Polêmica reeditada: internação compulsória resolve?

O tema da internação compulsória como medida heróica e de salvaguarda da ordem pública voltou-se novamente contra as populações de rua, num momento em que o poder público vem se mostrando claudicante e incompetente para lidar com o problema do crescimento das populações de rua nas principais capitais brasileiras. O tema já foi pauta recente das lideranças políticas de São Paulo e, mais recentemente, do Rio de Janeiro. Não é coincidência que esse assunto volte a ser pautado na mídia com a proximidade das eleições municipais de 2024, com claro viés eleitoreiro de quem quer dar uma satisfação à opinião pública, sugerindo uma medida de cunho higienista e autoritário. Também não é nenhuma surpresa que essa medida agrade grande parte da sociedade, que espera esse tipo de resposta do poder público para “limpar” as ruas das cidades.

Mas o que há de fundamento nessa medida, seria ela de fato resolutiva para um problema de grande complexidade social, que engloba saúde, educação, assistência social, segurança pública, a própria dinâmica das cidades urbanas brasileiras e, claro, consequências de anos de uma política econômica neoliberal que amplificou as desigualdades, o desemprego e a falta de perspectiva de futuro para grande parte da população periférica?

Comecemos pela população de rua que, diante da dureza de morar no asfalto e nas calçadas, sujeita a toda sorte de doenças, violências, fome, humilhação e discriminação, recorrem às drogas para sobreviver à sua dor, o que aprofunda suas condições de miserabilidade e agravam os obstáculos para que possam se recuperar para voltar a ter a esperança de uma vida digna, de um trabalho, uma casa, uma rede social de apoio, que lhes devolvam ou lhes apresentem pela primeira vez a cidadania de existir nas cidades em condições de igualdade com seus demais habitantes.

População essa que, por óbvio, é mais vulnerável à opinião pública e principal alvo de políticos e autoridades públicas que se sentem autorizados a decidir o futuro por ela em nome da ciência, da saúde e da moralidade. A força da lei em benefício da pessoa e da sociedade. Parece um argumento perfeito e quem ousar discordar dele será acusado de anarquista, irresponsável e fanático por direitos humanos.

Então vamos aos fatos, à experiência de alguém que já trabalhou anos em abrigos para menores usuários de crack e testemunhou a falência desse modelo de internação compulsória.

Trabalhei em um abrigo, ou melhor, uma “clínica de internação” de menores usuárias de crack e outras drogas. Meninas que invariavelmente tinham uma situação sócio-familiar precaríssima. A maioria não tinha família, quando muito uma mãe muitas vezes também usuária de drogas, pai ausente, às vezes uma avó que dava algum suporte. Mas a situação social se impunha, baixa frequência escolar, quando era matriculada regularmente, fome, exposição à violência e abusos de todos os tipos em suas comunidades. Resultado muitas vezes era retornar para rua um a três dias depois da alta e voltar a usar drogas. Reinternavam com uma frequência muito alta e o ciclo se perpetuava.

A falta de planejamento e recursos que dessem conta dessa situação sócio-familiar precária, ausência de um trabalho no território que contemplasse a saúde, educação, moradia, alimentação e cultura, a ausência de uma rede de suporte especializada com pessoas com a mesma vivência que pudessem servir de exemplo e apoio. Investimentos necessários para a reabilitação dessas pessoas que precisam de um projeto terapêutico individual de acordo com a história e a demanda de cada uma.

Então pergunto: antes de propor a internação compulsória de pessoas dependentes químicas em situação de rua, as prefeituras oferecem equipes de consultório de rua, Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPS-AD), centros de convivência e cultura, cooperativas de trabalho, vagas de emprego, auxílio moradia, suporte familiar e por pares com experiência de vida em quantidade suficiente para atender à demanda crescente nas cidades? Como esperar que essas pessoas em situação social precária e ainda dependentes de droga consigam se recuperar sem a melhoria de suas condições sociais? Qual o combate efetivo ao tráfico de drogas nessas áreas, que continuam alimentando a cadeia de usuários?

E mais: caso houvesse número adequado de equipes de cuidado a essa população, não haveria a necessidade de internação compulsória, pois a própria equipe de saúde, ao avaliar a ausência de condições de tratamento ambulatorial ou na rua, indicaria a hospitalização, uma vez que existem critérios clínicos definidos para uma internação involuntária uma vez esgotadas as possibilidades de tratamento na comunidade.

Outro desafio que se impõe, particularmente na população dependente de crack, é uma política eficaz de redução de danos, abandonada por anos em governos anteriores e que precisa superar a hipocrisia, o conservadorismo e o patriarcado característicos de grande parte de nossas lideranças políticas, religiosas e comunitárias, entendendo que não existem soluções simples ou únicas para problemas tão complexos e desafiadores como esse.

Mas continua sendo mais fácil e popular bradar por imposições legais que atendem mais aos interesses dos que se sentem incomodados com a presença dessas pessoas nas ruas, mas que ao final nada resolvem a vida delas, as quais precisam de cuidados que vão muito além de uma internação.


Cientista holandês questiona os fundamentos da psiquiatria moderna.

Jim Van Os é psiquiatra e cientista, professor do Kings College em Londres e da Universidade de Utrecht na Holanda. Ele é um dos expoentes da psiquiatria contemporânea e seu campo de pesquisa sempre foi compreender os transtornos mentais na sua interrelação entre a biologia e o meio ambiente, pesquisando diferenças entre áreas urbanas e rurais, países desenvolvidos e em desenvolvimento. Tive a oportunidade de ouvi-lo falar em alguns congressos internacionais e posso afirmar que é um psiquiatra com um pensamento inovador, antecipando tendências no campo da psiquiatria e das neurociências. Esta entrevista publicada no O Globo hoje é um bom exemplo disso, como o pensamento dele pode antecipar uma mudança da psiquiatria de uma nosologia baseada em critérios diagnósticos para vivências e experiências coletivas e sociais.

Uma epidemia de problemas de saúde mental varre os países ocidentais e sobrecarrega os serviços de saúde, que começam a mostrar suas falhas. Algo está errado, defende o psiquiatra e epidemiologista Jim Van Os, de 63 anos.

— Quanto mais tratamos, pior os jovens se sentem — reflete o médico, que é diretor do Departamento de Psiquiatria e Psicologia do Centro Médico da Universidade de Utrecht, na Holanda, e professor da Universidade de Londres, no Reino Unido. Van Os tem questionado os fundamentos da psiquiatria moderna há anos e propõe uma mudança em direção a cuidados verdadeiramente “biopsicossocioexistenciais”, diz ele, em que a experiência do paciente passa a ser o centro de uma abordagem terapêutica altamente individualizada.

O especialista conta como ficou obcecado, desde os anos em que era estudante de medicina, pela “diferença entre a teoria da Psiquiatria e a experiência do paciente”. Suas próprias vivências com parentes muito próximos que sofriam de sintomas psicóticos, tão distantes do que aprendeu na faculdade, marcaram sua forma de ver a profissão e de cuidar dos outros.

Você conseguiu unir o que aprende na faculdade com o que vivencia com o paciente?

Existem dois tipos de conhecimento com os quais trabalhamos hoje: o conhecimento da experiência dos usuários e o conhecimento da psiquiatria e da psicologia, que ainda buscam as hipóteses sobre a mente que devem ser usadas para pesquisar o fenômeno da variação dela. O que vemos na saúde mental é que o que conta mais é a experiência das pessoas que nela trabalham. As técnicas e seus medicamentos não são tão importantes quanto pensávamos. As
taxas de transtornos psiquiátricos aumentam nos países europeus e são alarmantes. Na Holanda, duplicaram nos últimos 15 anos e temos um exército de psicólogos e psiquiatras. Mas há um paradoxo: quanto mais tratamos, pior os jovens se sentem.

Por que isso acontece?

Existem forças coletivas, e não individuais, que fazem com que as taxas de sofrimento mental aumentem. É como na cardiologia, por exemplo, que sabemos que, se a alimentação da população for deficiente, há mais doenças cardiovasculares e câncer. Estamos aprendendo que o clima social e existencial em que vivem os jovens causa algo em suas mentes que os faz se sentir mal.

Mas por que agora? Se o ambiente sempre influenciou, porque os distúrbios de saúde mental aumentam agora e não há 20 anos?

O que as pesquisas, e os jovens, dizem é que existe um clima de competitividade: o sucesso é uma escolha e, se não tivermos sucesso, escolhemos mal, somos tolos. E há também um clima de isolamento porque, embora haja mais contato nas redes sociais, ocorre o paradoxo de que isso não proporciona mais laços, mas sim mais solidão. E também há mais vigilância: as pessoas têm medo de não parecerem normais porque se os outros te percebem como diferente, você se sente mal. Para os jovens, essas forças fazem com que se sintam mal.

Por que se sentir diferente tem tanto impacto?

Ser diferente dos outros faz muito mal à saúde mental. Porque precisamos nos sentir conectados uns com os outros. Somos animais sociais. Toda a nossa biologia se desenvolve ao estarmos ligados a outras pessoas. Durante os primeiros dez anos de vida, você tem um processo de vínculo que guiará suas relações sociais e consigo mesmo ao longo da vida inteira.

Você disse que os psiquiatras ainda estão no processo de conhecer a mente para compreender os problemas de saúde mental. Falta então a primeira peça do quebra-cabeça?

Sim, sobre o que é a mente. Resolvemos o problema de não conhecer a mente dizendo que existem diagnósticos. Por exemplo, se você diz que tem esquizofrenia, não há necessidade de conhecer os reais processos mentais e a experiência que as pessoas têm. Agora, porém, somos mais ambiciosos porque, cientificamente, esses diagnósticos não funcionam, pois não captam a experiência das pessoas. Há muita heterogeneidade e variação para que as pessoas se enquadrem em um diagnóstico. E estamos tentando o impossível: compreender a mente através do fenômeno da consciência. O que acreditamos é que a consciência é provavelmente, no fundo, afetiva: vivenciamos coisas e, cada vez que o fazemos, temos um sinal afetivo bom ou ruim. E o que pensamos é que o sinal afetivo nos torna conscientes de nós mesmos no ambiente. O que propomos é ter um modelo mental de sofrimento mental e não um diagnóstico, porque a experiência já não aparece ali. Dessa forma, podemos compreender e pesquisar muito melhor os fenômenos de recuperação. Pessoas que têm um estado mental muito negativo, que ouvem vozes, sabemos que são capazes de recuperar. Podemos ajudar as pessoas a relativizar e olhar a experiência com distanciamento, pensar e falar sobre ela e analisá-la, para que tenham mais empoderamento.

Mas isso já é feito como parte do tratamento, certo?

Sim, mas a partir de um modelo diferente. O problema é que as psicoterapias e os medicamentos são protocolados e seguem um manual, mas não acompanham a experiência das pessoas. Isso ajuda, mas poderia ajudar mais porque, individualmente, há muita diferença entre um paciente e o outro. Não devemos padronizar, mas sim individualizar.

Na medicina há uma tendência a padronizar e ordenar o conhecimento e a abordagem aos pacientes. Isso não pode ser feito na saúde mental?

Psiquiatras e psicólogos têm dito que a mente é algo que podemos prever, analisar na ciência linear, causa e efeito, mas estamos aprendendo que não é esse o caso, é algo mais complexo. Não tivemos sucesso em encontrar os mecanismos cognitivos e biológicos, não encontramos as causas, não encontramos biomarcadores... A mente é algo diferente, e a ciência da complexidade é a ciência da imprevisibilidade, de que não existe causa e consequência, existem interações entre milhares e milhares de causas que mudam ao longo do tempo do paciente.

Seu ponto de vista envolve lançar uma bomba sobre os princípios da psiquiatria moderna.

A bomba já aconteceu, chama-se ciência aberta. Há alguns anos na Science (revista científica) houve uma publicação em que tentaram replicar o conhecimento básico da psicologia e descobriram que não era possível, apenas conseguiam 30%. E na psiquiatria biológica tivemos exatamente o mesmo problema: os resultados publicados durante 30 anos não são replicáveis. Mas isso também é ciência e nos ajudará a desenvolver algo melhor. Mas os tratamentos funcionaram, e muitas pessoas com problemas de saúde mental foram curadas. Eles funcionam. Mas não como pensamos que funcionam, por outro motivo. A metaciência estabeleceu, por exemplo, que as 250 psicoterapias funcionam bem, mas não pelos esquemas terapêuticos em si. Pela função ritual dentro do relacionamento. Você se torna emocionalmente ligado à pessoa. E dentro do relacionamento, o que você está causando é motivação para mudar. E se o ritual for compatível com a forma como o paciente vê o mundo, funciona.

