OMS lança documento a favor dos direitos humanos e contra as medidas coercitivas na saúde mental

Esta foi uma semana importante para a Saúde Mental mundialmente. A Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou em 10 de junho as novas “Orientações sobre serviços de saúde mental comunitários: promoção de abordagens centradas na pessoa e baseadas nos direitos”. Desde a última versão da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências (CDPD), em 2016, esta é a orientação que trata mais especificamente do direito das pessoas com transtorno mental de serem cuidadas através de abordagens baseadas na sua comunidade e com total respeito aos direitos humanos, não se atendo somente aos cuidados com a saúde mental, mas ampliando o campo de ação para o apoio à vida cotidiana, incluindo questões como moradia, educação e emprego.

Uma preocupação central das novas orientações da OMS é com o abuso dos direitos humanos e com as práticas coercitivas que continuam sendo muito comuns nos serviços psiquiátricos. Apesar de muitos países virem reformando suas leis, políticas e serviços relacionados à saúde mental, até o momento poucos países estabeleceram as estruturas necessárias para atender às exigências internacionais sobre os direitos humanos. As práticas coercitivas, como internação e tratamento forçados, contenção manual, física e química, condições de vida pouco higiênicas e abuso físico e verbal, ainda são muito comuns em países de todos os níveis de renda.

O relatório traz exemplos de serviços de saúde mental baseados na comunidade que demonstraram boas práticas em relação a medidas não coercitivas, inclusão na comunidade e respeito à capacidade legal das pessoas tomarem decisões sobre seu tratamento e sua vida, em países como Brasil, Índia, Quênia, Mianmar, Nova Zelândia, Noruega e Reino Unido, e é complementado por sete cadernos técnicos que trazem orientações para a implantação de novos serviços que respeitem os direitos humanos em diferentes categorias, como serviços comunitários, de crise, hospitais, assistência à moradia e apoio de pares.

No vídeo do lançamento, transmitido AO VIVO para todos os países (assista ao video abaixo), vários convidados de diferentes continentes enfatizaram a importância de reduzir as medidas coercitivas nos serviços de saúde mental, que ferem os direitos das pessoas com transtorno mental de tomar decisões sobre sua vida e restringem a sua liberdade individual, e de repensar os serviços de maneira que eles ofereçam alternativas que respeitem os direitos humanos integralmente.

Norman Lamb, que já foi membro do Parlamento inglês e Ministro de Estado para Assistência e Apoio no Departamento de Saúde, cuidando diretamente das políticas públicas de saúde mental no Reino Unido, teve uma fala muito contundente sobre essas necessidades: “Testemunhei tantas vezes os sistemas de saúde mental falhando com as pessoas. Não fornecendo uma resposta adequada às suas necessidades. Muito frequentemente, os serviços de saúde mental são medicalizados. Eles não abordam as causas sociais que podem estar por trás dos problemas de saúde mental. Lutei contra o tratamento desumano e a desvantagem experimentada por pessoas com problemas de saúde mental. Violações rotineiras dos direitos humanos das pessoas. Testemunhei uma dimensão racial perturbadora nos serviços de saúde mental, onde, em nosso país, se você é jovem e negro, tem muito mais probabilidade de ser detido de acordo com nossa Lei de Saúde Mental”.

Martin Zinkler, psiquiatra alemão, que foi diretor do Hospital de Heidenheim, explicou como foi possível transformar o serviço de psiquiatria do hospital de um serviço tradicional para um serviço que chega à comunidade: “oferecemos à população local uma escolha, a escolha de quatro configurações de tratamento para qualquer problema de saúde mental em adultos. Tratamento em casa com visitas domiciliares diárias, tratamento em hospital-dia e também internação. Cada um desses tratamentos sem tempo de espera. Os usuários do serviço são incentivados a decidir onde querem ser tratados e apoiados. Oferecemos às pessoas uma gama completa de opções de tratamento em qualquer uma dessas configurações, como terapia psicológica, individual ou em grupo, arteterapia, dançaterapia e também apoio social. Pessoas que optam por sair do tratamento são bem-vindas, pessoas que querem parar de tomar a medicação também. Oferecemos uma escolha informada sobre qualquer forma de tratamento. Os objetivos de Heidenheim são eliminar a coerção com várias intervenções, uma política de portas abertas em todas as enfermarias, portanto, não há enfermarias trancadas neste departamento, com tratamento em casa como uma alternativa ao tratamento hospitalar, que pode começar imediatamente com suporte individualizado em momentos de crise e em situações intensas e com atendimentos avançados direcionados e planos conjuntos para situações de crises. Não usamos reclusão”.

Zinkler enfatizou que é necessário monitorar o uso de qualquer intervenção coercitiva e que os dados precisam ser comparados com outros serviços. A taxa de qualquer intervenção coerciva no Hospital de Heidenheim em 2019 foi de 2,1% de todos os pacientes internados, enquanto que no sul da Alemanha, onde esses dados são rotineiramente coletados, a média foi de 6,7%. “Heidenheim não está livre de coerção, mas atingiu taxas de hospitalização que estão entre os mais baixos da Europa. E o mais importante, acreditamos fortemente que o uso de coerção pode ser reduzido ainda mais. Não achamos que haja algo como um mínimo necessário ou absoluto em coerção para serviços de saúde mental”, conclui.

