Intervenção Psiquiátrica Já?

Desde o segundo dia das manifestações antidemocráticas que procuram contestar o resultado das eleições presidenciais alguns apoiadores do presidente Bolsonaro protagonizaram cenas patéticas e esdrúxulas que subiram a hashtag “Intervenção Psiquiátrica Já!” nas mídias sociais, ironizando o clamor dos manifestantes por intervenção militar. Cenas como adultos vestidos com a camisa do Brasil e portando a bandeira nacional marchando em frente a quartéis do Exército, pessoas cantando o hino nacional em torno de um pneu, mulheres aos prantos ajoelhadas rezando no meio da rua, pessoas agredindo jornalistas que exerciam seu ofício, um manifestante que se agarrou na frente de um caminhão que percorria as estradas e até cenas horrorizantes, como um grupo de pessoas cantando o hino nacional e fazendo o gesto nazista e crianças marchando como soldados e bradando aos gritos “tem que matar, tem que sofrer, eu quero essa onça, como eu quero, como eu quero”, percorreram as diferentes mídias sociais e foram motivo de chacotas e tratadas como “casos psiquiátricos”. Mas o que há por trás dessas cenas e desses manifestantes que não souberam aceitar o resultado das eleições que elegeram Lula para um novo mandato no Planalto? Estamos falando mesmo de casos psiquiátricos que necessitam de uma intervenção médica?

Para Theodor Adorno, filósofo alemão e um dos expoentes da Escola de Frankfurt, o nacionalismo ressurgente é o clima mais favorável ao fascismo, principalmente num mundo globalizado e com blocos supranacionais. Ele pode ressurgir de maneira exagerada para convencer as pessoas do propósito e da substância de seus ideais, alimentando movimentos de “renovação nacional” contra o “sistema” e as práticas políticas consideradas por eles ultrapassadas. Ele sempre se contrapõe e vitimiza um grupo, que pode ser de intelectuais, apoiadores políticos, estudantes universitários, minorias ou mesmo um grupo com ideias divergentes, que passa a se sujeitar às suas práticas sádicas.

O sadismo é uma marca desses movimentos fascistas. Segundo Adorno, as pessoas mais engajadas nesses movimentos possuem traços sádicos reprimidos que têm origem muitas vezes na severidade da educação tradicional ou em coletivos que possuem na autoridade seu elemento central, ou seja, um processo de identificação cega com o coletivo e a manipulação das massas iniciando-se pela virilidade, a brutalidade e a resistência à dor. As pessoas são impelidas a ser fortes e premiadas pela dor e pela capacidade de suportá-la, uma fachada masoquista que se identifica facilmente com o sadismo, pois quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo com o outro. Portanto, é um processo que se fecha em um ciclo de retroalimentação e que provoca o que Adorno chamou de “caráter manipulador” e “consciência coisificada” nas pessoas, estruturas da personalidade próprias do fascismo.

Adorno e Horkheimer, outro filósofo da Escola de Frankfurt, descreveram a relação patogênica que as pessoas sádicas têm com seu corpo nas situações em que são confrontadas ou criticadas: sua linguagem verbal e corporal assumem uma violência quase incontrolável.

Elas passam a formar uma “massa solitária” acrítica que adquire um impulso grupal, um enturmar-se de pessoas sádicas (frias) que não suportam a própria frieza, mas nada podem fazer para alterá-la. E causa a estranheza a incapacidade da identificação deste estado de consciência em meio a pessoas mais ou menos civilizadas, que passam a obedecer e reproduzir o que as forças estabelecidas lhes determinam, ainda que em razão de ideias de pouca ou nenhuma credibilidade.

Cria-se um “véu ideológico” fetichizado que considera os meios para a autoconservação da espécie humana (uma vida humana digna) desconectados da consciência das pessoas, incapazes de amar e carentes de uma relação libidinal com outras pessoas. É a ausência da consciência moral e sua substituição por compromissos por autoridades exteriores que as tornam dependentes de mandamentos e normas que não são próprias da razão do indivíduo.