Então é uma questão de fé?

É uma questão de relacionamento. Relacionamento que causa motivação e que a pessoa tenha fé em suas capacidades. Eu uso muito pouco antidepressivos porque há cada vez mais ciência aberta sobre como eles funcionam e achamos que não funcionam muito bem. Provavelmente há um pequeno grupo de pessoas que tem uma resposta muito boa e é por isso que há um benefício nos ensaios clínicos randomizados, mas na grande maioria não tem efeito.

E isso acontece, na sua opinião, com todos os psicotrópicos?

O que vemos é que o lítio e os antipsicóticos desempenham um papel melhor do que os antidepressivos. Mas estamos nos tornando mais críticos em relação ao modelo de prescrição crônica, porque não compreendemos as alterações cerebrais causadas pelos medicamentos e pelo uso a longo prazo. Antes falávamos que era preciso dar antipsicóticos a vida toda, e agora dizemos que, depois de seis meses ou um ano, é preciso tentar reduzi-los e ensinar as pessoas a administrarem a suscetibilidade.

Aprender a lidar com seus sintomas?

Dentro do modelo mental, as pessoas entendem os processos psicóticos porque aprendem a ver o que acontece com mais distância. O problema é que antes pensávamos que não era possível e por isso surgiu o modelo de prescrição crônica. Na Holanda, vejo pessoas que tomam paroxetina, sertralina (dois antidepressivos) há 30 anos e não conseguem parar e se perguntam: quem sou eu sem a medicação e onde estão os traumas que tentava suprimir com ela?

É prescrito excessivamente?

Sim. Isso acontece com todos os remédios, que medicalizam demais. Na psiquiatria é ainda pior porque, desde o início, estamos medicalizando a história narrativa do paciente. Transferimos suas experiências para um livro com 400 diagnósticos, mas a pessoa se sente mal cuidada. Isso se chama assimilação hermenêutica: você captura as experiências da pessoa e as coloca em outra estrutura que não é a dela.

Em 2016 você publicou um artigo no BMJ com um título sugestivo: "A esquizofrenia não existe". O que ele quis dizer?

Eu falei isso porque tem psiquiatras que realmente acreditam que existe uma categoria nosológica (estudo de classificação de doenças) que é a esquizofrenia, mas o que está escrito no DSM (o manual de classificação dos transtornos mentais do Academia Americana de Psiquiatria) são regras para a comunicação entre psiquiatras, não é um diagnóstico de uma doença.

Mas por que você diz que ela não existe? Sempre nos disseram que existe uma doença chamada esquizofrenia.

O sofrimento mental é real, existe, mas o que não existe é a categorização. Estamos dizendo à população que a esquizofrenia existe, mas o que só existe, e o que está comprovado cientificamente, é a suscetibilidade de desenvolver ideias inusitadas e ouvir vozes quando há estresse. É uma suscetibilidade, uma sensibilidade. Por que não introduzem um novo diagnóstico no DSM-5, que é a síndrome de suscetibilidade à psicose? Isso seria totalmente diferente porque é dizer às pessoas que todos temos suscetibilidades e, quando há estresse, um começa a beber, outro fica ansioso e outro psicótico. Não devemos falar de doenças, mas sim de suscetibilidades e dizer às pessoas que, se tiver sintomas quando há estresse, é sinal de que tem de aprender a gerir a sua suscetibilidade.

Mudar o nome muda o estigma?

Você não precisa mudar o nome, você tem que mudar o conceito. O conceito não é de doença, é de uma suscetibilidade que todos temos. E os achados genéticos confirmam que todos carregamos milhares de variações genéticas que nos predispõem à esquizofrenia, uns mais que os outros, mas todos as temos porque são variantes que contribuem para a nossa capacidade única de dar sentido ao meio ambiente. A mente dá significado afetivo ao ambiente, e a psicose está dando significado demais.

Podemos todos experimentar, então, essa suscetibilidade e algum espectro de psicose?

Detectamos que há muitas pessoas que têm experiências psicóticas, ouvem vozes, que algo ruim está acontecendo. E é muito humano, muito normal, ter esses pensamentos. O problema quando você tem psicose é que você entra em um estado em que não há mais como manter distância. A psicose não é ouvir vozes, é deixar as vozes serem tão poderosas que você não consegue mais se distanciar da experiência.

Qual o papel da genética nos transtornos de saúde mental? Ou é apenas uma questão emocional do meio ambiente?

Nas doenças neurológicas, todas têm fatores genéticos que contribuem, mas não se sobrepõem, e há poucos genes, poucas variantes. Na psiquiatria é completamente diferente: a variação genética se sobrepõe entre diferentes transtornos, como autismo, hiperatividade, psicose, ansiedade, depressão... Mas essa contribuição não é forte, como pensávamos antes, cerca de 25% da vulnerabilidade ao sofrimento de uma doença mental é genético. Além disso, não existem apenas algumas variantes, como na neurologia, mas milhares e milhares. O resultado final é que a genética de ter um problema de saúde mental é a genética do ser humano, a genética que alimenta a capacidade de reagir ao meio ambiente. Então, o que pensamos é que o que todas essas variações genéticas fazem é nos equipar para sobreviver reagindo ao ambiente usando a nossa consciência, que é, basicamente, afetiva.

Fonte: O Globo


Estranhos a nós mesmos: todos deveriam ler!

Acabo de ler o livro de Rachel Aviv, "Estranhos a nós mesmos - histórias de mentes instáveis", e considero uma leitura imprescindível para profissionais de saúde mental, pacientes, familiares e pessoas com interesse no campo da saúde mental.

Rachel é uma jornalista e repórter do New Yorker, residente no Brooklyn, em Nova York, e escreveu seu primeiro livro, considerado entre os 10 melhores livros do ano pelo The New York Times e The Wall Street Journal e melhor livro do ano pelo Los Angeles Times e Washington Post, dentre outras listas de publicações renomadas.

E de fato o livro de Rachel impressiona! Primeiramente por partir de sua experiência pessoal com o transtorno mental; sofreu anorexia nervosa na infância/adolescência, tendo sido hospitalizada aos 6 anos de idade. No primeiro capítulo ela faz um relato em primeira pessoa de sua experiência com a internação, com os remédios psiquiátricos, com o diagnóstico e o que ele significou em sua vida.

Nos capítulos seguintes, ela dedica cada um deles a uma personagem, paciente na vida real que ela investigou a fundo, consultando seus diários, registros médicos, entrevistando profissionais que os atenderam, familiares e amparando suas impressões em vasta bibliografia, da medicina e da psiquiatria à sociologia e filosofia, correlacionando-as à sua própria experiência. Ray, um médico dividido entre a psicanálise e a bioquímica, buscando uma compreensão para o seu quadro depressivo; Bapu, uma brâmane diagnosticada com esquizofrenia que fugia da família na busca de sua elevação espiritual; Naomi, uma mulher negra e encarcerada, vítima do racismo, buscando se reconciliar com os filhos após o diagnóstico de psicose; Laura, que após décadas passando por diagnósticos de bipolaridade e borderline e sendo "supermedicada", decide se livrar dos remédios e escrever um blog para ajudar outras pessoas a se livrarem da dependência de antidepressivos; e Hava, amiga de internação de Rachel, a quem busca três décadas depois ao se reencontrar com os médicos que a trataram no Hospital Infantil de Michigan.

O livro fornece insight preciosos e produzem reflexões profundas para uma sociedade em que a psiquiatria e a psicofarmacologia se tornaram a principal resposta para o sofrimento psíquico das pessoas. Os relatos oferecidos por Rachel, além de impressionarem pela completude de sua vasta pesquisa jornalística, causam desconforto por colocar a psiquiatria e a psicofarmacologia na berlinda, uma vez que para nenhuma dessas personagens elas foram suficientes para explicar o sofrimento ou trazer um significado de superação ou de uma existência mais apaziguadora. O que as histórias reais mostram são pessoas em busca de sua verdadeira identidade, da conciliação de seu sofrimento com suas histórias de vida e relacionamentos, da compreensão de suas emoções enquanto vivências pessoais libertadoras e transformadoras, para as quais a psiquiatria e a psicofarmacologia falharam em dar respostas sustentáveis e, em muitos casos, passaram ao largo de suas trajetórias de vida.

Num tempo em que as pessoas buscam soluções rápidas e milagrosas para problemas reais da vida, muitas vezes recorrendo a medicações psiquiátricas como tábuas de salvação, esse livro é um alerta e ao mesmo tempo um alento, por não depositar nessas medicações as soluções para o sofrimento humano.

E antes que alguém tente desqualificar o livro antes de lê-lo: não, este não é um livro de antipsiquiatria e não faz apologia à desmedicalização. Rachel mesmo se medicou décadas com antidepressivos e reconhece os benefícios deles. Ela não parte da negação do transtorno mental, trata de forma respeitosa os psiquiatras e a psiquiatria, apenas traz a reflexão de quanto a saúde mental é pobre quando se tenta negar as emoções individuais e particulares de cada pessoa, a sua história, o seu ambiente, a sociedade e as pessoas de seu entorno. O quanto somos reducionistas e insuficientes quando propomos soluções prontas na forma de pílulas ou tratamentos padronizados e, pior, quando nos iludimos que desta forma estamos oferecendo um bom serviço à sociedade.

Por isso é uma leitura indispensável para todos que estejam imersos nessa realidade!


10 de Outubro: Dia Mundial da Saúde Mental.

O evento deste ano representa um compromisso global para aumentar a conscientização sobre a saúde mental e defendê-la como um direito humano universal. Todos devem ter o direito de viver uma vida com dignidade, equidade, igualdade e respeito. No entanto, ainda persistem na Região das Américas, o estigma, a discriminação e as violações aos direitos humanos.

Em muitos países da Região, as pessoas com questões de saúde mental não têm acesso a serviços de qualidade, estão sujeitas a práticas coercitivas, tratamento desumano e, em alguns casos, abuso - mesmo em ambientes de saúde, onde deveriam estar protegidas.

Os países devem promover iniciativas regulatórias e normativas para apoiar a saúde mental como um direito humano fundamental e, ao mesmo tempo, limitar as práticas que favorecem as violações dos direitos humanos. Isso inclui o estabelecimento de leis de saúde mental que respeitem os princípios dos instrumentos internacionais de direitos humanos, como a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CRPD) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (UDHR).

No entanto, as estimativas regionais mostram que pouco mais de 60% dos 39 países têm uma lei de saúde mental independente, e quase metade dos 37 países não tem uma autoridade dedicada a avaliar a conformidade com os instrumentos internacionais de direitos humanos, ou a que existe não está funcionando.

A OPAS continua comprometida em trabalhar com os países, fornecendo apoio técnico para desenvolver uma legislação de saúde mental que esteja em conformidade com as convenções internacionais e defendendo os direitos de cada indivíduo, além das fronteiras e desigualdades.

Fonte: OMS/OPAS


Plano não pode negar custeio de remédio registrado na Anvisa, mesmo que prescrição seja off-label.

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por unanimidade, que uma operadora de plano de saúde deve custear tratamento com medicamento prescrito pelo médico para uso off-label (ou seja, fora das previsões da bula).

De acordo com o colegiado, se o medicamento tem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – como no caso dos autos –, a recusa da operadora é abusiva, mesmo que ele tenha sido indicado pelo médico para uso off-label ou para tratamento em caráter experimental.

Na origem do caso, uma beneficiária do plano de saúde ajuizou ação contra a operadora para pleitear o custeio do medicamento antineoplásico Rituximabe, administrado durante a hospitalização para tratamento de complicações decorrentes de doença autoimune.

Uso off-label não constitui impedimento para cobertura

A operadora do plano alegou que o fármaco não estaria incluído no rol de procedimentos e eventos em saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) – não sendo, portanto, passível de cobertura – e, além disso, o uso off-label não estaria previsto no contrato.

