e atividades de interesse específico do paciente que podem preencher o tempo ocioso.

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