Apresentação para obtenção de grau de Mestre em Psiquiatria pelo IPUB-UFRJ

Bom dia a todas e todos. Inicialmente gostaria de agradecer à minha orientadora, Professora Maria Tavares Cavalcanti, ao meu coorientador, Professor Alexandre Keusen, e aos professores da banca, Pedro Gabriel Delgado e Eduardo Vasconcelos. Esta dissertação de mestrado é motivo de muito orgulho e emoção para mim, pois representa um marco de um trabalho que desenvolvo com uma equipe muito comprometida e unida, da qual aqui presentes estão os meus amigos Elias Carim e Olga Leão, além das famílias e dos usuários que nos dão a honra de sua confiança e convivência. A eles eu dedico esta dissertação e esta defesa.

O objetivo da minha dissertação é analisar o processo de constituição do Programa Entrelaços enquanto uma rede comunitária de apoio e inclusão de pessoas com transtorno mental e de suas famílias na cidade do Rio de Janeiro, que, ao longo dos últimos dez anos, foi se desenvolvendo como resultado deste trabalho.

Apesar de eu mencionar 10 anos, não poderia ignorar todo o trabalho anterior que representa o começo e também o processo que desaguou no que hoje é conhecido como Entrelaços. A importância dos encontros que ocorreram – e que continuarão ocorrendo – é notável. Eles foram e são imprescindíveis para a coconstrução deste projeto, que, como veremos, é resultado da interação entre profissionais, familiares, usuários e outros colaboradores, inclusive os membros desta banca, que nos honraram com suas valiosas contribuições para o amadurecimento da experiência. Como costumo afirmar em outras apresentações sobre este projeto, é sempre um desafio discorrer sobre os componentes e mecanismos que tornaram essa experiência possível, pois nada no Entrelaços é desconectado. Como sugere o próprio nome do programa, tudo está entrelaçado. São como forças vetoriais que afetam suas partes, num constante devir, e que produzem um novo conjunto que jamais volta a ser o que era antes. Portanto, quem pôde vivenciar o programa Entrelaços, e fez parte dele, sabe bem o tamanho deste desafio que hoje eu enfrento. Saibam que eu dei o meu melhor para que este trabalho e esta apresentação pudessem ser apreciados pelos senhores.

Existem momentos que marcam nossas vidas. Eu poderia aqui citar vários: a minha formatura na UFRJ, a residência, meu casamento, o nascimento dos meus filhos. São marcos que funcionam como divisores de água, você sai diferente do que entrou, aquilo lhe ensinou algo diferente que tocou seu coração, mostrou um novo caminho e modificou profundamente, transformando sua prática. Por isso, eu reafirmo que escrever esta dissertação me emocionou em diversos momentos, porque ela foi um presente e uma oportunidade de reflexão sobre toda uma trajetória profissional até aqui, uma vez que o Programa Entrelaços e minha vida estão definitivamente entrelaçados.

Como aluno da UFRJ, fiz o meu internato eletivo aqui no IPUB e tive a Professora Maria como coordenadora. Durante o mestrado, eu fiquei refletindo como isso pôde ter me influenciado a escolher a residência do Pinel ao invés do IPUB, e confesso: não encontrei uma resposta. Mas acredito que a Professora Maria possa ter plantado, sem saber, uma semente da psiquiatria comunitária em mim com seus ensinamentos. O fato foi que fiz minha residência no Pinel, e que este foi um outro marco na minha vida.

Um período difícil, mas riquíssimo, de muitas reflexões e resistências. Sim, resisti ao questionamento de um modelo biomédico que, para um aluno recém-formado em Medicina, soava como um acinte. Tive contato com professores e verdadeiras autoridades na reforma psiquiátrica brasileira, de modo que aquela semente que havia sido plantada pela professora Maria começava a germinar e a incomodar.

Meu primeiro emprego como psiquiatra foi no Hospital-dia do Centro Psiquiátrico Rio de Janeiro, na época dirigido pelo meu coorientador Alexandre Keusen. E, lá no Hospital-dia, então coordenado pelo meu amigo Elias Carim, comecei um grupo de medicação com os usuários. Este grupo logo se desdobrou em um pequeno grupo de psicoeducação com os familiares dos usuários, em que, juntamente com a psicopedagoga Ana Beatriz Bezerra, começamos a desenvolver algumas dinâmicas educativas sobre sintomas, problemas e tratamentos, utilizando cartolinas e pilot.