As instâncias ordinárias, no entanto, entenderam que o uso off-label não é impedimento para a cobertura, ainda que o tratamento seja experimental.

O relator do recurso da operadora no STJ, ministro Raul Araújo, destacou que o tribunal, ao julgar o EREsp 1.886.929, estabeleceu critérios sobre a obrigatoriedade ou não de cobertura diante do rol da ANS, admitindo a possibilidade de cobertura no caso de não haver substituto terapêutico, dentro de certas condições.

Cobertura fora do rol da ANS deve ser analisada caso a caso

Pouco depois daquele julgamento, segundo o ministro, a Lei 14.454/2022, ao alterar a Lei dos Planos de Saúde para dispor sobre a possibilidade de cobertura de tratamentos não contemplados no rol da ANS, definiu que essa lista constitui apenas uma referência básica para os planos.

"Nesse cenário, conclui-se que tanto a jurisprudência do STJ quanto a nova redação da Lei dos Planos de Saúde admitem a cobertura, de forma excepcional, de procedimentos ou medicamentos não previstos no rol da ANS, desde que amparada em critérios técnicos, cuja necessidade deve ser analisada caso a caso", concluiu Raul Araújo ao negar provimento ao recurso da operadora.

Leia o acórdão no AREsp 1.964.268.


Filhos, marido, esposa: é possível conviver bem com a esquizofrenia.

Fisioterapeuta de formação, Mariah Aragão das Neves, 38, brinca ao dizer que é uma mãe diferenciada: achando que não poderia engravidar, adotou um menino, hoje com 5, mas em seguida deu à luz uma menina, de 1. E tudo isso depois de um diagnóstico de esquizofrenia que recebeu aos 30.

"Você fazendo tudo certo, rola", garante Mariah, moradora de Teresópolis, região serrana do Rio de Janeiro.

Ela quer dizer que diferentemente da percepção de que a pessoa com esquizofrenia não tem capacidade de se cuidar sozinha, com acompanhamento médico correto é possível ter uma vida parecida com a dela.

Muito bem articulada, Mariah conta que desde os 12 anos tinha crise de epilepsia, via vultos e ouvia vozes. Foi na faculdade que teve um surto psicótico e veio o diagnóstico de esquizofrenia.

Paralelo a isso, em 2011, ela reencontrou o primeiro e único namorado, e a dupla se casou em seguida. Hoje os dois trabalham juntos: ele é síndico de um condomínio e Mariah ajuda na administração.

Temendo que a doença passasse para uma filha biológica, o casal adotou Gabriel, então com 1 ano, mas aí veio a surpresa: logo depois Mariah engravidou de Carolina sem nem imaginar que seria possível. Hoje é uma menina saudável.

Mariah sente que há bichos sobre seu corpo, e diz que sempre tem um cachorro e um homem de preto ao seu lado. Mas consegue manter tudo sob controle, com suporte do companheiro e da família.

"Ser mãe é difícil, ainda mais tendo esquizofrenia, mas é preciso virar essa chave e entender que tem que seguir em frente, independentemente de quem estiver do meu lado."

Depois do surto, pedido de casamento

Mesmo sabendo do diagnóstico do companheiro, a cozinheira Celice Brito, 46, não se assustou quando Leonardo Brito, 39, surtou na sua frente, e quis seguir ao seu lado. Tanto que o pediu em casamento e fez tratamento para engravidar.

Natural de São João de Meriti, na Baixada Fluminense, Leonardo foi diagnosticado com esquizofrenia aos 26. Na época, tinha acabado de ser pai de uma menina. Entre os sintomas, alucinações com um palhaço, movimentos repetitivos e ataques de fúria. Foi internado em clínica psiquiátrica pela ex-mulher, mas ao sair não teve acesso a medicamentos e médicos. Separou-se e foi afastado da filha.

Ele seguiu a vida como missionário e, há cinco anos, Celice conheceu seu trabalho nas redes sociais e o convidou para pregar na igreja evangélica que frequenta, em São Paulo. "Tinha algo estranho no seu olhar", ela lembra, complementando em seguida que Leonardo avisou ter um problema mental quando chegou.

Mesmo assim, ela frisa que o companheiro pregou "maravilhosamente bem", mas na hora de partir teve "uma crise estranha, com movimentos repetitivos". Somente ao levá-lo a alguns médicos, descobriu que ele tinha esquizofrenia.

Ela então se empenhou em cuidar de Leonardo. Passados três meses, e já se sentindo melhor, o homem comunicou que iria embora de sua casa, e foi aí que Celice o pediu em casamento. "Crente que não tem essa de namorar, né? E eu já estava muito envolvida. Então cheguei no duro e falei: 'Escuta, você não quer casar comigo?'", conta.

Com fala pausada, Leonardo afirma que tem um relacionamento perfeito, apesar dos delírios: "Eu não tinha tanto sentimento por ela, mas fazia tempo que ela cuidava muito bem de mim, então é tudo muito saudável".

Celice reforça ser tão sadio que "tudo acontece normalmente, de ficarem duas, três horas namorando". Mas que é uma luta solitária.

"Eu cuido de tudo, e muitas coisas não compartilho, porque senão ele começa a ter crise convulsiva e fica nervoso. Me sinto só e vulnerável, sem direito de adoecer", diz.

'Vale a pena ser pai mesmo assim'

Quando foi diagnosticado com esquizofrenia, em 2009, Cainã Nicolleli, 32, estava começando um namoro com a mãe de seu filho, que hoje tem 8 anos. Hoje separado, diz que a dupla vive num bom relacionamento.

Até fechar seu diagnóstico e encontrar os medicamentos que amenizassem seus sintomas, Cainã passou por algumas internações em clínicas psiquiátricas. Quando saiu, passou a ser acompanhado, a frequentar igreja e fazer atividade física. E diz que o filho, com quem fica a cada 15 dias, ajuda no tratamento.

"Ele conversa comigo, me ouve e acaba sendo meu psicólogo. Digo que vale a pena ter um filho mesmo que nessas condições, só tem que conversar com a companheira."

E com a família também, complementa a mãe dele, Sarah Nicolleli, 59, criadora da AMME (Associação Mãos de Mães de Pessoas com Esquizofrenia). "Não existe uma fórmula para esquizofrenia, mas existe uma família que pode, através de amor e de informações, proporcionar uma qualidade de vida melhor."

Saiba mais sobre a esquizofrenia

A esquizofrenia é um transtorno mental, provocada por múltiplos fatores que incluem vulnerabilidade genética, estresse ambiental, uso de algumas substâncias tóxicas etc.

Impacta cerca de 1% da população mundial (dois milhões no Brasil), com maior prevalência em homens, a partir da adolescência.

A doença afeta a capacidade de pensar, sentir e se comportar com clareza e é caracterizada por pensamentos ou experiências que, muitas vezes, parecem não ter contato com a realidade. A pessoa com esquizofrenia costuma apresentar fala ou comportamento desorganizado e uma participação reduzida nas atividades cotidianas.

Os sintomas incluem alteração do comportamento e do pensamento (delírios e alucinações), dificuldade de socialização e de expressar emoções entre outros. No início, pode ser confundido com depressão. É comum que as famílias entendam como algo "próprio da adolescência", atrasando a busca por tratamento.

O diagnóstico é complexo, por se tratar de uma soma de sintomas, sem nenhum exame que possa identificar a condição. É preciso que o médico observe por um período, que pode ser de meses, para chegar a uma conclusão precisa.

A doença dificilmente causa agressividade desde que o paciente esteja sob tratamento regular.

Não possui cura, mas 70% dos casos se recuperam e têm boa qualidade de vida com o tratamento adequado, que inclui antipsicóticos e psicoterapia. E 20% dos casos podem não responder adequadamente ao tratamento, precisando de medicamentos mais específicos. Já 10% dos casos são considerados de difícil tratamento.

O tratamento pode ser feito no Caps (Centro de Atenção Psicossocial) ou em Ambulatórios de Especialidades Médicas, AME. A rede municipal disponibiliza a maioria dos medicamentos através de um programa de assistência farmacêutica. Especialistas recomendam que a família acompanhe de perto o tratamento para também ser orientada.

Fonte: Luiza Souto - UOL


Novos tratamentos promissores para depressão.

Estima-se que um a cada dez brasileiros enfrente os difíceis sintomas da depressão: da apatia à tristeza profunda, entre outros aspectos preocupantes. Para a vasta maioria, o tratamento com antidepressivos comuns, terapia e mais um estilo de vida saudável (não custa repetir: com alimentação balanceada e exercícios) costuma dar bons resultados. Para um terço dos diagnosticados, porém, seguidas tentativas medicamentosas não chegam à melhora satisfatória, o que os joga em crises resistentes e preocupantes. É para essas pessoas, felizmente, que abre-se um novo leque de tratamentos para a doença.

A mais recente terapia em uso no Brasil é um tipo de estimulação magnética do nervo vago — que faz as vezes de mensageiro entre o cérebro e o organismo. Para influenciá-lo, especialistas utilizam um “eletrodo” no pescoço ligado a uma pequena bateria, localizada na altura do peito, tal qual um marca-passo. O tratamento é aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e já foi instalado em dois pacientes homens no país — há a previsão que um terceiro também receba o apetrecho. Após o implante, o especialista responsável deve modular a dose dos impulsos elétricos no nervo, para que ele influencie os neurotransmissores importantes para o mecanismo da depressão.

— Foi a primeira vez que fizemos esse tipo de cirurgia no Brasil. É um mecanismo, que já era usado no país para epilepsia, o que muda é a carga do aparelho. Todo o trabalho é feito em conjunto com um psiquiatra e um engenheiro específico do aparelho. Uma vez ligado ele assim permanece — diz Wuilker Knoner Campos, presidente da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, responsável por esses primeiros procedimentos (cujo pagamento foi realizado pela empresa desenvolvedora).

Antonio de Salles, um dos mais importantes nomes da neurocirurgia do país, diz que esse tipo de estratégia já contava com reconhecimento fora do país.

— O nervo vago consegue desempenhar influência elétrica em muitas áreas do cérebro. Ele manipula neurotransmissores importantes, como a norepinefrina, que influencia no humor da pessoa, um fator importante no cuidado com a depressão. A melhora chega, em média, em dois a três meses após a aplicação— explica o especialista.

É importante, porém, ressaltar que esses pacientes não devem abandonar seu tratamento inicial e que sigam com seus medicamentos, terapias e cuidados com o estilo de vida. A empresa responsável pelo negócio, chamada LivaNova quer garantir que a novidade seja custeada pelos planos de saúde — só depois tentará espaço no Sistema Único de Saúde (SUS). A indicação de uso é para maiores de idade que já tenham tentado tratamento com outros medicamentos, mas sem melhora. O custo para ter acesso no país ainda não está fechado.

Outros caminhos

Há poucos anos, a mesma Anvisa aprovou um medicamento inalável para o manejo de casos graves. Trata-se de um produto a base de escetamina — uma versão do anestésico cetamina (ou quetamina) cujo uso é de ambiente hospitalar. De custo alto, a opção não encontra tração entre especialistas, que acabam optando pelo uso da quetamina original — com aplicação injetável realizada por médicos anestesistas — em clínicas particulares. A aplicação, vale dizer, não é validada pela Anvisa, e ocorre no que é conhecido como off-label, um uso que ultrapassa o que a bula preconiza oficialmente.

Para Dartiu Xavier, nome incontornável na pesquisa de psicodélicos no país, o uso desse tipo de substância, embora bastante eficiente conforme os estudos existentes, ainda encontra estigma para adesão em ampla escala.

— O meu grupo de estudos trabalha com os psicodélicos desde a década de 1990. A quetamina é um psicodélico atípico [o LSD e a ayahuasca seria o típico], e carrega uma carga de preconceito muito grande. Veja, este é um anestésico utilizado há 50 anos, mas também existe um uso recreativo. Isso fez com que a sociedade olhasse para essa opção como uma “droga”, uma coisa ruim — afirma Dartiu Xavier. — Esse preconceito foi responsável por muita propaganda de efeitos negativos, mesmo tendo sido usada por muito tempo como anestésico.

Os resultados colhidos hoje são também fruto de uma quebra de paradigma. Até pouco tempo, os fármacos voltados à depressão (embora ultrapassassem as cinco dezenas de opções) focavam no mesmo mecanismo, o que não afetava positivamente um volume importante de pacientes.

— Até 2019, existiam 55 moléculas aprovadas para a depressão. Todas com o mesmo mecanismo, a ação nas chamadas monoaminas, caso da serotonina, dopamina ou noradrenalina. Ficamos quase 70 anos replicando o mesmo mecanismo — afirma Acioly Lacerda, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). — Começamos a mudar o cenário, com a escetamina, com uma ação inovadora no glutamato, um importantíssimo neurotransmissor. Na mesma época, foi aprovado um novo medicamento que modulava outro receptor, o GABA.

A chave para a revolução foi deixar de acreditar que a depressão era apenas fruto de um desequilíbrio químico no cérebro. Agora, contudo, se entende um pouco melhor o mecanismo central do problema: trata-se de uma doença fruto da complexidade da neuroplasticidade, o mecanismo de adaptação do cérebro.

— Hoje entendemos que a pessoa com depressão tem vulnerabilidade genética em combinação com fatores ambientais, que são as agressões na trajetória do neurodesenvolvimento. Os principais fatores que predizem a depressão na vida adulta são privações físicas e emocionais — complementa Lacerda.

Arroz com feijão

Nos consultórios, há um fator importante que vem antes da definição sobre qual medicamento esse paciente tomará: o diagnóstico correto. Como ressalta Carolina Hanna, do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

— Individualizar o paciente é fundamental. Hoje podemos lançar mão de análises e suplementos que ajudam a potencializar o trabalho do antidepressivo. Também é importantíssimo o diagnóstico correto, se aquele caso individual é uma depressão unipolar ou (ligada ao transtorno) bipolar, o que também muda nossa estratégia de cuidado. E a psicoterapia segue como um grande alicerce, em paralelo com a medicação.

Alfredo Maluf, psiquiatra do Hospital Albert Einstein, lembra que o arsenal terapêutico conta com medicamentos com bom perfil de tolerabilidade (com baixos efeitos colaterais). Portanto, muitos conseguem se reabilitar e voltar à rotina.

— As pessoas procuram o consultório mais rapidamente hoje em dia. O bom desfecho está ligado aos medicamentos, terapia e inclusive o apoio familiar. O arroz com feijão ainda é esse.

Fonte: O Globo


Ministério da Saúde amplia em R$ 414 milhões por ano os recursos para a Saúde Mental.

O Ministério da Saúde amplia o orçamento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) com investimento de mais de R$200 milhões em 2023. A iniciativa tem o objetivo de aumentar a assistência na rede de saúde mental no SUS em todo Brasil. Ao todo, o recurso destinado para todos os estados e Distrito Federal será de R$414 milhões no período de um ano. Com os novos valores, o aumento do orçamento da rede chega a 27%. O fortalecimento da política de saúde mental, focada em assegurar dignidade, cuidado integral e humanizado em liberdade, além de reinserção psicossocial e garantia dos direitos humanos, está entre as ações prioritárias do Ministério da Saúde.

Para a ministra Nísia Trindade, a pauta da saúde mental não está referida apenas ao efeito da pandemia. “Ela também tem muito a ver com a solidão que as pessoas vivem, com o individualismo crescente, que muitas vezes se manifesta na dificuldade de interação social. Nesse contexto, assino a portaria que é central para o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial, criada e muito bem cuidada durante o primeiro governo do Presidente Lula. Desde 2016 não havia nenhum reforço de custeio, então estamos dedicando recursos para a rede e para as residências terapêuticas”, explicou.

“Essa portaria é parte de um processo muito maior. Sem esse reforço, não poderemos fazer a diferença na saúde mental, com uma abordagem humanizada, que considera a cada um dos usuários do SUS como cidadãos e cidadãs. Há muito tempo abandonamos a visão de tutela pela visão do cuidado e da participação”, acrescentou a ministra da Saúde.

O anúncio das novas ações para o fortalecimento da rede foi feito nesta segunda-feira (3), durante a 17º Conferência Nacional de Saúde (CNS), que acontece até o dia 5, em Brasília (DF). O evento reúne representantes da sociedade civil, entidades e movimentos sociais de todo Brasil para debates de temas importantes para o sistema público de saúde, como a saúde mental.

O repasse será direcionado para os 2.855 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) existentes no país e para os 870 Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT). Ambos terão recomposição do financiamento e os recursos serão incorporados ao limite financeiro de média e alta complexidade de estados, do Distrito Federal e dos municípios com unidades habilitadas.

Além do investimento, o Ministério da Saúde habilitou novos serviços para expansão da rede em todo país. Desde março, foram 27 novos CAPS, 55 SRT, 4 Unidades de Acolhimento e 159 leitos em hospitais gerais - a maioria nos estados do Nordeste. Os novos serviços foram habilitados em Alagoas, Bahia, Maranhão, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe, Acre, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. Para o custeio desses novos serviços serão investidos R$32.389.256,00 ao ano.

Essa iniciativa faz parte da reconstrução da política de saúde mental e da retomada do fortalecimento da rede. Nos últimos seis anos, a RAPS teve um dos mais baixos crescimentos na série histórica desde 2001, com queda nos repasses para custeio e novas habilitações. Em todo mundo e no Brasil, a saúde mental passou a ser uma demanda cada vez maior para os sistemas de saúde, principalmente após a pandemia da Covid-19. Tratar o tema como eixo central e estratégico para o SUS é prioridade do Ministério da Saúde, que está alinhado com as diretrizes da reforma psiquiátrica brasileira.

Assim, fundamentada na garantia da dignidade humana, base da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde reassume os princípios da desinstitucionalização e da atenção psicossocial para a promoção do cuidado em liberdade e preservação da cidadania das pessoas que usam os serviços da rede.

Departamento de Saúde Mental (DESME)

Diante da importância da saúde mental para todos os brasileiros, o Ministério da Saúde criou o Departamento de Saúde Mental - DESME. Em caráter imediato, o departamento retomou a habilitação de novos serviços de saúde mental, bem como iniciou estudos para a recomposição do custeio dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e dos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT).

O Brasil tem hoje uma das maiores redes de saúde mental do mundo internacionalmente reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Vários estudos acadêmicos reiteram que a ampliação da oferta de serviços comunitários em saúde mental, diminui a demanda por hospitalização, assegurando mais qualidade de vida para a população.

Sobre o CAPS e SRT

Os Centros de Atenção Psicossocial - Caps são serviços de saúde de caráter aberto e comunitário voltados aos atendimentos de pessoas com sofrimento psíquico ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool, drogas e outras substâncias, que se encontram em situações de crise ou em processos de reabilitação psicossocial.

Nos estabelecimentos atuam equipes multiprofissionais, que empregam diferentes intervenções e estratégias de acolhimento, como psicoterapia, seguimento clínico em psiquiatria, terapia ocupacional, reabilitação neuropsicológica, oficinas terapêuticas, medicação assistida, atendimentos familiares e domiciliares, entre outros.

O Serviço Residencial Terapêutico (SRT) são casas localizadas no espaço urbano, constituídas para responder às necessidades de moradia de pessoas portadoras de transtornos mentais graves.

17ª Conferência Nacional de Saúde

As conferências de saúde são espaços de participação popular e diálogo entre gestores e sociedade. Realiza-se a cada quatro anos, desde 1986, para definição e construção conjunta das políticas públicas do SUS. Gestores, fóruns regionais, organizações da sociedade civil, movimentos sociais e muitos outros atores se reúnem neste evento organizado pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS) e o Ministério da Saúde.

A edição deste ano tem o lema "Garantir Direitos e Defender o SUS, a Vida e a Democracia – Amanhã vai ser outro dia". Mais de 2 milhões de pessoas participaram das etapas preparatórias e cerca de 6 mil são esperadas durante os dias de evento em Brasília. Serão debatidas 1 diretrizes e 329 propostas que devem auxiliar a nortear as decisões do Governo Federal para o SUS nos próximos anos.

“Ontem, no primeiro dia do evento, nos sentimos como fênix, renascendo das cinzas. Esse é o nosso sentimento. É uma reunião de várias gerações, com especial destaque para os jovens, que participam dessa conferência. Esse é um momento histórico, num país onde há o maior índice de homicídios de lideranças de movimentos sociais na cidade e no campo. Apesar do clima de alegria desse evento, não posso deixar de reforçar a importância de retomar a democracia com a forte participação social. E a saúde mental é um tema central nessa agenda”, concluiu a ministra Nísia Trindade.

Confira a apresentação em slides na íntegra

Fonte: Ministério da Saúde - Governo Federal


Novamente a esquizofrenia?

Vários sites de notícias da grande mídia estão vinculando o ataque ao Colégio Estadual Professora Helena Kolody, em Cambé, norte do Paraná, à esquizofrenia. Segundo eles, a Secretaria de Segurança Pública do Paraná teria revelado que o assassino sofria de esquizofrenia e estava em tratamento para esta condição. Esta precipitação em associar um crime bárbaro à esquizofrenia não é algo novo e lembra o episódio do massacre da escola em Realengo, Rio de Janeiro, no ano de 2011, em que um assassino entrou a tiros num colégio municipal matando 12 adolescentes e ferindo outros 22. Na época a grande mídia fez uma grande cobertura associando precocemente o crime ao fato do assassino ter esquizofrenia, fato que depois não se sustentou pela falta de evidências do material que se dispunha e da impossibilidade de perícia do criminoso que se matou ao ser interceptado por policiais.

Na época o Portal Entendendo a Esquizofrenia publicou um artigo sobre estigma, que demonstra que crimes violentos associados na mídia à esquizofrenia estão entre as principais causas de aumento do preconceito contra pessoas com esquizofrenia e que tal fato não encontra respaldo na comunidade científica, uma vez que crimes como esses são raros entre pessoas com esquizofrenia e que, ainda que o diagnóstico seja procedente, existem outros fatores sociais e ambientais envolvidos que podem ter associação com o ato violento, ao invés de se atribuir a responsabilidade unicamente a um transtorno.

Jobim Lopes (2012) publicou um artigo na Revista Estudos de Psicanálise em que faz uma análise cuidadosa do material disponibilizado pela mídia sobre o assassino de Realengo e refuta o diagnóstico de esquizofrenia, alencando outros fatores que podem ter sido mais decisivos para o comportamento violento, como a história de vida do assassino, o seu fundamentalismo religioso, o passado de bullying, as dificuldades com sua sexualidade, as influências da internet e o relacionamento simbiótico com sua mãe adotiva que havia falecido meses antes do crime. É uma boa leitura crítica de como a mídia e o público em geral se ocupam rapidamente de oferecer respostas simples e prontas para crimes bárbaros sem considerar a complexidade da mente e do comportamento humano.

Ainda que a informação diagnóstica do assassino do colégio no Paraná seja verdadeira, há de se investigar a história pregressa dessa pessoa, seus relacionamentos, seus hábitos, suas crenças religiosas, as influências que teve da internet e de outras pessoas, além de submetê-la a uma perícia forense para um diagnóstico adequado de suas condições psíquicas. Estudos mostram que a esquizofrenia frequentemente é diagnosticada precipitadamente quando ocorrem sintomas psicóticos, sem a consideração de outras causas ou diagnósticos, com uma baixa estabilidade diagnóstica, ou seja, muitos pacientes podem ser diagnosticados incorretamente no início e depois necessitarem de reavaliação diagnóstica. Um diagnóstico de esquizofrenia é uma tarefa complexa, que exige experiência e tempo, muitas vezes levando de 6 meses a anos de acompanhamento.

Quando se atribui apressadamente um crime a uma condição psiquiátrica presta-se um desserviço à sociedade, aumentando o estigma e o preconceito contra pessoas com transtornos mentais, a grande maioria incapaz deste tipo de violência e na maioria das vezes vítima de uma sociedade violenta, excludente e desigual.

Fontes:
Fusar-Poli et al. Diagnostic Stability of ICD/DSM First Episode Psychosis Diagnoses: Meta-analysis - Schizophrenia Bulletin vol. 42 no. 6 pp. 1395–1406, 2016
Jobim Lopes, A. Considerações sobre o massacre de Realengo - Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte-MG, n. 37, p. 25–44, Julho/2012
Palomar-Ciria, N. et al. Diagnostic stability of schizophrenia: A systematic review. Psychiatry Research, Volume 279, September 2019, Pages 306-314. https://doi.org/10.1016/j.psychres.2019.04.020


Canabidiol revigora a redução de danos no tratamento da dependência da maconha.

