Quando humor é uma questão de pensamento

Na psiquiatria existe historicamente uma dicotomia entre humor e pensamento. Transtornos de humor, como o transtorno bipolar, são geralmente desordens do humor (p.ex. depressão, mania), enquanto as psicoses primárias, como a esquizofrenia, são desordens do pensamento (p.ex. delírios, pensamento confuso, desorganizado).

Emil Kraepelin foi o primeiro a fazer essa distinção quando separou a Doença Maníaco-Depressiva da Demência Precoce, mais tarde chamada por Bleuler de Esquizofrenia (mente/pensamento cindido, significado do termo em grego).

Historicamente os tratamentos médicos também possuem origens distintas para os diferentes transtornos, de humor e esquizofrenia. Enquanto estabilizadores de humor são preconizados para o transtorno bipolar, os antipsicóticos são indicados no tratamento da esquizofrenia. Com a descoberta dos antipsicóticos atípicos ou de segunda geração nos anos 90, por sua atuação em receptores de dopamina e serotonina, eles passaram a ter indicação também no tratamento da depressão e do transtorno bipolar, como é o caso, principalmente, da Quetiapina, do Aripiprazol, do Brexpiprazol e da Lurasidona.

Mas porque é interessante problematizar essa questão da tradição da psiquiatria em separar humor e pensamento?

Não somente por questões terapêuticas, mas principalmente por questões diagnósticas. Quem acompanha o blog já conhece minha área de interesse na esquizofrenia e nos transtornos de humor, como a depressão e a bipolaridade. Já escrevi aqui sobre Estados Mistos e Depressão que não melhora com antidepressivos.

Desta vez decidi focar nesses dois aparentes polos psicopatológicos: humor e pensamento. Talvez fique mais claro para pessoas com sofrimento mental e familiares abordar dessa forma. Meu objetivo é auxiliá-los na compreensão, principalmente quando o tratamento que fazem não surtem o efeito esperado.

Kraepelin já chamava atenção para formas de Transtorno Bipolar em que humor e pensamento estariam em sentido contrário: humor deprimido e pensamento acelerado, confuso ou repetitivo. Mas isso parece ter sido esquecido ou pouco valorizado por pesquisadores que o sucederam e valorizaram mais as formas clássicas de mania (humor e pensamentos exacerbados) e de depressão (humor e pensamentos rebaixados), com humor e pensamento num mesmo sentido. Outro ponto que traz confusão diagnóstica é o diagnóstico do TOC, que se apresenta com alterações de pensamento (obsessões) e de humor (ansiedade que geram compulsões ou mesmo depressão). Na época de Kraepelin este diagnóstico não fazia parte de sua nosologia.

Você já deve estar percebendo aonde quero chegar… imaginemos uma pessoa deprimida, portanto, com humor rebaixado, deprimido, com muita tristeza e angústia. Ela se queixa de uma mente que não pára de pensar, com muitos pensamentos confusos e repetitivos, por exemplo, com pensamentos negativos envolvendo tragédia de familiares (“fico imaginando o que seria de mim se meu filho morresse num acidente”, p.ex.). Esse quadro também gera muito cansaço, sono exacerbado e baixa de energia, além de muita ansiedade.

Seria esse quadro mais provável numa depressão, num transtorno bipolar tipo misto ou num TOC com depressão. Claro que outros elementos clínicos, sociais e familiares serão importantes para um diagnóstico. Mas aqui o objetivo é considerar alternativas pensando nessa relação não-dicotômica entre humor e pensamento.

Um dos aspectos é que pensamentos repetitivos, confusos, intrusivos, com conteúdos negativos são torturantes. E quando isso foge ao controle da pessoa, gera angústia, depressão, cansaço e desespero (as vezes pacientes relatam sensação de enlouquecimento). Isto é, pensamentos deste tipo podem gerar distúrbios de humor e vice-versa (e não somente humor alterando pensamento como tradicionalmente se acredita).

Somemos a este quadro um fato terapêutico relevante: essa pessoa já fez uso de diversos antidepressivos, melhorava no início, mas parava de responder. Ao contrário, na sua percepção, com o passar do tempo o quadro piorou, está mais deprimida, irritável, intolerante, cansada e com muitos pensamentos repetitivos e intrusivos. Já teve também diferentes diagnósticos ao longo do tempo: depressão, TOC, TAG (transtorno de ansiedade generalizada), TDAH e depressão resistente.

Porque escrevo sobre isso? Porque quadros assim são muito comuns na psiquiatria e na minha prática clínica. E com a profusão de uso de antidepressivos, a minha impressão é que eles vem aumentando.

Meu objetivo aqui não é propor nenhum tratamento específico, pois isso requer muito mais do que consta nesse artigo. Mas se este é seu caso, converse com seu médico sobre o seu diagnóstico e as opções de tratamento. Existem outras alternativas como estabilizadores de humor e antipsicóticos, úteis em quadros que não estão respondendo bem aos antidepressivos.

Pode ser interessante mudar a estratégia de tratamento para começar a responder melhor e isso leva tempo. Um distúrbio de humor de longa evolução pode demorar meses para melhorar e vai precisar também de outras abordagens terapêuticas, como psicoterapia, exercícios físicos, atividades de lazer e relaxamento, terapia familiar, dentre outros. Pensamento e humor são muito suscetíveis a alterações em estados de maior vulnerabilidade psicossocial, por isso é importante atuar em várias frentes de tratamento e buscar melhorar sua qualidade de vida e seus relacionamentos.

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