O professor Alexandre, ao tomar conhecimento do projeto, nos convidou a ampliar a psicoeducação para todos os setores do CPRJ, falando de sua experiência, de seu mestrado e doutorado, e me apresentando a experiência da escola de Pittsburgh, de Carol Anderson, e a de Manchester, de Nicholas Tarrier e Christine Barrowclough, em que eles realizavam seminários (workshops) com as famílias, seguidos de encontros em grupo. Resolvemos então adotar este modelo e a realizar anualmente os seminários no auditório do CPRJ e também grupos mistos, de familiares e pacientes, entre os ciclos de seminários de forma ininterrupta de 2002 a 2008.

Com a saída do professor Alexandre da direção do CPRJ para o Setor de Família do IPUB, fomos convidados por ele a desenvolver um programa de pesquisa e assistência às famílias de pessoas com transtorno mental severo no IPUB. Neste mesmo ano, 2009, lançamos o livro Entendendo a Esquizofrenia e inauguramos o portal de mesmo nome na internet com finalidade psicoeducacional. Ambos eram reivindicações antigas das famílias que atendíamos e traziam os conteúdos que eram ministrados nos seminários.

A vinda para uma instituição universitária representou uma guinada no projeto, com um mergulho mais profundo na literatura sobre os dois pilares que àquela altura já faziam parte, os conceitos de emoção-expressada e de vulnerabilidade ao estresse, e o aprofundamento nos estudos sobre recovery, que na época chegava com força ao Brasil, e o desenvolvimento de metodologias como a terapia de solução de problemas e a entrevista motivacional, através do método LEAP. Esses tornaram-se referenciais teóricos-chaves e também constituíram um conjunto de práticas que na nossa análise contribuíram para o desenvolvimento do Programa Entrelaços.

Uma questão causava-nos certa inquietação. Por que as famílias atendidas no CPRJ não deram continuidade aos encontros depois que deixamos a instituição? Onde falhamos ou o que deixamos de oferecer para que depois de todo o trabalho eles não dessem sequência aos encontros de forma espontânea ou autônoma? Quais as características mais importantes e quais técnicas poderiam ser desenvolvidas para que os grupos se tornassem autossustentáveis? Assim, fomos aos livros e artigos científicos buscar respostas.

Tínhamos clareza que nossa iniciativa, para ser bem-sucedida, precisava estar ancorada na reabilitação psiquiátrica/psicossocial e nas práticas da reforma psiquiátrica brasileira e do recovery. Era preciso desenvolver um método que fosse capaz de compreender a pessoa em sua integralidade, no seu contexto de vida e em seu ambiente, concentrando-se em seus pontos fortes e objetivos pessoais, tratando-a como a verdadeira especialista se nosso objetivo final fosse ampliar as conquistas sociais dessa população, possibilitando a ela uma maior participação da vida comunitária e, com isso, alcançando mudanças culturais na sociedade em relação ao transtorno mental.

Como afirma Benedetto Saraceno, a finalidade da reabilitação é aumentar o poder de contratualidade da pessoa com sua comunidade, com sua casa, com seu trabalho e com sua rede social. Esse é o objetivo maior da reforma psiquiátrica brasileira, a verdadeira transformação social, que os serviços não se tornem local central ou exclusivo das pessoas com transtorno mental.

Esse objetivo representa um enfrentamento da ideologia dominante da psiquiatria, da “terapêutica orientadora”, como nomeia Basaglia, que violenta e oprime a pessoa com transtorno mental por estabelecer a tutela em uma relação hierarquizada do cuidado, centralizada em uma visão biologicista que prioriza o diagnóstico, o sintoma e a medicação em detrimento do sujeito, muitas vezes tratado como cidadão de segunda classe, ao qual é negado o direito de tomar decisões sobre sua vida e de correr riscos. Ora, o que prega a reabilitação psiquiátrica – e é reforçado pelo movimento dos usuários da saúde mental que deu origem ao paradigma do recovery – é justamente a liberdade para tomar decisões, correr riscos e assumir o controle de sua vida, devendo os serviços criar ambientes que permitam à pessoa reconhecer seu próprio domínio e não ensinar modos prescritivos de viver a vida e formar pessoas especialistas em doenças. É crucial, portanto, que um programa de reabilitação seja capaz de desenvolver a prontidão do usuário para encarar o desafio de sua própria recuperação, o que não pode ser alcançado numa relação hierarquizada de poder e tutela.