A possibilidade de tratamento com óleo de extrato de cannabis (CBD Full Spectrum), hoje disponível nas farmácias de todo país e também por importação com autorização da ANVISA, vem abrindo novas portas no tratamento de quadros psiquiátricos, dentre eles a dependência da maconha, uma condição difícil de tratar e que causa muitos conflitos na família.

Muitos pacientes são resistentes em interromper o uso de cigarros de maconha pelo ritual que eles representam em sua rotina de vida e pelos efeitos que eles sentem na ansiedade e no auxílio do sono. Contudo, a alta concentração de THC nos cigarros de maconha também traz muitos prejuízos para a cognição dessas pessoas, como falta de atenção, prejuízos da capacidade executiva e de planejamento, apatia e falta de vontade.

Uma pessoa que consuma regularmente a maconha, ainda que não faça uso diário, mas toda a semana, pode notar prejuízos ao longo de todos os dias, pois o THC se deposita no tecido gorduroso do corpo e continua sendo redistribuído pela corrente sanguínea mesmo nos dias em que a pessoa não o utiliza.

Muitas vezes a pessoa interrompe suas atividades, como estudo, trabalho, atividades sociais e físicas ou restringe as poucas atividades que têm ao uso da droga, como encontrar amigos em festas ou resenhas para usar a maconha.

Na maior parte das vezes o desgaste familiar vem pela inércia e a dependência da família e, quando os pais insistem na interrupção do uso da maconha, surgem conflitos que podem terminar em brigas ou mesmo internações psiquiátricas.

A política da abstinência total torna-se um obstáculo ao tratamento, uma vez que os usuários não desejam e/ou não conseguem parar o uso por completo e, como relatamos, mesmo reduzindo a quantidade ou frequência, o uso regular não muda as dificuldades que o THC presente no organismo impõe.

Com a possibilidade da utilização do extrato de cannabis (CBD com um percentual menor de THC - a fórmula Full Spectrum possui 0,3% de THC e 99,7% de CBD) é possível iniciar um tratamento para dependência da maconha sem que a abstinência total seja um ponto inegociável. O uso do óleo ajuda no controle da ansiedade e na melhora do sono, favorecendo a redução do uso da maconha.

Outra possibilidade é a utilização do CBD em flor, que o paciente pode utilizar como se estivesse fumando a maconha, mas ao invés de THC, enrola seu cigarro com a flor de CBD, cujo efeito é positivo na ansiedade e na cognição, sem os efeitos deletérios do THC. Com esse recurso, ele pode trabalhar melhor o hábito de fumar o cigarro, reduzindo aos poucos a frequência.

Alguns pacientes tem reduzido o uso de maconha utilizando a flor de CBD misturada com a maconha, portanto em proporções progressivamente menores (o que significa menor inalação de THC), pouco a pouco substituindo a maconha pela flor de CBD. A utilização concomitante com o óleo de CBD permite também uma redução progressiva do hábito de fumar.

À medida que o paciente reduz o consumo de maconha/THC, melhora sua capacidade cognitiva e sua iniciativa, conseguindo aos poucos retornar às suas atividades sociais, físicas e laboravas/acadêmicas.

Paralelamente ao tratamento, deve-se oferecer à família algumas sessões de psicoeducação ou terapia, para que ela compreenda o tratamento, a política de redução de danos e possa ser parceira do tratamento, motivando o paciente nas diferentes etapas de sua recuperação.

Um tratamento sem estresse, conflitos, brigas, medidas coercitivas ou internações. Sim, hoje é possível se livrar da maconha ou reduzi-la sem traumas, graças aos recursos trazidos pelo óleo e flor de CBD. Esses tratamentos são aprovados pela ANVISA e podem ser adquiridos em farmácias ou fornecedores autorizados.


Dependente em tecnologia lembra uso diário de 15 horas e demissão por 'baixa produtividade'.

Ainda que planejasse a rotina, a empresária Luísa, de 28 anos, percebeu que não conseguia cumprir as tarefas programadas devido ao uso excessivo de tecnologia. Ela admite que sacrificava coisas importantes da vida para assistir vídeos e relembra os piores momentos, quando passava de 12 à 15 horas diárias em frente às telas e vivia isolada.

— Eu acredito que o oposto da adicção é a conexão. Eu não conseguia me relacionar ou controlar a minha dependência. Pensava que iria assistir só um episódio, jogar uma fase, usar meu telefone por 10 minutos. Mas nunca conseguia parar por aí e percebi que precisava de cada vez mais estímulo para sentir o mesmo prazer — diz.

Luísa (nome fictício para preservar a identidade da entrevistada) percebeu que era compulsiva em 2017 e decidiu contar para a terapeuta. Porém, ela acredita que “não conseguiu se expressar bem”, o que provocou demora no diagnóstico.

— Minha terapeuta não entendeu a gravidade da questão logo de início. Ela achava que era algo passageiro e resultado de uma fase ruim — conta.

A adicta revela ter tentado diminuir o uso de tecnologia de inúmeras formas, mas todas falharam e provocaram uma recaída ainda maior. Ela percebeu que quando reduzia o tempo de contato com o seu principal gatilho, imagens em movimento, canalizava a atenção nas redes sociais.

Doutora em Saúde Mental e Professora da Pós-graduação do Instituto Delete/UFRJ, Anna Lucia Spear King explica que as tecnologias ativam a área de recompensa do cérebro. Segundo a psicóloga, o dependente passa a viver em um mundo virtual, onde pode esquecer os problemas da vida real.

— No caso dos videogames, por exemplo, os adictos passam a não querer sair do quarto e a urinar em garrafas. Isso tudo para não perderem o jogo. O meio virtual é uma vida paralela e muitas vezes melhor que a normal — aponta.

A dependência também prejudicou o trabalho de Luísa e causou uma perda contínua de eficiência, principalmente quando começou o home office, na pandemia. Ela relembra os dias em que abria o computador e não trabalhava.

Segundo a adicta, a baixa produtividade "gerou muitos problemas para a empresa" e provocou a sua demissão.

— Um dia acordei, tomei banho e o café da manhã. Faltava apenas sentar e trabalhar. Eu não conseguia fazer isso, então menti para a minha chefe. Falei que estava doente. Passei dois dias trancada no meu quarto assistindo televisão e mal me levantava até para comer — afirma.

Além dos prejuízos no meio profissional, o dependente também pode ter problemas na vida pessoal e na saúde. Anna Lucia aponta ser comum que adictos deixem de se relacionar com parentes e amigos. Problemas físicos como artrite e tendinite são motivos de preocupação.

Foi em 2022 que Luísa encontrou o ITAA (https://internetaddictsanonymous.org/pt/), um grupo de ajuda que segue os métodos do Alcoólicos Anônimos (A.A.) para atuar na recuperação da adicção em internet e tecnologia.

O programa de 12 passos adotado pelo ITAA - também chamado de DITA (Dependentes de Internet e Tecnologia Anônimos) - permitiu que ela tivesse contato com outros dependentes.

No tratamento, Luísa frequenta as reuniões do grupo e possui uma “lista de linhas” classificadas como vermelhas, amarelas e verdes, de acordo com os impactos das atitudes na sua recuperação.

— Para mim, séries e vídeos são linhas vermelhas, porque se faço uso, não consigo parar. As amarelas são comportamentos que podem levar para a vermelha. No meu caso, são as redes sociais. E as verdes são ações positivas, como exercício físico e prestação de serviços na irmandade — explica.

Luísa teve uma recaída após um mês de programa e, desde então, encontra-se sóbria. Ela abriu uma empresa quando estava em recuperação e relata ter resultados no trabalho que antes não imaginava que conseguiria. “Eu não dava nem conta das tarefas de um funcionário e agora sou empresária”, celebra.

Cinco anos após ter percebido que o uso de tecnologia não traria mais prazer, mas sim sofrimento, Luísa segue os princípios do programa de recuperação diariamente. O tratamento requer que ela relembre que continua uma adicta e precisa de ajuda.

— É impossível viver sem internet e tecnologia na sociedade atual. As minhas decisões em relação a isso se resumem a uma pergunta: o uso dessa tecnologia é circunstancial ou necessário? Qualquer pessoa que queira se recuperar da dependência consegue, basta ter a vontade de mudar — diz.

Uma pesquisa encomendada pela Digital Turbine, em 2021, constatou que 20% dos brasileiros não ficam mais de 30 minutos longe do celular. O estudo também detectou que cerca de 40% da população aumentou o uso de seus smartphones durante o pico da pandemia.

Mestre em psiquiatria pela UFRJ, Leonardo Palmeira acredita que as mídias digitais inauguraram um novo momento da história moderna: a sociedade da informação.

Para o especialista, os novos meios de comunicação permitem que os sujeitos deixam de ser meros passivos receptores de conteúdo, como ocorria com as tecnologias de massa (Televisão e rádio), para se tornarem produtores e consumidores.

— As mídias digitais nos pegam num nível pré-consciente e emotivo. Somos incentivados a produzir cada vez mais. Essa forma de comunicação pode se tornar compulsiva, deixando a pessoa refém da rede e dos algoritmos. Ela fica submissa e sujeita a afetos que podem ir da euforia à depressão e desespero — explica.

Palmeira diz ser necessário construir mecanismos para combater os malefícios dessa tendência. O psiquiatra elenca como pontos a serem trabalhados: a convivência coletiva e a troca de experiências. Além disso, destaca ser essencial a produção de conhecimento e consciência capazes de fazer frente a essa realidade.

— São inúmeros os riscos não só para a vida privada, mas para a democracia. As pessoas são facilmente influenciadas pela informação - muitas vezes falsas - e vivem num entretenimento desenfreado, na função de entreter a si próprias e às outras. Elas não tem noção das consequências que o sistema pode trazer para suas vidas, tanto do ponto de vista psíquico, como social — conclui.

Fonte: O Globo (reportagem de Luis Felipe Azevedo)


Compradora compulsiva lembra 'gatilho' de cartão de crédito e desejo de morte: 'fui salva por Fábio Porchat'.

Ao mudar de cargo no hospital em que trabalha, em setembro do ano passado, a fisioterapeuta Bruna Almeida, de 52 anos, recebeu um novo cartão de débito, que poderia ser revertido em crédito, e chorou apavorada. As possibilidades oferecidas pelo objeto remetiam a “uma liberdade pela qual não poderia mais pagar”. Ela levou o cartão imediatamente ao psiquiatra que a atende desde quando foi diagnosticada como uma compradora compulsiva, em 2021.

— O médico me deu duas opções. Eu poderia retirar o cartão da carteira para não me incomodar ou deixar lá e aprender a conviver com isso. Eu decidi mantê-lo para descobrir como lidar com essa luta pela sobrevivência — diz.

Bruna (nome fictício empregado para manter o anonimato pedido pela entrevistada) gastava em média de R$ 8 mil a 10 mil mensais no cartão de crédito da mãe, em compras definidas por ela como “supérfluas e egoístas". Os valores eram sempre divididos em muitas parcelas. Além disso, a fisioterapeuta tinha um outro cartão, com limite de R$2.500, que era usado para comprar presentes para si.

Moradora de Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro, Bruna conta que precisou ser interditada por conta de problemas financeiros na pandemia, após o médico achar que ela sofria um infarto.

— Eu passei por um momento difícil na vida. Minha filha estava saindo de casa, aos 19 anos, para morar em outro estado e a Covid-19 fez com que muitos dos meus clientes particulares, que eram idosos, morressem. Nesse meio tempo, eu aumentei o valor dos presentes que me dava e não tinha mais como pagar as parcelas — afirma.

Mestre em psiquiatria pela UFRJ, Leonardo Palmeira explica que casos como o de Bruna existem pelo fato do cérebro humano ter um centro de prazer e recompensa, que uma vez estimulado pode provocar a dependência. No caso das compras, o compulsivo não consegue frear os impulsos pelo consumo e o excesso de estímulo provoca prejuízos na vida.