Apesar das características psicológicas, Adorno considera o fascismo mais uma questão social, portanto, mais do campo da sociologia. O fascismo nunca desapareceu, mesmo após o nazismo, e de certa forma suas tendências encontram raízes na própria civilização. Como os pressupostos sociais e políticos que geraram os genocídios naquela época não são mais possíveis hoje em dia, as forças para se contrapor ao fascismo foram repelidas para o campo subjetivo, sendo imprescindível buscar as raízes psicológicas nos perseguidores para identificar os mecanismos que levam as pessoas golpearem as outras sem refletirem sobre si próprias.

Segundo Freud, a civilização produz uma rede cada vez mais densamente socializada que enreda o sujeito de uma maneira que torna difícil ele escapar, ainda que ele assim deseje, aumentando sua raiva contra a civilização e produzindo muitas vezes uma rebelião violenta e irracional. Ao mesmo tempo em que ela integra, produz também tendências desagregadoras. Essa pressão tende a destruir o particular e o individual, bem como o potencial de resistência da pessoa, dificultando que ela se oponha ao que a seduz ao crime.

O único poder efetivo contra o fascismo é, para Adorno, a autonomia, o poder de reflexão, a auto-crítica, a auto-determinação e a não-participação. É necessário tornar esse mecanismo explícito e impor uma educação consciente que não premia a dor e a capacidade de suportá-la e não reprima o medo. Quando o medo é permitido, provavelmente os efeitos deletérios do medo insconsciente e reprimido desaparecem juntamente com o sadismo. Por isso a preocupação com a educação das crianças, justamente o mais espantoso desse movimento antidemocrático foi a utilização delas como escudos humanos ou soldados marchando.

Ainda que os mecanismos subjetivos não se dissolvam completamente, a educação pode despertar na pré-consciência elementos de resistência que podem criar um clima desfavorável ao extremismo, permitindo às pessoas alguma chance de evitá-lo. O mais difícil da educação contra o fascismo é justamente ir contra o “espírito do mundo” já que a sociedade repousa na persecução dos próprios interesses frente aos interesses dos demais e isso se sedimenta no caráter das pessoas, tornando a frieza um traço básico da antropologia.

Adorno chamava de “participação oportunista” a atitude de alemães durante o nazismo perceber antes de qualquer coisa sua própria vantagem e não dar com a língua nos dentes para não se prejudicarem, sendo o silêncio e o terror apenas consequência dessa atitude. A frieza como indiferença ao destino do outro faz com que poucas pessoas se mobilizem e os algozes possuem plena consciência disso. O centro da educação contra o fascismo deve ser, portanto, revelar os jogos de força e poder por trás das formas políticas, tratando de forma crítica o Estado que coloca os seus interesses acima do povo do qual deveria cuidar. Assassinos de gabinete e ideólogos continuarão existindo, mas as pessoas subordinadas devem combater tudo aquilo que perpetua sua própria servidão através do conhecimento e da educação e não se tornarem assassinas à medida em que assassinam os outros.

O filme “A Fita Branca” (foto), de Michael Haneke, 2010, ilustra bem todos esses aspectos do fascismo presentes em uma pequena aldeia no interior da Alemanha antes da Primeira Guerra e como o clima foi se formando para que anos mais tarde o nazismo se instalasse no país. Algumas cenas que presenciamos nessas manifestações golpistas são de extrema gravidade e preocupação, pois mostram como o fascismo está crescendo em nosso tecido social. Caso o Estado não se ocupe da educação, da cultura, da assistência social e da segurança/inteligência especializada para desmobilizar esses grupos e suas fontes de financiamento, teremos problemas muito mais sérios no futuro.

É mesmo muito preocupante e não é caso de intervenção psiquiátrica!

Fontes: Theodor Adorno, “A Educação após Auschwitz”.
Freud, “O mal estar na cultura” e “Psicologia de massas e análise do eu”.
Videos do Twitter

Compartilhe: