A morte de Genivaldo escancara o ‘estado de exceção’ em que vivemos

Genivaldo talvez não soubesse os riscos que corria ao parar sua moto por ordem dos policiais rodoviários federais numa estrada de Sergipe. Certamente o fez por ser um homem de bem e que nada tinha a temer. Provavelmente não passou por sua cabeça furar o bloqueio policial, não por medo de ser alvejado ou perseguido. Simplesmente porque isso não passava mesmo por sua cabeça. Ele seria parado, revistado, teria seus documentos averiguados e então liberado. Talvez pudesse ser multado ou ter sua moto apreendida por estar sem capacete, mas esta seria, na sua concepção, a pior das consequências.

O que Genivaldo não sabia mesmo é que por ser preto, pobre e esquizofrênico (detesto utilizar esse adjetivo para designar alguém com um sofrimento mental, mas aqui se faz necessário), ele estava naquela condição numa posição de extrema vulnerabilidade e de extremo risco diante daqueles agentes do Estado.

Um Estado que pratica cotidianamente, um dia sim outro também, o extermínio de pessoas pobres e, na sua maioria, pretas, em nome da ordem e da lei através de suas polícias que se encarregam de uma limpeza étnica e que, na maioria das vezes, permanece impune. Impune, pois no ‘estado de exceção’ o extermínio não está ao alcance das leis e não depende de uma ameaça bélica, ele se desloca para situações sociais e econômicas para se converter em práticas habituais, do nosso cotidiano. Isso pode ser testemunhado nas operações policiais em comunidades das grandes cidades com mortes de pessoas inocentes, como ocorreu dias antes da morte de Genivaldo em uma favela do Rio de Janeiro.

Mas nunca isso esteve tão escancarado como neste trágico episódio de Genivaldo, que coincidentemente trazia Jesus ao seu lado no nome. Genivaldo de Jesus foi covardemente amarrado, com cordas nas mãos e nos pés, carregado até o porta-malas de um carro da PRF, onde foi torturado e morto asfixiado numa cena que revela a crueldade e a similitude com as câmaras de gás dos campos de concentração nazistas. Ele até tentou sua última cartada: mesmo com as mãos amarradas, tentou puxar de seu bolso uma receita de remédios psiquiátricos para provar sua inocência. Para afirmar que ainda lhe restava sua dignidade, que ali estava um cidadão, seu último fio de esperança antes de sucumbir diante do gás lacrimogêneo que um policial deflagrava no interior do veículo enquanto os outros seguravam fechada a porta da mala, ainda esmagando as pernas de Genivaldo.

Giorgio Agamben, filósofo italiano, é um dos que melhor define o ‘estado de exceção’, a zona de indistinção em que uma vida pode ser excluída pelo Estado e o campo (de concentração). No ‘estado de exceção’ o poder soberano, como por exemplo exercido por sua polícia, decide pôr fim a uma vida ainda que ela seja sagrada, revelando essa ambiguidade que, se por um lado não seja lícito sacrificá-la, por outro é um direito dispor dela sem cometer homicídio. A vida que se tira torna-se o objeto da relação política com o Estado, uma vida abandonada. O campo, definido por ele a partir dos seus estudos dos campos nazistas, é o lugar em que o ‘estado de exceção’ se materializa, ou seja, o lugar no qual a vida e a lei entram em um limiar de indistinção e aonde o Estado se sente “autorizado” a matar. É o dispositivo através do qual o poder soberano captura a vida, mas não qualquer uma. Para Agamben, o ‘estado de exceção’ é o paradigma da política contemporânea, um projeto biopolítico de produzir um povo sem fratura na obsessão pelo desenvolvimento. É um conceito polar, em que de um lado estão os sujeitos políticos e do outro a multiplicidade de corpos necessitados, os quais devem ser eliminados a favor dos primeiros.

O caso de Genivaldo não poderia ser mais emblemático. E tudo que ocorreu, da maneira como ocorreu e com as alegações posteriores da PRF, inclusive, só veem reafirmar a teoria de Agamben. Os policiais estavam imbuídos do propósito que lhes é transmitido pelos seus superiores e pelo Estado, que consideram natural essa política de extermínio e o ‘estado de exceção’. Agiram como num campo de concentração nazista, ignoraram uma vida humana e submeteram o corpo de Genivaldo, àquela altura um mero conjunto de carne e osso, a uma execução em câmara de gás improvisada. Depois tentaram forjar um atendimento em um pronto-socorro para dar ares de normalidade. A PRF se pronunciou através de uma nota, da qual destaco os seguintes trechos: “o homem de 38 anos resistiu ativamente a uma abordagem de uma equipe da PRF. Em razão da agressividade os agentes empregaram técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo para sua contenção e o indivíduo foi conduzido à delegacia da polícia civil da cidade. Diante dos delitos de desobediência e resistência, após ter sido empregado com legitimidade o uso diferenciado da força, tem-se por ocorrida uma fatalidade, desvinculada da ação policial legítima.” Os policiais foram afastados depois da repercussão do caso na mídia. Repito, foram afastados do serviço.

Não fossem as testemunhas oculares no local e o vídeo feito a partir de um smartphone, Genivaldo de Jesus seria mais uma vítima oculta da barbárie. Hoje ele escancarou para o Brasil e o mundo o ‘estado de exceção’ em que vivemos. A sociedade precisa reagir ou assistiremos atônitos a tudo isso acontecendo diante dos nosso olhos e às custas de milhares de vidas inocentes.

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