— O dependente tende a comprar cada vez mais. Ele sente prazer no momento do ato, mas muitas vezes se arrepende logo em seguida e não usufrui do produto. É assim que as pessoas vão desenvolvendo também uma relação de culpa, por questões de endividamento — aponta.

Bruna admite que “comprava mais do que devia” quando visitava uma loja. Ela alega que não buscava saber o preço dos produtos e sentia mais prazer quando gastava com “futilidades” e peças de alto padrão.

— Uma vez entrei em uma loja de marca para comprar uma calça jeans. Saí de lá com oito bolsas cheias e paguei R$ 3.500. Também cheguei a gastar R$ 1.200 em uma loja de biquíni. Hoje, com a limitação dos gastos, tenho dificuldade de sair de casa. A minha motivação é o dinheiro — conta.

Como aponta Palmeira, o dependente desenvolve uma relação pautada pela compra com determinados lugares. Isso explica a dificuldade de um compulsivo em passar pela vitrine de lojas ou supermercados e não consumir. Por outro lado, o psiquiatra ressalta que, com a tomada de consciência da doença, o dependente desenvolve uma fobia desses locais.

— É uma relação conflituosa de culpa. A pessoa sabe que perde o controle nesses ambientes, mas ela também precisa satisfazer aquele prazer instantâneo da compra — explica.

Após a descoberta do transtorno, a família recorreu a empréstimos, e o marido — que até então não sabia quanto ela ganhava ou gastava — precisou intervir. Segundo Bruna, ele estabeleceu “punições” para mostrar que ela não pode ter tudo o que quer.

O salário recebido pelo seu trabalho no hospital passou a ser encaminhado diretamente para a conta do marido, que pagava as despesas da casa e demais dívidas. Ela diz se sentir “humilhada” por precisar pedir dinheiro a ele, mas entende a necessidade do controle.

A dependente revelou ter enfrentado momentos de muita tristeza no período em que foi interditada, e diz que chegou a sentir vontade de tirar a própria vida.

— Naquela época, eu preferia morrer do que não poder comprar. Eu só me sentia segura trancada no quarto. O que me salvou foi o programa de conversas do Fábio Porchat ("Que história é essa Porchat?", do GNT). Aquilo me fazia rir e impediu que eu me jogasse da janela — conta, emocionada.

A fisioterapeuta passou a realizar compras apenas por PIX ou débito, e sua conta bancária é mantida com uma quantidade baixa de dinheiro. Ela pediu aos amigos do trabalho que a impedissem de pedir cartões de crédito emprestados para consumir.

Bruna define a luta contra a doença como diária. Além de acompanhamento com psiquiatra, ela também usa medicamentos controlados e faz terapia. Atualmente, a fisioterapeuta diz estar feliz e orgulhosa da mudança conquistada, mas não nega ainda ter problemas quando quer muito algo que não pode comprar.

— Eu não me arrependo de nada que comprei e não me sinto mais culpada pelo que aconteceu. Não tenho pretensão de repetir os meus erros. Tenho noção da minha doença e quero continuar me tratando — fala.

Palmeira afirma que o tratamento da compulsão por compras deve ser multidisciplinar. O trabalho deve envolver acompanhamento médico, psicoterapia e grupo de ajuda-mútua. O psiquiatra também ressalta a importância do apoio profissional aos parentes dos pacientes, por existirem traços familiares que podem reforçar o comportamento compulsivo.

Fonte: O Globo (reportagem de Luis Felipe Azevedo)


Apresentação do Grupo de Estudos sobre Recovery do Programa Entrelaços.

Um grupo de usuários ligados ao Programa Entrelaços do IPUB/UFRJ e ao grupo 15 de Nós decidiu se reunir para estudar o tema do Recovery, debruçando-se sobre o capítulo da dissertação do Dr. Leonardo Palmeira (disponível em https://leonardopalmeira.com.br/dissertacao-de-mestrado-dr-leonardo-palmeira/). Essa apresentação traz um resumo sobre recovery feito por eles e um debate ao final com o autor.

https://youtu.be/-VpCRpdVQWo


Idosa é internada de maneira criminosa por filha em clínica psiquiátrica.

Idosa é sequestrada pela filha na Zona Sul do Rio e internada em clínica psiquiátrica na Região Serrana.

O que precisa ser investigado na conduta médica e das equipes de saúde por trás deste caso?

Antes da Lei da Reforma Psiquiátrica (10.216/2001) não havia regulamentação para internações psiquiátricas e pessoas eram internadas involuntariamente à pedido da família com critérios frouxos que podiam violar os direitos humanos e civis delas.

A Lei determina dentre outros direitos do paciente que o Ministério Público seja comunicado pela clínica em até 72h sobre a internação involuntária e possa investigar se houve abuso dos direitos civis do paciente.

Os critérios para internação são mais rígidos e só se aplicam quando esgotadas as possibilidades de tratamento do paciente na comunidade em dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), como os CAPS.

Basicamente o médico psiquiatra que faz o primeiro atendimento precisa responder a três perguntas:

1) o paciente oferece risco à vida ou à integridade física dele que justifique uma internação involuntária?

2) a mesma pergunta em relação à vida ou à integridade de terceiros.

3) o paciente não tem condições clínicas de fazer o tratamento em comunidade nos recursos da RAPS ou, no caso da saúde suplementar, em ambulatórios ou consultórios médicos/hospitais dia?

Somente no caso de resposta afirmativa a uma dessas perguntas fica o médico respaldado na decisão da internação involuntária, ainda que sua decisão se contraponha à demanda da família. Não é, portanto, a vontade ou decisão da família que determina a internação.

A decisão do médico psiquiatra é delicada e a linha entre respeitar ou ferir direitos humanos e civis da pessoa em sofrimento mental pode ser tênue, razão pela qual as razões para a internação precisam ser bem fundamentadas para o médico não ser responsabilizado por violações.

Na dúvida desses critérios, a decisão deve respeitar a vontade e a liberdade do paciente, oferecendo dispositivos alternativos de cuidado, em que o paciente possa ser tratado em sua comunidade com avaliações continuadas para verificar seu estado de saúde em diferentes momentos.

Este caso chama atenção para possíveis negligências das equipes de saúde responsáveis pela primeira abordagem na rua (equipe de remoção) e pela internação na clínica, que podem configurar sequestro e cárcere privado.

Uma situação gravíssima e inadmissível depois da Reforma Psiquiátrica Brasileira, mas que antes da Lei era uma prática comum em clínicas e hospitais do país. Que a punição sirva de exemplo para possíveis práticas semelhantes que ainda possam ocorrer nos dias de hoje!

Veja a matéria do O Globo de 25/02/23.

Policiais da 9ª DP (Catete) prenderam em flagrante a filha e o genro de uma idosa por sequestrarem a vítima na Zona Sul do Rio e a internarem à força em uma clínica psiquiátrica na Região Serrana do estado. De acordo com as investigações, a idosa, de 65 anos, não tinha nenhuma doença nem necessidade terapêutica. Ela foi mantida na unidade particular de saúde para ser coagida a se retratar de uma notícia-crime que havia feito, denunciando maus-tratos sofridos pelos dois netos, de 2 e 9 anos, na Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima (Dcav), dias antes.

Segundo o delegado Felipe Santoro, titular da 9ª DP, ao sair de uma agência bancária, no início da tarde de 6 de fevereiro a aposentada foi abordada na Rua do Catete por dois homens, que a colocaram em uma ambulância. Na ocasião, a idosa acreditou se tratar de uma “saidinha de banco” ou um sequestro relâmpago, mas logo percebeu que a violência acontecia a mando de sua filha, já que um dos criminosos disse que “era coisa de família”. 

Dentro da ambulância, a idosa narra ter chorado durante todo o trajeto até Petrópolis e, ao chegar à clínica, teve a bolsa e o celular retirados pelos funcionários, sendo colocada em um quarto sem janela nem ventilação por três dias. No local, ela disse ter sofrido com fome e sede e gritado diversas vezes por socorro. Depois, a idosa contou ter sido levada para um espaço coletivo, onde passou a ser obrigada a ingerir medicações.

Em depoimento, a vítima disse ainda que indagava os médicos por sua alta, mas eles passavam por ela sem a responder. Durante o carnaval, ela contou ter recebido a visita de sua filha, Patrícia de Paiva Reis, e do companheiro dela, Raphael Machado Costa Neves. O casal teria relatado à idosa que tentariam desqualificar o registro feito por ela na Dcav demonstrando que ela sofria de “desequilíbrio mental”.

Aos policiais, a aposentada narrou ainda que os dois netos, um deles com deficiência mental, sofrem maus-tratos. Ela relatou que as crianças não recebem alimentação nem asseio adequados. Depois de alguns dias internada, a idosa afirmou ter sido novamente colocada à força em uma ambulância e levada para outra unidade psiquiátrica. No local, ela narrou a uma médica o desejo de sua filha em ficar com a integralidade da pensão que ambas dividem.

Na tarde da última quinta-feira, após descobrirem o paradeiro da idosa a partir de sua própria filha, agentes da 9ª DP estiveram na clínica e a libertaram. Ao delegado, ela contou ter escrito diversas cartas no período de internação para “desabafar sua tristeza e seu medo” por estar ali sem sua anuência nem necessidade médica.

Patrícia e Raphael foram presos em flagrante e indiciados pelos crimes de sequestro triplamente qualificado e coação no curso do processo. Eles não quiseram prestar depoimento.

— Iniciamos as diligências tão logo recebemos a informação de que uma idosa lúcida e sem nenhuma doença física nem mental estava sendo mantida em privação de liberdade em uma clínica. Após a prisão dos parentes que haviam determinado a internação, iremos investigar a conduta de médicos, enfermeiros e demais funcionários desses estabelecimentos, a fim de entender a responsabilidade de cada um nesses crimes — explicou o delegado Felipe Santoro.

Família ajudou a levar caso à polícia

A advogada Carina Penna, tia do menino de 9 anos vítima de maus-tratos, foi quem registrou o caso do desaparecimento da idosa na 9ª DP, junto ao zelador e o síndico do prédio onde mora a avó das crianças. Após a idosa constatar que os dois netos sofriam maus-tratos, ela procurou o pai do mais velho para pedir ajuda. Em seguida, registrou o caso de forma anônima na Dcav. Patrícia, segundo a família, descobriu a denúncia por parte da mãe quando foi juntada a uma ação que o pai do menino, que mora nos Estados Unidos, move pela guarda do filho.

— Ela passou a ameaçar a própria mãe, foi quando ela me pediu ajuda, por saber que sou advogada. Ela disse "não me abandona", e fez uma troca de contatos, passou o meu para uma amiga dela e o dessa amiga para mim. Essa amiga sabia todos os passos dela, justamente por ela ter medo da filha. Quando ela parou de atender as ligações, essa amiga já desconfiou e me ligou — conta.

Veja a íntegra da nota da clínica

No dia 17/02, a Clínica Revitalis foi procurada pela sra. Patrícia de Paiva Reis, que solicitou a internação de sua mãe de 65 anos, com “histórico de depressão com episódios de confusão mental”. A paciente chegou a Revitalis transferida de outra clínica psiquiátrica.

Após avaliação médica e entrevista com familiar foi identificada a necessidade de observação para conclusão diagnóstica mais precisa. Em 5 dias na clínica, com abordagem multidisciplinar da equipe, foi constatado que a paciente não mais apresentava indicação de internação.
Vale ressaltar que em nenhum momento houve resistência ou recusa por parte da paciente em permanecer sob tratamento. Nossa equipe conta com psiquiatras, psicólogos e profissionais de enfermagem qualificados, e todos os protocolos foram seguidos, sem nada que fugisse à normalidade. A Revitalis atua com profissionalismo e sem nenhuma ligação pessoal com familiares de pacientes sobre qualquer outro interesse que não seja a prestação de serviços assistenciais de saúde.

A Clínica Revitalis em seus 10 anos de prestação de serviço preza pela ética e pela qualidade no tratamento em saúde mental, com uma equipe de profissionais gabaritados que possuem competência técnica e zelam pelo bem estar do paciente acima de tudo, visando oferecer o tratamento mais adequado e eficaz para cada caso.

A Clínica fica à disposição para prestar quaisquer esclarecimentos adicionais.


Janeiro Branco reúne integrantes do Entrelaços no Palácio do Catete.