Isso traz definitivamente para primeiro plano a relação que se estabelece entre os usuários e os serviços e os profissionais de saúde, com implicações profundas e transformadoras para a atitude desses últimos. Como enfatiza Basaglia, antes de qualquer ato terapêutico, precisamos nos conscientizar do nosso papel objetificado de excludentes, no qual somos o tempo todo investidos pela sociedade. A importância do vínculo entre profissional e usuário é central para que as transformações terapêuticas aconteçam, estabelecendo-se uma relação tautológica, ou seja, quanto mais um profissional utiliza estratégias de recovery com o usuário, mais ele desenvolve a prontidão e o senso de recovery em sua jornada de reabilitação.

Para que esta relação se torne possível, precisamos, enquanto profissionais, vivenciar os valores da reabilitação e do recovery, o que implica acreditar no potencial para aprendizado e crescimento de todos os usuários, cultivando a esperança e o otimismo. Não é possível criar uma atmosfera verdadeiramente terapêutica onde reina o “ferimento iatrogênico da desesperança”, na fala de Patricia Deegan, uma das maiores violências que a psiquiatria pode praticar a um ser humano. Para ela, essa atitude provoca “endurecimento de corações” e torna as pessoas desencorajadas a lutar por suas vidas. Portanto, se não é possível a reabilitação sem prontidão, não é possível prontidão sem o desmantelamento da hierarquia e a revolução do cuidado que parte da transformação da relação terapêutica. Como disseca Basaglia, a objetificação do paciente localiza-se no interior dessa relação, que, em última análise, é a relação do usuário com a sociedade que delega ao terapeuta a relação de cura e tutela.

Então, nosso método de trabalho precisava criar uma atmosfera que permitisse desenvolver a prontidão, sem a qual os demais objetivos deste trabalho não poderiam ser alcançados. Mas com o cuidado de não reproduzirmos um otimismo Pollyanna e afastarmos aqueles mais céticos ou mais dominados pela ideologia psiquiátrica vigente. O enquadramento teórico deveria ser capaz de deslocar a concepção organicista, centrada no modelo biomédico, que transmite uma visão fatalista do transtorno mental, para um modelo que priorizasse os aspectos ambientais e sociais, mostrando que a recuperação não é somente possível, mas provável, com a criação de ambientes mais tolerantes, participativos e com maior interação social. O modelo de vulnerabilidade ao estresse de Zubin e Spring já vinha sendo utilizado por nós no CPRJ, mas merecia nosso aprofundamento até mesmo para que a equipe compreendesse melhor e passasse a adotar o modelo como um substituto do modelo clínico kraepeliniano. O modelo de vulnerabilidade é um fio condutor para as demais discussões sobre a emoção-expressada e ambiente familiar, sobre a reabilitação psiquiátrica, sobre o recovery e sobre a reforma psiquiátrica.

Mais recentemente, pesquisadores renomados, como Laurence Kirmayer, professor de psiquiatria social e transcultural da Universidade de McGill, Quebec, Arthur Kleinman, professor de antropologia médica de Harvard, e Rose Birk, professor de sociologia do Kings College em Londres, publicaram livros e artigos que defendem um reengajamento teórico e científico capaz de desconstruir a distinção binária entre biologia e ambiente que possa compreender melhor os processos neurológicos, ecológicos e sociais que constituem a vida humana e as preocupações políticas centrais do nosso campo, como a iniquidade e a injustiça. Um sintoma psiquiátrico não pode ser compreendido como simples resultado de processo fisiopatológico porque ele não pode ser extirpado do ser vivente, que dá sentido ao seu sofrimento e se adapta a ele, e que, na maioria das vezes, é seu conhecimento experiencial e sua resposta pessoal a parte mais importante e a que ele mais valoriza. As intervenções de reabilitação devem contribuir para uma construção social da personalidade, ajudando a reformular as noções do self e as formas de existir a partir de suas próprias práticas e teorias institucionalizadas que formam o sujeito a priori.

A própria Patrícia Deegan, ao dar seu testemunho em primeira pessoa, enfatiza que o sintoma negativo, como o retraimento social e emocional, é reflexo de um sujeito traumatizado pelas consequências ambientais do adoecer e muitas vezes de suas experiências negativas com os serviços de saúde, amedrontado e desencorajado a se expor socialmente de novo. Brown e Wing, responsáveis pelo modelo socioambiental da esquizofrenia, consideravam que não era possível distinguir as “deficiências secundárias” provenientes das consequências sociais e médicas de estar doente, como a perda da autoconfiança, da autoestima, o estigma e o institucionalismo dos sintomas primários.