Para Dunja Mijatovic, Comissária do Conselho da Europa para os Direitos Humanos, a nova orientação da OMS é uma “virada de jogo”, fornecendo um impulso muito necessário para as reformas dos serviços de saúde mental na Europa. “A mudança de uma compreensão da saúde mental biomédica para uma mais baseada nos direitos humanos tem sido lenta, lenta mas seguramente evoluindo em nossa região, desde a entrada da CDPD. No entanto, como você sabe melhor do que ninguém, o progresso tem sido muito irregular. E também tem enfrentado muitas resistências, inclusive do meio médico, prevalecendo o velho paradigma em muitos dos nossos Estados membros. Uma posição tão inambígua em favor dos padrões da CDPD, vinda da Organização Mundial da Saúde, certamente terá um grande impacto na redução dessa resistência”, afirma Dunja.

Dunja acredita que a nova orientação da OMS sobre a saúde mental possa reduzir essas resistências e fazer prevalecer a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências (CDPD) sobre convenções mais antigas e desatualizadas que regiam tratamentos involuntários de pessoas com deficiências psicossociais e que refletiam atitudes dominantes daquela época. “Penso que deveria ser papel do Conselho da Europa não aumentar esta confusão. Acho que apegar-se a leituras desatualizadas dessas convenções mais antigas é uma coisa muito perigosa de se fazer. Acho que é importante alinhar a interpretação delas com a CDPD. Na minha opinião, isso é perfeitamente viável. Tenho pressionado exatamente por isso em nossa organização. E continuarei a fazê-lo. Também posso dizer que não é fácil, mas também posso garantir que não vou desistir. Tenho certeza de que a nova orientação da OMS tornará a tarefa muito mais fácil e sou grata por esse acréscimo tão indispensável em nossa caixa de ferramentas”, conclui.

Como enfatizou Lamb, “acabar com as práticas coercitivas, incluindo reclusão e contenção, internação e tratamentos forçados, e combater a violência, o abuso e a negligência são um imperativo urgente para todos os países e uma prioridade global para os direitos humanos. A orientação da OMS preenche uma lacuna realmente importante, orientando-nos sobre como podemos implementar uma abordagem baseada nos direitos humanos nos serviços de saúde mental e, olhando as orientações, existem estudos de casos maravilhosos que nos ajudam a descobrir como podemos buscar iniciativas próprias. Precisamos ver o fim dos serviços institucionalizados e garantir que nossos serviços de saúde mental baseados na comunidade não reproduzam abordagens das antigas instituições, mas em vez disso, eles realmente impliquem numa abordagem baseada em direitos, abordagem sem coerção, ouvindo e respeitando os desejos das pessoas, abordando suas necessidades reais, atendendo ao que consideram importante na vida, ao invés de simplesmente administrar medicamentos para reduzir os sintomas. Nosso objetivo deve ser dar às pessoas a chance de uma vida boa, uma vida feliz”.

Olga Runciman sabe bem o que isso pode significar na vida de alguém com transtorno mental. Psicóloga e enfermeira psiquiátrica, ela passou pelo sistema de saúde, que a educou e no qual trabalhou, como paciente psiquiátrica. Não bastasse os traumas da infância e da juventude pelos quais passou, como ter sido vítima de bullying, abuso sexual e estupro, Olga sofreu com tratamentos forçados que ela considera como traumas na sua vida: “quando alguém é submetido a tratamento forçado, há muito mais implicações do que muitas pessoas possam perceber, incluindo a equipe. Se devo me tomar como exemplo, estar cercada por um grupo de pessoas em um papel ameaçador é uma reminiscência do bullying no playground ao qual fui submetida. Quando alguém se recusa a tomar o medicamento, apesar da persuasão da equipe, as consequências são terríveis. A pessoa é agarrada e segurada por um grupo de homens e mulheres. Sua roupa íntima é puxada para baixo e você recebe uma injeção de uma substância química. Isso tem toda a semelhanças com ser estuprado. O sentimento é o mesmo. Como costuma acontecer em casos de estupro, a pessoa é levada a se sentir responsável pelo horror do ato negado, sob o pretexto da saúde. Alguém tem que sofrer o insulto de ter que reconhecer que era necessário e bom que este evento tenha ocorrido. Então, assim como com o abuso sexual, as pessoas colocam em prática “cuide da criança, abuse da criança”. E da mesma forma, o sistema implementado para ajudar os aflitos, abusam dos aflitos. Esta é realmente uma grande traição à confiança e impede as possibilidades de criar relacionamentos de confiança, tão necessários para a cura e o entendimento. Imagine só, que em vez de um grupo de funcionários me cercando e insistindo que sabiam o que era bom para mim, uma reminiscência do bullying no pátio da escola, as pessoas se reunissem ao meu redor para me apoiar e ouvir, com curiosidade e interesse. Imagine que, em vez de ser pressionada e injetada à força, eu fosse tratada com dignidade e respeito. Novos caminhos de recuperação se abririam para serem explorados. Imagine que, em vez de ter que me subjugar e dizer que a ajuda forçada era necessária e boa para mim, houvesse um interesse genuíno em avaliar o que funcionava para que as práticas pudessem continuar a crescer e evoluir para lugares onde os pacientes não precisassem temê-las. Apenas imagine”.

Assista ao vídeo do lançamento!

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