No último sábado (28/01) os grupos de ajuda-mútua ligados ao Programa Entrelaços, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ/IPUB, reuniram-se no Palácio do Catete para a campanha Janeiro Branco de 2023, mês escolhido nacionalmente para reforçar a importância da saúde mental. Com o mote “Converse com alguém” a campanha deste ano, organizada pelo Grupo 15 de Nós, composto por usuários da saúde mental, procurou enfatizar o protagonismo dos usuários da saúde mental e a importância das narrativas pessoais de recuperação (recovery) como instrumentos de inclusão social. A importância da ocupação do território através de espaços públicos como o Museu da República reforça que a verdadeira recuperação ocorre na comunidade com as conquistas sociais e de cidadania dos usuários.

Assista ao vídeo do evento!

https://youtu.be/ML2Dqw9n-mk


Sono ruim de adolescentes pode prejudicar a saúde emocional e cognitiva.

Em entrevista ao GLOBO, especialista sugere o adiamento em ao menos uma hora do horário escolar e explica que jovens sofrem de uma tendência natural a atrasar o momento de dormir.

Em julho do ano passado, entrou em vigor no estado da Califórnia, nos Estados Unidos, a primeira lei do país que obriga as escolas a começarem apenas a partir das 8h30 para os estudantes do Ensino Médio. A mudança foi embasada em um estudo que mostra como as mudanças biológicas da puberdade afetam o sono e, consequentemente, o desempenho escolar.

A adaptação dos horários escolares para adolescentes, especialmente em lugares como o Brasil, cujas aulas podem começar até 7h, é uma discussão que cresce no mundo, impulsionada pelo apelo de cientistas. Um dos nomes brasileiros que fazem coro ao discurso é o neurocientista Fernando Louzada.

Doutor em Neurociências e Comportamento pela Universidade de São Paulo (USP), o pesquisador atualmente coordena o Laboratório de Cronobiologia Humana da Universidade Federal do Paraná (UFPR), de onde também é professor, e participa da Rede Nacional de Ciência para Educação (Rede CpE) e do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI).

Em entrevista ao GLOBO, Louzada cita experiências nacionais que mostram os benefícios de se adiar em ao menos uma hora o começo das aulas, explica que adolescentes sofrem de uma tendência natural a atrasar o momento de dormir e esclarece que a faixa etária demanda uma quantidade maior de horas de sono, que não é alcançada com o modelo de ensino atual.

Quanto de sono os adolescentes precisam e de que forma o horário das aulas escolares no Ensino Médio brasileiro, que começam geralmente às 7h, interferem nessa dinâmica?

Os adolescentes precisam de mais sono do que os adultos, em média de nove horas. Só que existe um fenômeno nessa idade chamado de atraso de fase do sono, que é uma tendência natural e universal a atrasar os horários de dormir e, consequentemente, de acordar também. Por isso, verificamos que a maioria dos adolescentes, principalmente nos grandes centros urbanos, dormem bem menos que isso durante os dias letivos.

A equação é bem simples. Se as aulas começam às 7h, e muitos precisam acordar às 6h para chegar a tempo, seria necessário dormir às 21h. Mas é muito difícil pensar em adolescentes, com a tendência ao atraso do sono, dormirem nesse horário. Por isso, não há como um horário de início das aulas às 7h preservar o sono necessário dos adolescentes, o que levou muitos países a implementarem um horário mais tarde, e temos discutido muito isso aqui no Brasil.

Como saber que o atraso de fase do sono é algo inerente ao adolescente, e não resultado de hábitos que prejudicam o descanso, como excesso de telas?

Sempre recebemos essa pergunta, se o fenômeno é biológico, ou seja, está mais incorporado à espécie humana, ou se é cultural, influenciado pelos hábitos e pela cultura. Nós temos estudado isso de diversas maneiras. Uma delas, foi estudando comunidades rurais, populações sem acesso a energia elétrica, no Brasil e em outros países, e observamos que essa tendência é universal, presente em todos os adolescentes avaliados independentemente do local. Mas é claro que o ambiente urbano, o acesso às tecnologias, televisão, videogame, computador, tudo isso exacerba o atraso, porque só o estímulo luminoso sozinho já é capaz de aumentar a tendência a adiar o sono.

E por que conseguir um sono adequado é tão importante, especialmente durante essa fase da vida?

O sono é muito importante para vários aspectos da saúde, como manter a integridade do sistema imunológico, atuar no controle do metabolismo energético, preservar a cognição e o funcionamento cerebral. Por isso, ficar longos tempos privados de sono favorecem o ganho de peso, o desenvolvimento de doenças metabólicas, como diabetes tipo 2, além de problemas cardiovasculares e neurodegenerativos.

Além disso, mexe muito com a regulação emocional. Quando não dormimos, ficamos com maior impulsividade, maior irritabilidade, menor resiliência para enfrentar as situações difíceis. E se pensarmos que a adolescência já é uma faixa etária muito exposta a transtornos psiquiátricos, essa preocupação com sono deve ser ainda maior, pois o cérebro ainda está em formação.

E o que temos de mais recente é o papel do sono para a consolidação das nossas experiências depois do aprendizado. Ao dormir, o cérebro permanece ativo e essa atividade está a serviço dessa formação de memórias, o que impacta diretamente no desempenho escolar.

Você explica que o horário das aulas às 7h reduz o sono dos jovens, mas se as aulas começassem mais tarde, não seria o caso de apenas adiarem o sono também?

Existe toda essa discussão, mas diversos estudos já mostraram que não é bem assim. Mesmo que o adolescente atrase um pouquinho o horário de dormir, não supera o ganho do horário de acordar, o saldo é na maioria das vezes positivo. Mas claro que essa medida não pode ocorrer de forma isolada, precisa vir junto com medidas de educação sobre o sono, como para as pessoas evitarem estímulos à noite. Mas sem o atraso dos horários escolares não é possível atingir essa meta, que é possibilitar aos alunos que durmam o que precisam.

No ano passado, você fez parte de um estudo da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), que chegou a repercutir no exterior, em que avaliou uma turma de Ensino Médio com o horário alterado. Quais foram os principais resultados?

Já tínhamos uma série de evidências comparando por exemplo estudantes de horários matutinos e vespertinos, mas esse avaliou os alunos antes, durante e depois de uma alteração no horário. Foi o primeiro trabalho de intervenção do horário realizado no Brasil, temos poucos trabalhos do tipo porque é muito difícil devido à disponibilidade das escolas. Os resultados confirmaram um benefício na duração do sono e, consequentemente, dos impactos em medidas de sonolência diurna e de humor.

Em uma escola de Palotina, no Paraná, definimos o atraso de uma hora no início das aulas durante uma semana, no meio do período letivo, começando às 8h30. Durante três semanas – antes, durante e depois da alteração –, acompanhamos os 48 estudantes com um acelerômetro, uma espécie de relógio de punho que monitorava os horários de dormir e acordar.

Junto, avaliamos medidas como a sonolência em sala de aula, o humor dos estudantes, com fatores como estresse e sintomas de depressão. A mudança de horário levou a um aumento na duração de em média 38 minutos no sono e na redução da sonolência nas aulas e das queixas de humor.

Qual a dificuldade de levantar esse debate no Brasil? E qual seria, na sua visão, a melhor solução?

Muitos dos procedimentos das escolas são cristalizados, consolidados há décadas, por isso é muito difícil mudarmos. Tanto que uma série de coisas foram alteradas na pandemia e, quando voltaram as aulas presenciais, nada foi aproveitado, nenhum dos benefícios que poderiam ter sido incorporados no cotidiano escolar. Voltamos a funcionar exatamente como as escolas funcionavam antes da Covid-19.

E a pandemia mostrou também como os adolescentes dormem mais se puderem. Nós fizemos um estudo que mostrou isso, como com as aulas online e a flexibilidade com elas levou os estudantes a acordarem mais tarde e terem mais horas de sono. Essa flexibilidade, que é possibilitada com a pandemia, para mim é um dos caminhos.

O que defendemos não é uma medida imediata obrigando as escolas a começarem às 8h30 como solução. Antes disso, precisamos de conscientização, convencer as pessoas, os gestores, os familiares e os próprios estudantes sobre a importância do sono e dos benefícios de eventuais mudanças. É um processo, porque isso tem um impacto na vida dos pais, dos professores, da dinâmica nas escolas. Mas quando as pessoas estão sensibilizadas sobre o tema, fica mais fácil discutirmos essas medidas e as melhores maneiras de ajustarmos todos os fatores envolvidos.

Particularmente, acho que a flexibilidade de horários é o melhor. Possivelmente ter escolas em que turmas diferentes começam em horários diferentes, que utilizem a tecnologia como uma aliada nesse processo, são opções que podem ser discutidas.

Para compensar a falta de sono à noite, muitos alunos têm o hábito de cochilar à tarde. Essa prática é positiva? Consegue diminuir o impacto da privação?

Nós diríamos que sim, que é benéfico, que pode de alguma maneira começar a compensar a restrição do sono à noite, mas há duas preocupações. A primeira é que as evidências mostram que cochilos muito longos, com mais de 90 minutos, começam a repercutir no sono noturno, então você terá mais dificuldade para dormir à noite. Por isso, o recomendado é que dure no máximo 1h e meia.

A outra preocupação é o fenômeno chamado inércia do sono, que é a tendência de continuar dormindo mesmo após ter acordado. É quando você levanta, mas seu cérebro ainda não está pronto para a vigília. Em algumas pessoas, ele é curtíssimo, em outras ele é mais longo e podem ter uma dificuldade maior em produzir, em estudar após o cochilo. Para essas pessoas, pode não valer a pena a soneca por comprometer o resto do dia, mas deve ser uma avaliação individual.

Diversos estudos têm mostrado um aumento nos distúrbios do sono entre jovens. Como você vê esse crescimento e o que pode ser feito para melhorá-lo?

É difícil separar o quanto isso é um fenômeno crescente ou um impacto isolado emocional da pandemia. Mas é surpreendente, nós estamos desaprendendo a dormir, isso não poderia acontecer. Há uma desvalorização do sono. Às vezes pelo trabalho, mas às vezes para sair, ir a uma festa, ou seja, modificamos o sono devido à dinâmica social e isso gera uma repercussão na saúde das pessoas.

E para os jovens, nove horas de sono não são suficientes se a qualidade dele não for boa, se o adolescente acorda o tempo inteiro por exemplo. Então é muito importante olhar para a vigília, se ele anda muito sonolento, dorme em situações em que não deveria, está mais irritadiço, com mais dificuldade em manter o diálogo em situações estressantes, se o humor está mais deprimido, com falta de motivação.

Para ajudar, há uma série de medidas da chamada higiene do sono. Elas vão desde as condições do ambiente, como garantir que ele esteja o mais silencioso, escuro e confortável possível, até hábitos como atividade física regular, alimentação adequada, evitar estimulantes, como cafeína, nas horas que antecedem o sono e reduzir a estimulação luminosa de telas nesse período. Tudo isso contribui para um sono melhor.

Fonte: Jornal O Globo


O protagonismo e um novo tempo para a saúde mental.

O ano de 2022 chega ao fim de uma forma inusitada. O Brasil viveu um processo eleitoral atribulado em que esteve em jogo sua democracia como nunca antes desde a sua redemocratização, manifestações golpistas e de questionamento do resultado das eleições tumultuaram o ambiente pós-eleitoral e de transição de governo, a camisa canarinho, antes cooptada politicamente, precisou ser aposentada precocemente numa Copa do Mundo extemporânea em que o Brasil foi eliminado precocemente, aproximamos do Natal e do Revéillon e ainda pairam incertezas sobre a posse do novo governo eleito, enfim, um final de ano em que pela primeira vez desde o início da pandemia da COVID-19 respiramos um pouco mais aliviadamente, embora os casos da doença voltem a aumentar, mas nada comparável ao último pico de janeiro deste ano.

Mas nem todas as notícias são assim desanimadoras e podemos ser otimistas em relação ao futuro da saúde mental no Brasil com as novas perspectivas, que não vêm somente dos compromissos do novo governo que assumirá em 01 de janeiro de 2023 e que traz novos ares, mas sobretudo do movimento social de usuários e familiares por mais protagonismo, que traz mais esperança.