Esse é o nosso propósito com os referenciais que deslocam para o ambiente as perspectivas terapêuticas, quando reafirmamos que um ambiente mais tolerante, menos opressivo, crítico ou superestimulante, uma família menos intrusiva e mais flexível, capaz de compreender melhor o transtorno, enfrentar melhor os problemas e se comunicar de maneira mais efetiva, um sujeito mais empoderado e consciente de sua situação social e política e uma rede social e comunitária mais inclusiva são capazes de transformar a clínica, promover a recuperação e transformar a realidade social e cultural dominante.

A psiquiatria tornou-se um objeto de poder sobre as necessidades materiais e espirituais das pessoas, afastando-se do seu propósito primário para submeter as pessoas ao controle, à manipulação e à vontade da própria psiquiatria, negando sua essência. Se por um lado isso pode gerar um desconforto e uma insegurança aos que nos procuram – não oferecemos soluções prontas e nem verdades absolutas –, por outro lado, propomos substituir a certeza pela relatividade, o controle pelo empoderamento, a explicação generalizada pela compreensão local, a arrogância pela humildade, compreendendo que somente  a coconstrução coletiva de significados e definições a partir da experiência e a corresponsabilização por todas as etapas deste processo são capazes de levantar as pontes de entendimento as quais tanto precisamos, para estabelecer as correlações entre os mecanismos biossociais e as narrativas culturais e históricas para a construção de um movimento de base que consiga de fato as transformações sociais e culturais propostas.

Três técnicas foram desenvolvidas no programa para esse percurso: a entrevista motivacional; a construção de conhecimento; e a terapia de solução de problemas. Elas são utilizadas de forma imbricada, de maneira que todos as vivenciam, aprendem e utilizam com o objetivo de criar e garantir um espaço de fala igual para todos. Um espaço de geração de conhecimento, um espaço para solução de problemas e, finalmente, uma consciência social.

A entrevista motivacional parte de uma atitude inicial por parte da equipe de respeito, empatia, prioridade para a escuta e compreensão. Como uma dança em que você conduz o seu parceiro ou sua parceira pelo salão, sem dirigi-lo, porém amparando-o e guiando-o. Compreende ter uma atitude e um diálogo colaborativo, estabelecendo parcerias em um mesmo nível e tomando decisões conjuntas. Ter uma atitude evocativa, extraindo dos participantes as habilidades e recursos que eles já possuem, acreditando no potencial de realização de cada um, e honrando a autonomia do outro, reconhecendo que todos são capazes de tomar decisões e assumir responsabilidades. Essa forma de comunicação é utilizada desde o acolhimento e ao longo de todo o programa, e é uma adaptação da técnica desenvolvida pelo psicólogo americano Xavier Amador na convivência com seu irmão que foi diagnosticado com esquizofrenia. Também é apresentada aos usuários e seus familiares ao longo dos seminários.

Essa técnica e o exercício constante da escuta, em que todos têm o direito à palavra, permitem um lugar de fala para todos. O lugar de fala possui uma função estratégica primordial na constituição do programa. Como enfatiza Pierre Clastres, a fala demarca uma linha divisória entre as pessoas e o poder. Em sociedades com Estado, a fala aparece atrelada a relações de poder. Quem fala detém antes de tudo o poder de falar. Ela está associada ao direito – o governante tem o direito de falar e seus súditos a obrigação de ouvir. Em sociedades sem Estado, como as tribos ameríndias estudadas por Clastres, em que o poder encontra-se diluído na população, o pajé, considerado o chefe da tribo, tem a fala enquanto dever, pois dele se espera a palavra, porém ela não está atrelada ao direito, as pessoas não são obrigadas a parar para ouvir. E ele sabe que pode ser abandonado por sua tribo se passar ao extremo oposto, visto que a violência é a essência do poder e na tribo o eixo do poder recai sobre o corpo da sociedade, que, por sua vez, não permite o deslocamento de forças que perturbem a ordem social.

Além da igualdade de fala permitir a distribuição de poder entre os participantes e a equipe técnica, é através da fala que ocorre o processo de autoexpressão e autodescoberta, intensificando as relações dentro do grupo. Também é através das relações no grupo que o sujeito pode formar a sua subjetividade. Segundo Merleau-Ponty, a fala é o elemento existencial para a autoexpressão e é através dela que se pode explorar o pensamento dos outros e a habilidade de pensar com os outros, possibilitando uma linguagem nova a ser compartilhada, um senso de coletividade por meio do diálogo. Maturana, na mesma linha, defende que a comunicação através da linguagem produz um conhecimento que é sempre relacional, como se o mundo que enxergamos não fosse um mundo objetivo e estático, mas um mundo num constante devir pela interação e coconstrução com os outros. O nosso ponto de vista torna-se, portanto, resultado de um acoplamento com a experiência do outro, ampliando nossa perspectiva para que o outro tenha lugar, e, juntos, possamos construir um mundo.

Os seminários abordam os conceitos-chaves do programa, procurando desconstruir a lógica psiquiátrica centralizada no modelo médico para uma visão mais socioambiental e política, explorando caminhos de recuperação através da construção coletiva. O conhecimento não é produzido exclusivamente nesta etapa, mas ao longo de todo o percurso, inclusive na etapa de solução de problemas, em que se produz conhecimento experiencial. Como afirma Paulo Freire, “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”, e de fato cada ciclo de seminários do Entrelaços sofre transformações a partir das contribuições de seus participantes. O objetivo desta etapa é cultivar uma curiosidade crítica e uma disponibilidade para reconstruir, reformar o saber existente, ou, como afirma Paulo Freire, “superar a ingenuidade da experiência”, produzindo uma inquietação indagadora que possa provocar um comportamento voltado ao desvelamento, à descoberta de algo novo, que possa abrir portas antes nunca abertas, o que Freire denomina como o “fenômeno vital do aprendizado”. A intenção é que esta etapa produza uma abertura para o desenvolvimento de novas habilidades e de uma nova expertise nos usuários e familiares, convidando-os à etapa seguinte, de solução de problemas.

A terapia de solução de problemas utilizada na etapa de grupos foca na situação social da pessoa mais do que nela própria ou em seus sintomas e busca por soluções de vida real e que ocorram no ambiente natural. Essa compreensão dos problemas ou dos sintomas dentro de sua unidade social requer uma visão sistêmica e um olhar ampliado tanto a nível micro como macrossocial para unidades sociais mais amplas, incluindo o sujeito, sua família, os serviços, os profissionais e sua comunidade. Nesta etapa são debatidos os problemas do dia a dia das famílias, mas também as questões relacionadas aos serviços de saúde, à comunidade e sociedade como um todo, à cultura e à política. De acordo com Silvia Lane, psicóloga responsável pelo desenvolvimento da perspectiva sócio-histórica da psicologia social no Brasil, as transformações sociais requerem um deslocamento do sujeito alinhado, justaposto à sociedade, para que ele passe a se movimentar e a se conscientizar sobre as contradições do processo histórico e possa, portanto, combater e se contrapor às determinações sociais da ideologia dominante.

Segundo a filósofa Judith Butler, o sujeito vive uma ambivalência entre domínio e submissão com a lei e o Estado, que constitui a priori sua subjetividade, como se estivesse apaixonadamente apegado a eles, o que, em última análise, é o apego à sua própria existência. Como afirmou Michel Foucault, o biopoder exercido pelo Estado atua através da disciplina e da regulação criando normas que são internalizadas pelos sujeitos e servem de formas de poder sobre a vida e o corpo tanto na esfera individual como em grupos sociais, sendo um poder que opera a nível de nossas práticas cotidianas e estabelece uma rede de vigilância, não somente de cima para baixo, mas também de baixo para cima e lateralmente, enredando o sujeito como um ente complacente. Mas, como sugere o próprio Foucault, o mesmo sistema que oprime também oferece condições para subvertê-lo, sendo possível desenvolver um discurso reverso em que a normalidade possa ser questionada e reformulada. Da mesma forma que somos constringidos, também somos capacitados, sendo necessário desenvolver um pensamento crítico capaz de distinguir entre as situações de constrição e de capacitação para que seja possível reformar o sujeito e emancipá-lo.

A “arte de não ser governado” está no movimento do sujeito em “questionar a verdade quanto aos seus efeitos de poder e de questionar o poder quanto aos seus discursos de verdade”, cultivando uma atitude criticamente autorreflexiva. Como Butler define, citando Giorgio Agamben, o sujeito deve ter sua existência como potência que não se esgota por nenhuma interpelação particular, inaugurando a possibilidade de um ser mais aberto e mais ético no futuro.