Há alguns anos o movimento dos usuários da saúde mental por mais protagonismo vem ganhando maior visibilidade, formando um consenso que para alcançar a recuperação de um transtorno mental são essenciais a liberdade, a decisão apoiada, o tratamento e o relacionamento não-hierarquizado e a contratualidade do indivíduo com sua casa, família, trabalho e rede social, ou seja, o exercício pleno de sua cidadania em todas as esferas de sua vida. E para o alcance dessa recuperação, que vem sendo chamada de recovery (termo em inglês utilizado para diferenciá-la da recuperação clínica), uma tecnologia fundamental é o suporte de pares e as narrativas em primeira pessoa que permitem as trocas de experiência entre os usuários e seu fortalecimento.

Nós do Programa Entrelaços, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, estamos trabalhando dentro desta filosofia desde os primeiros grupos de ajuda-mútua criados em 2011, contudo, a cada ano assistimos entusiasmados o crescimento desse protagonismo com o número crescente de usuários participando de todas as etapas da construção deste projeto. Os exemplos deste protagonismo estão em nossos encontros ao final de cada ano e nas campanhas que eles organizam pela saúde mental (Janeiro Branco) e pelo Dia da Consciêntização da Esquizofrenia (24 de Maio), além de intercâmbios com outros movimentos da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica brasileira.

No dia 03 de dezembro deste ano realizamos no Instituto de Psiquiatria da UFRJ/IPUB o evento de encerramento de 2022 após dois anos de evento on-line pela pandemia da COVID-19. Pela primeira vez em dez anos de história do Programa Entrelaços o evento foi exclusivamente realizado por seus usuários e familiares, sem participação direta dos técnicos, que se limitaram a coordenar e apresentar as mesas. Testemunhamos depoimentos inspiradores e enriquecedores de pessoas narrando sua própria história de superação, revelando seu empoderamento e sua resiliência no enfrentamento de suas dificuldades, o maior exemplo de que o protagonismo na saúde mental é importante nas trajetórias de recuperação de cada um, seja usuário ou familiar. O protagonismo não é somente possível como desejável para quem deseja recuperar sua auto-estima e sua cidadania, conforme prevê o conceito mais moderno de recuperação, o recovery. Protagonismo implica autonomia e liberdade, com as pessoas livres para fazerem suas escolhas e tomarem as decisões sobre suas vidas, garantindo-lhes uma atitude de respeito e legitimidade da comunidade e da sociedade.

Nós do Programa Entrelaços acreditamos na força deste movimento partindo de sua base, com vetores que emanam de dentro do movimento social para fora, com efeitos transformadores na cultura que a sociedade tem sobre a loucura e a deficiência. Essa é a melhor forma de combatermos o preconceito e o estigma, como também reivindicar direitos e melhores condições de trabalho, moradia e integração social, num resgate de cidadania plena para as pessoas usuárias da saúde mental. Esse é o novo momento da Reforma Psiquiátrica Brasileira que encontra ressonância nas políticas públicas anunciadas pelo novo governo que se avizinha (figura 1).


Figura 1- Trecho retirado do Programa de Governo Lula/Alckmin 2022 para a política de saúde mental.

A primeira mesa (foto 1) do evento apresentou o projeto Comunidade de Fala, idealizado pelo ativista norte-americano Richard Weingarten, que conta com iniciativas em quatro municípios brasileiros, Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Santa Maria. Usuários da saúde mental apresentam suas vivências do adoecimento à recuperação, com narrativas que revelam à plateia o empoderamento e o protagonismo dos usuários nas diferentes etapas. O projeto tem a supervisão do professor Eduardo Vasconcelos, importante referência na luta antimanicomial do país.


Foto 1 - Luiz Eduardo, Orlando Baptista e Elizabeth Sabino, do projeto Comunidade de Fala.

A segunda mesa (foto 2) trouxe a proposta de construção de uma associação de usuários e familiares como desdobramento da experiência com o Programa Entrelaços para apoiar e fomentar iniciativas de combate ao estigma, de formação educacional de pares especialistas em grupos de suporte mútuo e de geração de renda para pessoas em vulnerabilidade psicossocial.


Foto 2 - Gustavo Meano, Cristina Leal e Luisa Lins debatem o projeto associativo.

A terceira e última mesa (foto 3) contou com a apresentação de três integrantes do Grupo 15 de Nós, grupo do Programa Entrelaços formado por pessoas usuárias da saúde mental, que trouxeram suas vivências em relatos emocionantes de como superaram barreiras como a desinformação, o preconceito, o auto-estigma, a resistência ao tratamento e as dificuldades sociais e acadêmicas. Os relatos são um exemplo de como a informação, a educação e a troca de experiências entre eles são capazes de produzir profundas transformações de como as pessoas enxergam a si próprias com o transtorno mental e como mobilizam seus potenciais para recuperarem sua auto-estima e sua auto-confiança na busca de empoderar-se a si próprias e promover o recovery em suas vidas.


Foto 3 - Isabela Paixão, Pedro Henrique e Mariah das Neves do Grupo 15 de Nós falam das vivências.

O desafio que se coloca à nossa frente é como replicar esses modelos de empoderamento e recovery que transformam pessoas que vivenciam passivamente suas condições de saúde em protagonistas de sua própria história e de sua vida para um alcance mais abrangente na Rede de Atenção Psicossocial neste novo tempo para a saúde mental que está em curso e que deve beneficiar um número cada vez maior de usuários.

Assista ao vídeo!

https://youtu.be/KrUWO5rbezg


Transição propõe departamento e rede de saúde mental para novo governo Lula.

Proposta pela equipe de transição do governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva, o departamento de saúde mental, a ser criado na estrutura do Ministério da Saúde, deve ter como foco o fortalecimento de Centros de Atenção Psicossocial (Caps), além de coordenar e articular políticas de combate ao consumo abusivo de álcool e drogas. Caso a sugestão do grupo seja aceita por Lula, será a primeira vez que a pasta terá um departamento exclusivo para o tema.

Atualmente, não há nenhuma área dentro do Ministério da Saúde que cuide especificamente de saúde mental. Iniciativas que tratam do tema estão espalhadas em diferentes pastas. Nas outras gestões petistas, o tema era tratado em coordenação vinculada à Secretaria de Atenção à Saúde. Agora, a ideia é criar uma estrutura maior, com mais capacidade para desenvolver políticas públicas que ajudem a população que sofre com transtornos psiquiátricos.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil já liderava o ranking global de casos de ansiedade antes da pandemia de Covid-19 — e também ganhava nos números de incidência de depressão entre os países da América Latina. Após mais de dois anos marcados por perdas, isolamento, medo e insegurança, a avaliação de especialistas é que o novo governo enfrentará índices ainda mais preocupantes de transtornos mentais.

— Nosso entendimento hoje é que houve um gigantesco retrocesso nessa área. Isso precisa ser recuperado. É preciso reforçar a rede de atenção psicossocial. É preciso ter uma atenção especial às pessoas que direta ou indiretamente começaram a apresentar transtornos por causa da pandemia. É preciso pensar uma estratégia específica para isso — afirmou ao GLOBO o senador Humberto Costa (PT), que é médico e integra a coordenação do grupo de trabalho em Saúde na transição.

Cortes de recursos

O aumento na procura por ajuda profissional no país — de até 25% nas consultas psiquiátricas em 2021, segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) — vai na contramão da instabilidade de políticas de saúde mental e dos sucessivos cortes de recursos da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que abrange os Caps. No governo de Jair Bolsonaro, houve uma prioridade para as chamadas comunidades terapêuticas, geralmente ligadas a igrejas, que têm como foco principal o tratamento de dependentes químicos. Os Caps, por sua vez, contam com uma equipe multiprofissional — psiquiatras, psicólogos e outros profissionais de saúde.

— Vamos retomar essa política, e os Caps têm papel fundamental, principalmente aqueles que funcionam 24 horas. Se você não tem uma rede de Caps, não consegue tratar as pessoas na própria comunidade, acompanhar suas famílias. Com isso acaba restando como alternativa o isolamento, internação em uma outra cidade, permanência em hospital. A proposta agora é retomar o papel dos Caps com centralidade e o cuidado da saúde mental na atenção primária — afirmou o ex-ministro da Saúde Arthur Chioro, que também integra a equipe da transição para a área.

O grupo se reuniu nos últimos dias com setores ligados à saúde mental, como funcionários do SUS e de clínicas especializadas, para tratar da criação do departamento. A proposta de criar a estrutura no novo governo constará no relatório final que será entregue ao vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, ainda neste mês, junto com o alerta da necessidade de fortalecimento das políticas do SUS, incluindo os Caps. Entre as sugestões estruturais estará a de levar de volta para o Ministério da Saúde áreas e ações que hoje estão pulverizadas pela Esplanada e que são diretamente ligadas às questões de saúde.

Em paralelo, o departamento também trabalhará com outras secretarias e ministérios que esbarram no tema pela sua transversalidade. O objetivo é ter uma alternativa que seja capaz de conduzir a rede de atenção e que volte a ter centralidade na produção e armazenamento de estudos, pesquisas, análises e monitoramento.

Segundo Chioro, a demanda represada no tratamento e acompanhamento na área da saúde mental é hoje um dos principais problemas dentro do SUS, superando até mesmo as filas de atendimento para acompanhamento de doenças crônicas e cirurgias eletivas. Atualmente, boa parte dessa demanda represada teve origem nos impactos deixados pela pandemia.

— Há, por exemplo, um grave problema de fila envolvendo hipertensos, diabéticos, pessoas que precisam de cirurgia eletivas, aquelas que tem câncer. Mas todo mundo diz que uma das áreas que está mais grave é a saúde mental. É onde há mais filas. As pessoas não vão a uma consulta e resolvem o problema. É um tratamento contínuo. Então o acúmulo é muito grande e será uma das áreas que o governo vai priorizar — afirmou o ex-ministro.

O oncologista Drauzio Varella, que integra o time de médicos escalado por Lula para colaborar com sugestões para a transição, ressaltou em entrevista ao GLOBO a importância do fortalecimento dos Caps para lidar com o nível de complexidade da saúde mental atualmente.

— O SUS tem os Caps, que fazem esse atendimento. Mas são insuficientes para lidar com o nível de complexidade que é a saúde mental hoje, especialmente depois da pandemia. O número de casos de ansiedade, depressão, aumentou, mas já vinham de antes. Em 2015, A OMS já tinha estimado que a partir da década de 20 teríamos a depressão como a principal causa da falta do trabalho. Aí veio a pandemia, com as pessoas trancadas em casa, medo, insegurança, insegurança financeira, que agravou isso. Agora, a pequena estrutura que o SUS estava começando a montar ficou insignificante frente às necessidades da população.

Alta de suicídios

Médico psiquiatra da rede de hospitais Santa Lúcia, em Brasília, Fábio Aurélio Leite alerta para os indicadores de suicídio no Brasil, que crescem ano a ano e destoam da queda na taxa mundial — enquanto os outros países registraram diminuição de 36% nos casos de suicídio em 2019, dados do DataSUS de 2020 apontaram para aumento de 35% em um período de nove anos no país.

— A escalada de números de suicídio no Brasil já é motivo suficiente para que a saúde mental seja vista como prioridade pelo governo. Há, agora, sequelas da pandemia, que ampliou ainda mais os casos de transtornos mentais no mundo, em especial no Brasil, segundo país com mais mortes por Covid — aponta Leite.

Segundo o psiquiatra, após anos de negligência, o país está atrasado em estruturas e medidas para saúde mental:

— A pandemia trouxe à tona uma urgência l. É papel do próximo governo tratar a pauta com seriedade e implementar ações efetivas para frear os atuais indicadores. A criação de setores e departamentos especializados é vista com bons olhos pelos profissionais da área.

Para a médica psiquiatra Carolina Hanna de Aquino, do Sírio Libanês de São Paulo, a criação de um departamento ajudaria a centralizar e atualizar os indicadores do país.

— Temos, atualmente, dificuldade para medir a efetividade de políticas públicas de saúde mental. É diferente, por exemplo, de medidas para a saúde física. Um departamento seria extremamente útil para controlar e avaliar o impacto das ações realizadas, além de sistematizar as falhas — diz.

Fonte: O Globo