É esse processo dialético, através das reflexões produzidas pelos encontros do Programa Entrelaços, que permitiu que os grupos se constituíssem como grupos autônomos na comunidade. A estrutura dos grupos pode ser compreendida pela microssociologia de Erving Goffman, pela análise do processo grupal proposto por Silvia Lane e pela teoria de habitus e campos de Pierre Bordieu. A estrutura de um grupo é a de um sistema frágil e que tende à dissolução pelas diferentes tensões entre seus integrantes, que possuem diferenças sociais, culturais, ideológicas e que podem formar distintas parcerias dentro do grupo. Contudo, existem elementos estruturais que trabalham a favor de sua manutenção: as personalidades que se formam pelos papéis sociais e pelo processo de identificação, a interação entre os diferentes atores, que se esforçam moralmente para sustentar as relações e seus papéis, e as propriedades do grupo em si, como seus objetivos e propósitos políticos. Quanto mais fortes os elementos estruturais se consolidarem, maiores as chances de sobrevivência do grupo. Os sujeitos interiorizam a experiência do outro e constituem suas identidades a partir desta interação, e, em um processo de “mediação ideológica”, de acordo com Lane, o grupo supera suas individualidades e se conscientiza das suas condições históricas comuns, levando-o a um processo crescente de identificação e atividades conjuntas. Lane chama esse processo de espiral, em que o grupo deixa de ser um grupo objeto, circular, para um grupo-sujeito, um movimento social, em que o próprio grupo se produz e adquire sua autonomia.

Portanto, o grupo perpassa as questões das identidades para questões sociais e políticas que dão corpo a uma ideologia. Neste sentido que Pierre Bordieu afirma existir uma relação dialética de mão dupla entre sujeito e sociedade, em que o habitus individual, representado por um sistema de esquemas estruturantes dos indivíduos pelas pressões e conjunturas sociais, e o campo social se constituem mutuamente. Para Butler, o habitus de Bordieu é o equivalente à ideologia, como ela mesmo afirma: “a reprodução das relações sociais, a reprodução das habilidades é a reprodução da sujeição”. É o que testemunhamos no Entrelaços: à medida em que os grupos evoluem enquanto movimento social, adquirem independência e autonomia institucional e passam a liderar iniciativas sociais, políticas e culturais, como no Trilhando Caminhos e na Locomotiva de Saúde Mental, além de intercâmbios com outros movimentos sociais da cidade, como o Loucura Suburbana.

Gostaria de finalizar esta apresentação com um texto de Ana Pitta que eu pincei de um capítulo de seu livro Reabilitação Psicossocial no Brasil, e que, para mim, merece destaque por sua leveza, sensibilidade poética e profundidade, e por isso quis destacar na abertura da discussão de minha dissertação.

Estou ciente de que esta é mais uma etapa deste caminhar e que ainda temos muito a conquistar. Ter desenvolvido esse conjunto de técnicas e conseguido formar grupos autônomos que hoje se constituem política e socialmente nos coloca um imperativo ético de ampliar essa experiência para um número maior de usuários e familiares, com a possibilidade de entrada no sistema de saúde através dos pares especialistas enquanto integrantes das equipes de saúde mental, podendo levar essa discussão para dentro dos serviços e alcançar um maior número de profissionais, o que verdadeiramente pode transformar a cultura psiquiátrica neste país. Isso implica em muitas conquistas, como redução de medidas coercitivas na psiquiatria e ampliação das garantias de direitos humanos dos usuários, difusão do recovery e maior participação dos usuários e familiares nos serviços e nas políticas públicas e maior participação social e inclusão dos usuários em suas comunidades.

Vou terminar citando o sociólogo Anthony Giddens. Em um mundo cada vez mais globalizado e impessoal, em que a esfera pública é excessivamente institucionalizada e a privada cada vez mais enfraquecida e amorfa, as localidades de relativa pequenez e informalidade que possibilitam novos laços pessoais através da autorrevelação mútua e da busca por reciprocidade e apoio oferecem pontos de acesso para o engajamento contestatório e para oportunidades para o ativismo. A recriação de espaços e a vida comunitária são importantes mecanismos para a subjetividade humana, capazes de formar sujeitos ressurgentes contra a institucionalização excessiva do Estado.

Muito obrigado!

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